Opinião

Controle judicial dos orçamentos públicos em prol dos direitos fundamentais

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17 de agosto de 2016, 6h27

Para que possamos resistir à aventada irrefutabilidade econômica do ajuste fiscal que pretende suspender, por 20 anos, a eficácia imediata dos direitos fundamentais (verdadeiro legado civilizatório da Constituição de 1988), é preciso que apresentemos alternativas.

Nosso ordenamento já oferece instrumentos preciosos de promoção do reequilíbrio das contas públicas, sem implicar — de modo algum — constrangimento para o custeio mínimo dos direitos fundamentais à saúde e à educação de que tratam os artigos 198 e 212 da nossa Constituição.

O objetivo bastante sintético e pragmático deste artigo é, pois, apresentar alguns exemplos de institutos jurídicos que permitem a todos os cidadãos e aos operadores do Direito a busca até mesmo judicial da alocação constitucionalmente adequada dos recursos públicos, em prol de uma responsabilidade fiscal aderente aos direitos fundamentais.

Ainda que não se trate de dispositivos novos, sua sistematização, a bem da verdade, é que tem feito falta ao controle judicial de políticas públicas, que, por sua vez, lida — cada vez mais — com o argumento da impossibilidade orçamentário-financeira (reserva do possível) em todos os níveis da federação.

Logo de saída, é imperativo relembrar que, enquanto perdurar a trajetória de receitas decrescentes em face das despesas autorizadas da lei orçamentária anual, o regime do artigo 9º, parágrafo 2º da Lei de Responsabilidade Fiscal claramente indica a impossibilidade de contingenciamento das despesas obrigatórias.

No entanto, quais despesas discricionárias poderiam sofrer contingenciamento e usualmente não têm sido limitadas? Quais receitas poderiam vir a reforçar os cofres públicos, mas têm sido indevidamente renunciadas, deixadas prescrever ou não se tem buscado efetivamente arrecadá-las? Qual controle de conformidade constitucional seria possível na alocação dos recursos públicos para assegurar a máxima eficácia dos direitos sociais?

De tais questões, passamos a tratar, sem a pretensão, contudo, de esgotar as possibilidades interpretativas. Seguem, como convite ao diálogo, alguns exemplos de leitura integrada do Direito Financeiro, Direito Administrativo, Direito Eleitoral e Direito Tributário em face dos preceitos fundamentais da nossa Constituição cidadã.

O primeiro e o segundo exemplo residem na perspectiva de que, se o ente político não tem quitado a folha de salários em dia, está inadimplente com os pisos constitucionais em saúde e educação ou tem dado causa a qualquer outro inadimplemento de obrigação de despesa assentada constitucional ou legalmente, caberia invocar — em interpretação sistemática — as vedações do artigo 73, inciso VI e do artigo 75 da Lei 9.504/1997.

Significa dizer que, nesses casos, o Judiciário não estaria a ferir o princípio da separação de poderes ao questionar a assunção de despesas com “publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública”, assim reconhecida judicialmente, bem como ressalvada a propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado.

Tampouco afrontaria o ordenamento uma decisão judicial que impugne o pagamento com recursos públicos na contratação de shows artísticos durante a vigência de contingenciamento de despesas tão dramático que ponha em risco o cumprimento das despesas obrigatórias e, em especial, a eficácia dos direitos fundamentais.

O terceiro exemplo, por outro lado, passa pelo reconhecimento de que, em tempos de tão severa crise fiscal, é desarrazoada a assunção de despesa com novos serviços e obras, sem que estejam assegurados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço já em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública. Eis a necessária leitura conjugada do art. 42 da LRF com a alínea “a” do inciso VI do art. 73 da Lei das Eleições.

Muito embora as restrições em comento sejam tradicionalmente invocadas na contenção apenas da gastança típica dos períodos pré-eleitorais e no final de mandato, elas precisam ser apresentadas como soluções jurídicas já vigentes, em rota alternativa à pura e simples suspensão inconstitucional da eficácia dos direitos à saúde e à educação por duas décadas, como pretende o art. 104 que a PEC 241 visa inserir no ADCT.

