Garantias do Consumo

STJ enfrentará polêmica dos expurgos inflacionários dos planos econômicos

Autor

  • Simone M. S. Magalhães

    é advogada especializada em Direito do Consumidor mestranda em Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) vice-presidente da Comissão Nacional de Direito do Consumidor da Associação Brasileira de Advogados e membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-DF e do Instituto Brasilcon.

17 de agosto de 2016, 8h00

Spacca

Durante muitos anos, o Brasil foi acometido por elevados índices inflacionários, que, juntamente com outros indicativos econômicos, mantinham suas tentativas de desenvolvimento integralmente suscetíveis aos colapsos internacionais. Medidas de combate à inflação desenfreada, bem como a busca por estabilidade e por uma melhor distribuição de renda, culminaram na implantação de alguns planos econômicos, em especial nas décadas de 1980 e 1990.

Independentemente das repercussões positivas e negativas que as reformas econômicas ocasionaram ao desenvolvimento do país, é notório que os planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor I e II foram marcados por controvérsias específicas no âmbito do Direito do Consumidor. Nesse sentido, podemos citar as perdas remuneratórias provocadas pelas diferenças dos índices de correção aplicados pelas instituições bancárias às cadernetas de poupança. 

Desde então, os consumidores/poupadores prejudicados promoveram intensa busca no intuito de obter o ressarcimento dos valores que lhes são devidos. Com o esgotamento das tentativas de resolução amigável do conflito, aos consumidores sobejou recorrer à esfera judicial, o que ocasionou o ajuizamento de milhares de ações individuais em demandas da mesma natureza resultando, fatalmente, em morosidade na tramitação processual.

Não obstante as fartas decisões judiciais favoráveis aos poupadores, consolidando o direito ao reembolso das diferenças de remuneração das suas contas poupança, o setor bancário/financeiro, detentor de posição econômica privilegiada e de domínio irrefutável frente aos consumidores, relutou, e ainda reluta, em cumprir o seu evidente dever legal, contemporizando a superação da causa.

Atualmente se encontra sob os cuidados do Superior Tribunal de Justiça a análise dos recursos especiais 1.532.516/RS e 1.532.525/RS, que serão julgados sob o rito dos recursos repetitivos. Neles, a instituição recorrente, Banco Santander S/A, defende ser impossível que as ações individuais de cobrança sejam convertidas de ofício em fase de liquidação de sentença, proferida em ação civil pública que já reconheceu o direito dos consumidores ao ressarcimento das diferenças remuneratórias.

A questão específica submetida a julgamento diz respeito à análise da “possibilidade de conversão de ação individual de cobrança de expurgos inflacionários sobre o saldo de cadernetas de poupança em liquidação/execução de sentença proferida em ação civil pública movida com a mesma finalidade”. Há determinação expressa de suspensão, em todo o território nacional, do trâmite dos processos pendentes que versem sobre a questão, sejam eles individuais ou coletivos, conforme previsão de afetação disposta no artigo 1.037 do novo Código de Processo Civil.

É importante salientar que o instituto da ação coletiva se evidencia como um instrumento basilar que contribui expressivamente para a facilitação do acesso à Justiça, a economia e a celeridade processual.

Não ambicionando afastar a previsão legal de que a conversão de ação individual em liquidação de sentença da ação coletiva ocorra sob o requerimento da parte, é notório que em situações específicas tal literalidade deve ceder lugar à interpretação sistemática e multidisciplinar do ordenamento jurídico, que aponta para uma desejável agilidade da prestação jurisdicional.

Os dois recursos especiais afetados, em suma, buscam impor à Justiça brasileira o exame categoricamente repetitivo e burocrático de matéria já decidida em ação coletiva reconhecedora de direito manifesto dos poupadores, à medida em que as alegações do banco recorrente se fundam, primordialmente, na impossibilidade de que a conversão em liquidação de sentença ocorra de ofício. Contudo, é inexequível rediscutir em cada uma das ações individuais todas as questões que já foram vastamente analisadas na ação civil pública, se mostrando desarrazoado e desproporcional exigir que milhares de autores promovam, individualmente, os requerimentos específicos para que citada conversão aconteça. Para o Judiciário, o ato resultaria em improdutividade e dissipação de recursos públicos; para os consumidores, representaria uma morosidade excessiva para aqueles que já aguardam a efetivação do seu direito há mais de 20 anos. 

Ressalte-se que a liquidação de sentença não representa a entrega efetiva do direito em si, mas, tão somente, se consubstancia em fase processual preparatória, momento em que cada consumidor/poupador comprovará o nexo causal adstrito ao seu caso. Dessa forma, é fácil perceber que a conversão de ofício teria o poder de abreviar o trâmite de milhares de ações, respeitando, contudo, a segurança garantida no arcabouço jurídico pátrio.

A desejável modernização da interpretação processualística, justificada pelo aumento e pela complexidade dos pleitos reportados ao Judiciário, assinala para um necessário estabelecimento, por parte dos julgadores, de configurações que garantam a efetiva satisfação do direito delimitado na sentença.

O Código de Processo Civil e o Código de Defesa do Consumidor são legislações de importância capital para a sociedade, se fundamentando em princípios que salvaguardam a razoável duração do processo, a eficiência da prestação jurisdicional, o impulso oficial, a boa-fé, a dignidade da pessoa humana e a proteção do vulnerável. A análise das especificidades dos recursos especiais em questão evidencia que a interpretação de ambas as legislações necessita ser expandida, permitindo a aplicação do Direito ao caso concreto e apresentando aos jurisdicionados decisões efetivas, justas e em razoável decurso de tempo.

O Superior Tribunal de Justiça tem papel fundamental na padronização da interpretação das leis federais, devendo ter como premissa a observância dos desígnios intrínsecos das normas. Dessa forma, a corte encontra-se diante de uma questão inquietante e, ao mesmo tempo, transformadora: a) aplicar interpretação literal da norma rogada pelo recorrente, determinando que a conversão das ações individuais de cobrança em liquidação de sentença só ocorra após o requerimento de cada um dos milhares de autores. Tal medida seria escolha clara por um caminho burocrático e inapto a resultar em qualquer benefício prático, provocando, consequentemente, o aumento da morosidade das ações judiciais, somente proveitosa ao setor bancário que há muito adota atos protelatórios ao cumprimento da sua obrigação; b)  promover interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, deliberando pela conversão de ofício das ações individuais em liquidação de sentença da ação civil pública, dispensando o requerimento pessoal de cada um dos autores. Esse entendimento prima pelo interesse público e pelos princípios norteadores da legislação nacional, em especial, do Código de Processo Civil, do Código de Defesa do Consumidor e da Constituição Federal. Além disso, deixa inequívoca a efetividade da prestação jurisdicional ao caso concreto, optando pela economia e celeridade processuais, frise-se, com total respeito à legislação pátria, representando, também, um rebate contundente a qualquer tipo de intenção que objetive adiar a resposta do Estado-juiz.

Diante da grande quantidade de ações individuais de cobrança de expurgos inflacionários dos planos econômicos, é nítido perceber que a conversão de ofício é medida essencial à situação fática apresentada, pois, além de não acarretar prejuízo às partes ou ofensa à legislação, se mostra, ainda, como contorno efetivo capaz de agilizar o deslinde de questão jurídica que se arrasta há mais de duas décadas no país.

Autores

  • Brave

    é advogada especializada em Direito do Consumidor. Tem pós-graduação em Ordem Jurídica e Ministério Público e em Direito do Consumidor e Magistério Superior. É membro da Comissão de Direito do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal e associada ao Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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