Opinião

Não há mais como sustentar a aplicação das súmulas 21 e 52 do STJ

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16 de agosto de 2016, 7h09

O uso alargado da prisão processual no Brasil tem suscitado inúmeros problemas de ordem prática no pertinente à legitimidade de sua imposição e, por conseguinte, sua manutenção — enquanto medida cautelar que é — em detrimento de garantias fundamentais do cidadão. Nesse compasso, um dos mais tormentosos e intricados temas relacionados à prisão cautelar é justamente a verificação do, assim denominado, excesso de prazo da custódia provisória.

A grosso modo, o excesso de prazo é cogitado quando a prisão processual (temporária, em flagrante delito e preventiva — pós Lei 12.403/2011) se arrasta por tempo além do razoável; tempo esse que, à exceção da prisão temporária regulada pela Lei 7.960/1989, não está previamente fixado na legislação, diferentemente daquilo que ocorre em outros países, como, por exemplo, na Alemanha (StPO § 121[1]), onde, em regra, a prisão processual não pode durar mais do que 6 meses.

Quando o assunto é excesso de prazo, logo se vem à mente o teor do enunciado da Súmula 52, do Superior Tribunal de Justiça, que prescreve:

SÚMULA 52
Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo.”

Ainda se pode notar o teor da Súmula 21, aplicável ao procedimento especial do tribunal do júri, a qual reza:

SÚMULA 21
Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução.

Na praxis, os referidos dispositivos sumulares são diuturnamente invocados, de forma totalmente acrítica, pelas Cortes de Justiça como fundamento para a denegação do pleito de liberdade formulado por pessoas presas além do tempo adequado. No entanto, é necessária uma revisão crítica do teor dos mencionados textos sumulares para além das opacas prescrições neles contidas, dando-se um enfoque, sobretudo, convencional, mas também constitucional à questão.

A discussão a respeito do chamado excesso de prazo da prisão cautelar encontra-se umbilicalmente ligada à garantia fundamental à razoável duração do processo penal. Assim, a análise do referido excesso perpassa obrigatoriamente a concepção do direito fundamental do cidadão a um processo penal em prazo razoável, ou sem dilações indevidas.

Sem maiores incursões históricas, a ideia da garantia a um julgamento penal em um prazo razoável, inicialmente à míngua de uma disposição normativa expressa, sempre esteve diretamente ligada à cláusula do devido processo legal, como uma espécie de manifestação do substantial due process of law, consoante já apontava Lauria Tucci[2].

Na legislação infraconstitucional, já se poderia ver um dos primórdios normativos utilizados na construção da jurisprudência estabelecida sobre o tema, na regra contida no artigo 648, II, do Código de Processo Penal, o qual já preconizava que se consubstancia em coação ilegal o só fato de “quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei”.

No dia 9 de novembro de 1992, o Brasil incorpora à sua ordem jurídica interna a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também conhecida por Pacto de São José da Costa Rica, através da promulgação do Decreto 678/1992; a partir de então, o país passa a ter expressamente delineada no plexo normativo interno a garantia à razoável duração do processo, em dois dispositivos distintos do Pacto, quais sejam: o artigo 8.1 e o artigo 7.5.

O artigo 8.1 da CADH encerra a “garantia judicial” (termo expressamente utilizado na rubrica do artigo 8º) à razoável duração do processo em sentido amplo, abarcando não só o processo penal, como também aqueles de cunho civil, trabalhista, fiscal, ou de qualquer outra natureza:

Artigo 8º

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (g.n.)

O artigo 7.5, por sua vez, foi mais específico no trato da problemática, e definiu como “direito à liberdade pessoal” o direito ao julgamento em tempo razoável ou à colocação em liberdade do aprisionado não julgado sem dilações indevidas, cuja redação é a seguinte:

Art. 7º
5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (g. n.)

Assim, verifica-se a preocupação internacional no estabelecimento expresso de uma garantia ao processo sem dilações indevidas, ou melhor, em prazo razoável. A preocupação é ainda mais nítida, e daí a especificidade da Convenção, quando a garantia em questão se referir à pessoa presa, voltando-se o artigo 7.5, da CADH primordialmente ao processo penal.

Nesse sentido, estão as sempre valiosas lições de Gustavo Badaró[3]:

“Em suma, na CADH há, de um lado, o direito ao julgamento em prazo razoável, para qualquer processo, penal ou não penal; de outro, é assegurado, exclusivamente para o processo penal, em caso de acusado preso, que este seja posto em liberdade caso a duração do processo ultrapasse o prazo razoável.”

A Constituição Federal de 1988 veio a incorporar ao seu texto uma cláusula expressa a respeito da razoável duração do processo apenas em 8 de dezembro de 2004, com a promulgação da Emenda Constitucional 45, que acrescentou ao artigo 5º, da Carta, o inciso LXXVIII, o qual prescreve:

Art. 5º:
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Explicitado todo o movimento de positivação da garantia fundamental à razoável duração do processo, é possível notar que, confrontando-se o teor dos vetustos enunciados sumulares acima elencados com o atual texto da Constituição de 1988 e da Convenção Americana de Direitos Humanos, não há mais como se sustentar a sua aplicação.

Dessa forma, as assertivas no sentido de que “encerrada a instrução processual” (Súmula 52) ou “pronunciado o réu” (Súmula 21) ficaria superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo são visceralmente contrárias à CADH e à toda a principiologia que informa a Constituição de 1988 no que toca ao trato da matéria relativa à razoável duração do processo.