Além dessas hipóteses, como um quarto exemplo emerge a necessidade de melhor controle sobre as renúncias de receitas sem lastro na correspondente e indispensável medida compensatória, sobretudo as que são concedidas por prazo indeterminado, diante do seu impacto desarrazoado em face das premissas contidas no artigo 14 da LRF e no artigo 57, parágrafo 3º da Lei 8.666/1993.

Senão vejamos: a Lei de Responsabilidade Fiscal exige no caput e no parágrafo 2º do artigo 14 que a validade e o início da vigência da renúncia fiscal sejam condicionados à instituição efetiva de medida compensatória, com duração de três anos (exercício de instituição e nos dois seguintes). Já a Lei Geral de Licitações e Contratos prevê ser vedada a celebração de contratos com prazo de vigência indeterminado, que gerassem obrigações de gasto para o Estado ad aeternum. Ora, renúncia de receita é gasto tributário e, assim como os contratos administrativos — donde resultam os gastos rotineiros da administração pública —, não deveria ser instituída sem qualquer delimitação temporal.

Desse modo, cabe controle de validade sobre a perpetuação de todas as renúncias fiscais (no sentido jurídico do parágrafo 1º do artigo 14 da LRF), cujas medidas compensatórias provenientes da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição tenham sido comprovadas apenas por três anos, os quais, por sua vez, já tenham faticamente transcorrido.

Em suma, é preciso que busquemos até judicialmente, se necessário for, a decretação de nulidade das renúncias fiscais concedidas para além da fronteira de três anos dada pelo artigo 14 da LRF, após o advento de tal norma. Dito de outro modo, a instituição, por prazo indeterminado, de qualquer redução discriminada de tributos ou contribuições e de quaisquer outros benefícios tributários que correspondam a tratamento diferenciado fere suas balizas de constituição e perpetua ilegal e inconstitucionalmente privilégio fiscal no orçamento público.

Atualmente, nossos controles, a título de responsabilidade fiscal, são frouxos não só sobre as medidas compensatórias que amparam a instituição das renúncias fiscais, como também sobre a compensação dos impactos fiscais causados pelas despesas obrigatórias de caráter continuado (artigo 17 da LRF). Talvez a melhor medida de curto prazo para o enfrentamento de ambos seja a qualificação detida do conteúdo dos anexos na lei de diretrizes orçamentárias (artigo 4º, parágrafo 2º, V da LRF) e na lei orçamentária anual (artigo 5º, II da LRF), a respeito da comprovação das medidas compensatórias que lhes correspondem, a cada ano e enquanto vigorarem.

A exigência, sob pena de irresponsabilidade fiscal, de demonstrativo anual metodologicamente consistente sobre as estimativas de impacto e as medidas de compensação das renúncias de receita e das despesas obrigatórias de caráter continuado na LDO e na LOA de cada ente revela, aqui, o quinto exemplo de controle necessário até mesmo para que a sociedade conheça os inúmeros impasses distributivos no orçamento público.

Do ponto de vista da receita ainda e como sexto exemplo de possibilidade de controle da alocação adequada dos recursos públicos, caberia questionamento sobre o risco de prescrição da dívida ativa e a necessidade de o gestor buscar esgotar todas as formas lícitas de executá-la, como, por exemplo, o protesto extrajudicial. Trata-se, aliás, de não dar causa a dano ao erário, na forma do artigo 10, X da Lei 8.429/1992, em seara já pacificada até mesmo pelo Conselho Nacional de Justiça.

Um sétimo exemplo reside no manejo abusivo das relações federativas para constranger os municípios a assumirem o custeio de despesas de competência de outros entes, em rota de lesão não só ao próprio artigo 62 da LRF, mas também aos deveres de cooperação técnico-financeira que a União e os estados têm para com aqueles (artigo 30, incisos VI e VII da Constituição Federal). É necessário desonerar as prefeituras da responsabilidade por despesas com pessoal temporário e material de consumo destinadas, por exemplo, ao apoio de delegacias de polícia, destacamentos da Polícia Militar etc.

A continuidade dos serviços públicos estaduais e de alguns serviços federais não pode ser exigida do erário local, em prejuízo da própria consecução das competências primárias do município. As partidas e contrapartidas da cooperação federativa hão de ser fiscalmente equilibradas, sendo necessária até a inversão do fluxo da judicialização nas áreas da saúde e da educação para fins de conter determinadas omissões e abusos inconstitucionais.

Dessa longa série de possibilidades de controle para que o ajuste fiscal seja conforme o ordenamento brasileiro já vigente, o oitavo e último exemplo pode ser extraído diretamente do artigo 169 da Constituição de 1988, em sua leitura integrada não só com os limites de despesa de pessoal fixados na LRF, mas, sobretudo, com o artigo 94, incisos IX e X e do artigo 95 do Decreto-Lei 200/1967.

Trata-se da imperativa necessidade de fixar a quantidade de servidores, de acordo com as reais necessidades de funcionamento de cada órgão, para, na sequência, eliminar ou reabsorver o pessoal ocioso, “mediante aproveitamento dos servidores excedentes, ou reaproveitamento aos desajustados em funções compatíveis com as suas comprovadas qualificações e aptidões vocacionais, impedindo-se novas admissões, enquanto houver servidores disponíveis para a função”. Tal cálculo, por óbvio, exige a verificação da “produtividade do pessoal, visando a colocá-lo em níveis de comparabilidade com a atividade privada ou a evitar custos injustificáveis de operação”.

Para conter situações de inchaço e excesso de gasto de pessoal, não basta o corte linear de 20% de comissionados e a redução eventual de servidores não estáveis. É preciso também promover uma reflexão técnica profunda sobre a demanda real de servidores, para fins até mesmo de aferição de desempenho pessoal (nos moldes do artigo 41 da Constituição) e institucional, conforme as necessidades do serviço público e da sociedade.

As mudanças, de fato, necessárias para reequilibrar as contas públicas e promover o custeio constitucionalmente adequado dos direitos fundamentais não demandam inovação legislativa, mas reclamam, isso sim, compromisso sério com a revisão de privilégios, mitigação de discricionariedades, abusos, inchaços e frouxidões interpretativas.

Quem vende, na realidade brasileira atual, soluções aparentemente novas e drásticas para problemas antigos e culturais, na verdade vende ilusões, algumas delas francamente inconstitucionais.

Nosso ordenamento assinala claras indicações sobre quais gastos podem ser constrangidos e quais estão salvaguardados de movimentos bruscos de ajuste. Ao longo dos diversos exemplos arrolados desde o início deste artigo, depreendemos que os limites normativos já existentes para o tamanho do Estado brasileiro residem, em síntese, no nível do comportamento da receita pública, no teto de despesas de pessoal, bem como no limite da dívida consolidada dos estados e municípios, ainda que pendam de regulamentação os limites de endividamento da União.

Porém, eis que surge a PEC 241/2016, com o intuito de fixar um teto de expansão dos gastos primários do governo, conforme o patamar do que for aplicado em 2016 e corrigido apenas pelo comportamento da inflação, com extensão até mesmo para os gastos mínimos em saúde e educação.

A consequência prática dessa suposta medida indispensável para o equilíbrio das contas públicas implica evidente redução da disponibilidade de custeio dos direitos fundamentais, com o adiamento do cumprimento das obrigações de fazer definidas em lei e na própria Constituição. Um claro cerceamento da efetividade constitucional de direitos sociais por medidas de cunho financeiro de caráter alegadamente transitório.

A confirmar essa hipótese, viveremos um debate análogo ao ocorrido em setembro do ano passado, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu, liminarmente, por descontingenciar os recursos do Fundo Penitenciário Nacional, para obrigar a União a aplicá-los imediatamente, dado o “Estado Inconstitucional de Coisas” em que o sistema carcerário brasileiro vivia e ainda vive. Não duvidem os nossos governantes que igual questionamento possa ser renovado na defesa do custeio mínimo da saúde e da educação seja na via incidental, seja na via concentrada do controle.

Quanto maior a escassez de recursos, maior há de ser o compromisso da sua aplicação legítima em orçamentos públicos aderentes à Constituição e aos direitos fundamentais: eis o legado desse precedente e o correlato desafio para controle judicial, sobretudo, quando demandado a assegurar a eficácia dos direitos à educação e à saúde.

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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