Antes de tal confrontação, convém destacar, desde logo, que os textos sumulares em apreço carregam entre si uma grave incongruência ou, pelo menos, um tratamento desigual injustificado aos acusados por crimes dolosos contra a vida e os demais processados por qualquer outro tipo de crime que não aqueles. Dessa forma, é possível constatar que o iter procedimental entre, por exemplo, o procedimento comum e aquele especial reservado à primeira fase do tribunal do júri, desde a fase de recebimento da denúncia até os memoriais, é absolutamente idêntico. Pior ainda, o legislador de 2008, fez constar o prazo de 60 dias para a conclusão da instrução no procedimento comum ordinário (art. 400, caput, CPP, reformado pela Lei 11.719/2008) e o de 90 dias para o procedimento especial do tribunal do júri (artigo 412, CPP, alterado pela Lei 11.689/2008).

Logo, se as citadas etapas procedimentais têm por diferença apenas o ato judicial que será praticado após os memoriais (sentença terminativa no procedimento comum e uma decisão interlocutória mista no procedimento do júri), o que justificaria afirmar que no procedimento do júri só após a pronúncia estaria superada a alegação de excesso de prazo e nos demais procedimentos o mencionado excesso estará vencido logo em seguida ao encerramento da instrução? O que legitimaria prazo muito menor (60 dias, em regra) para superar a alegação de excesso de prazo nos demais procedimentos em contraste com aquele reservado ao procedimento do júri (90 dias), ainda, incluindo-se o prazo de oferecimento de memoriais e o tempo para a prolação da decisão de pronúncia?

Mas apesar das aporias no sistema, em relação específica ao direito ao julgamento em prazo razoável, é possível verificar que os indigitados enunciados sumulares contrariam a literalidade do que disposto no artigo 7.5, da CADH, que regula a relação julgamento sem dilações indevidas vs. pessoa presa. Basta a rasa intelecção do dispositivo convencional para se concluir que a pessoa presa (indiciado ou acusado) tem não um direito fundamental ao encerramento da instrução em prazo razoável ou a ser pronunciado em tempo igualmente razoável, mas, em verdade, um direito fundamental ao julgamento sem dilações indevidas

Mais, o direito a julgamento sem demoras a que se refere a CADH, tanto nas arestas do artigo 7.5 quanto do artigo 8.1, não se limita à prolação de uma sentença. Em obediência ao princípio da presunção de inocência, entabulado no inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição, a norma de tratamento[4] em apreço há de se estender ainda por toda a fase recursal, na medida em que o limite imposto pelo constituinte originário para a sua superação não é outro que não o trânsito em julgado da sentença condenatória.

De se destacar, outrossim, que a edição tanto da Súmula 52 (DJU 24/9/1992) e da Súmula 21 (DJU 11/12/1990) se deu em momento anterior à incorporação da Convenção Americana de Direitos Humanos à ordem jurídica interna pelo Decreto 648/1992 (DOU 9/12/1992), motivo pelo qual a aplicação dos referidos dispositivos sumulares restaria prejudicada, máxime a partir de quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu o status supralegal da CADH[5], cuidando-se de norma processual supralegal cogente.

Portanto, não há como se sustentar, ainda nos tempos de hoje (ou desde a publicação do Decreto 678/1992), a aplicação massiva e reiterada dos enunciados sumulares aqui criticados. É assustadoramente comum deparar com julgados proferidos pelos tribunais ordinários ou pelo próprio Superior Tribunal de Justiça (salvo raríssima exceção[6]) no sentido da improcedência das arguições de excesso de prazo que lhes são levadas à apreciação, com base no teor das Súmulas 21 e 52, do STJ.

Dessa forma, sem desconsiderar o potencial exploratório do tema, busca-se, aqui, em tom ensaístico daquilo que deve ser abordado posteriormente em artigo com viés estritamente acadêmico, provocar uma reflexão crítica a respeito da questão. Como visto, além de incongruentes entre si, as indigitadas súmulas não resistem a uma interpretação convencional e constitucional do processo penal, menos ainda quando é a própria CADH que determina a colocação em liberdade do acusado preso, caso não tenha sido julgado em tempo razoável (artigo 7.5). Cumpre aos defensores e aos membros do Ministério Público (defensores da ordem jurídica que são) levar a questão aos tribunais incitando a crítica, pois tarda, e muito, a hora de revisão do estado d’arte aqui denunciado.


[1] StPO § 121 (1) Solange kein Urteil ergangen ist, das auf Freiheitsstrafe oder eine freiheitsentziehende Maßregel der Besserung und Sicherung erkennt, darf der Vollzug der Untersuchungshaft wegen derselben Tat über sechs Monate hinaus nur aufrechterhalten werden, wenn die besondere Schwierigkeit oder der besondere Umfang der Ermittlungen oder ein anderer wichtiger Grund das Urteil noch nicht zulassen und die Fortdauer der Haft rechtfertigen.

[2] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3. ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 206.

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 69.

[4] Presunção de inocência: princípio e garantias. In: GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 2003. p. 139, utiliza-se do vocábulo “garantia de tratamento” para expressar uma das facetas da presunção de inocência.

[5] “diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.” (RE 466343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.2008, DJe de 5.6.2009)

[6] Ressaltamos o procedente isolado da 6ª Turma Superior Tribunal de Justiça no sentido de superação dos referidos enunciados sumulares fixado no RHC 20.566/BA, cujo acertadíssimo voto condutor é da lavra Professora/Ministra Maria Thereza de Assis Moura, o qual não merece reparo algum.

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