Direitos em conflito

Corte constitucional não é "superinstância recursal", comenta ministra alemã

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16 de agosto de 2016, 16h04

Nos conflitos entre particulares, a corte constitucional não pode ser uma “superinstância recursal”. Esse é o sentido da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que “respeita e protege os acordos e convenções” assinados entre particulares e só intervém quando uma das partes extrapola em seu direito de contratar, violando os direitos fundamentais da outra.

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Legenda

Segundo a ministra Sibylle Kessal-Wulf, juíza do Tribunal Constitucional Federal alemão, BverfG, na sigla em alemão, a posição do tribunal se traduz numa atuação mais contida. “O tribunal constitucional não é uma instância recursal, ele apenas responde se houve desrespeito a direitos fundamentais”, disse. “Nós respeitamos a interpretação das instâncias anteriores e as soluções propostas pelo legislador.”

A ministra participa de um ciclo de palestras no Brasil, organizado pela Rede de Pesquisa Direito Civil Contemporâneo — em Curitiba, São Paulo e Brasília. Nesta terça-feira (16/8), ela falou em Brasília, no Supremo Tribunal Federal. Estavam presentes à mesa o ministro Dias Toffoli, que a presidiu, além dos ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber. Também o representante da Embaixada da Alemanha no Brasil para assuntos políticos, Cristian Schültz, e a professora Karina Nunes-Fritz, da FGV-RJ, e Ignacio Proveda, da USP, representando a Rede de Pesquisa Direito Civil Contemporâneo, pela qual também compareceram os professores Otavio Luiz Rodrigues Junior e Heleno Taveira Torres, ambos também da USP.

O tema da palestra desta quarta foi “a eficácia dos direitos fundamentais em relação aos particulares: a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal do caso Lüth ao caso Flashmob”. E segundo ela, embora a descrição do tema seja simples, a solução para os casos concretos não é tanto. A fala da ministra vai ser depois publicada na revista da Rede de Pesquisa Direito Civil Contemporâneo.

Antes de começar a falar do assunto da palestra, Sibylle brincou que o alemão é uma língua conhecida por sua precisão. “Mas quando se trata de direitos fundamentais isso nem sempre é uma coisa boa.” Ela explicou que os direitos fundamentais, na Alemanha, incidem de forma direta e indireta. A primeira se dá quando o Estado entra na relação jurídica com o particular. E o BverfG, diz ela, entende que, embora a Constituição alemã privilegie o direito à autodeterminação em seu artigo 2º, o Estado é vinculado ao cumprimento dos direitos fundamentais e à obrigação de proteger o exercício desses direitos.

O entendimento foi aplicado, em 2011, às empresas em que o Estado tem participação societária, ainda que minoritária. Segundo a ministra, o tribunal decidiu que a vinculação aos direitos fundamentais não permite que “o Estado se desvencilhe e se enfie numa roupagem jurisprivada”.

Questão complicada
Segundo Kessal-Wuf, no caso das relações entre particulares, a solução foi mais complexa, já que “não pode haver eficácia direta dos direitos fundamentais” em acertos de que o Estado não participa.

Isso se traduziu na atual jurisprudência da corte constitucional alemã, segundo a qual os acordos, contratos e convenções assinados entre particulares devem ser respeitados, já que são as próprias partes que decidem sobre seus interesses e as formas de acomodá-los. No entanto, explicou a ministra, o tribunal deve interferir “nos limites da autonomia privada e do princípio da autodeterminação”, se direitos fundamentais forem desrespeitados.

Um exemplo citado pela juíza é o da lei que protege os trabalhadores de demissões imotivadas ou com justificativas consideradas “estranhas”.  A contratação e a demissão de empregados são protegidas pelo princípio da autodeterminação, mas há situações em que uma das partes tem mais condições de fazer prevalecer seus interesses, violando direitos fundamentais da outra.

Caminho
A complicação para se chegar a essa solução está no caminho percorrido pelo tribunal, explicou Sibylle. A conclusão óbvia sobre os conflitos entre particulares seria: nos casos em que a Constituição silencia, fica eliminada a eficácia dos direitos fundamentais.

“Mas é uma construção insatisfatória”, disse a ministra. Isso porque os direitos fundamentais não são só a defesa do cidadão contra os poderes do Estado, são também o “elemento organizador da vida em sociedade, têm eficácia horizontal”.

Portanto, regras de Direito Civil e de Direito Privado não podem ser contrárias ao exercício de direitos fundamentais, sob pena de desrespeitarem o artigo 1º, inciso III, da Constituição da Alemanha – o que protege os direitos fundamentais. E essa vinculação se estende também aos legisladores e aos juízes, mesmo quando decidem em matéria de Direito Privado.

E aí surgiram duas perguntas: até que ponto o legislador pode intervir na relação entre particulares? E até que ponto ele pode estabelecer uma das partes como a mais fraca? Segundo a ministra, a solução dada pelo BverG foi a de que o legislador é quem deve fazer a primeira ponderação quando há conflito de direitos em uma relação privada.

Ao tribunal constitucional, diz, cabe apenas analisar se a solução legislativa foi arbitrária ou se os direitos de uma das partes foram desrespeitados. “O Tribunal Constitucional tende a respeitar a interpretação da lei dada pelos tribunais inferiores”, disse a ministra.

Nazismo
A ministra Sibylle Kessal-Wuf acredita que o “nascimento da eficácia horizontal dos direitos fundamentais” tenha sido o caso Lüth, julgado pelo Tribunal Federal Constitucional em 1958.

É um caso famoso para quem estuda Direito Constitucional. Erich Lüth, quando presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo boicotou a exibição de um filme de propaganda nazista e foi processado pelo produtor. Em primeira instância, Lüth foi condenado e a decisão foi mantida pelo tribunal de Hamburgo.

Mas a corte constitucional entendeu que a sentença desrespeitou o direito fundamental à liberdade de opinião de Lüth. E por mais que ele, de fato, tenha causado prejuízos aos produtores do filme ao boicotar sua exibição, “nenhuma prescrição de Direito Civil pode contrariar direitos fundamentais”.

Cerveja relâmpago
Já o caso Flashmob foi destacado pela ministra como a última manifestação jurisprudencial do BverfG a respeito do conflito entre direitos fundamentais e direitos privados. Em 2009, um grupo de ativistas queria protestar contra a escalada conservadora na Alemanha que entendiam sacrificar direitos e liberdades individuais.

Marcaram uma manifestação relâmpago – ou flashmob – em que se encontrariam em uma praça para tomar uma lata de cerveja e ouvir o discurso de um deles. A manifestação duraria 15 minutos, mas a dona do terreno onde está a praça foi à Justiça contra a manifestação, alegando que ela violava seus direitos de propriedade.

A decisão da corte constitucional foi de que a região era de livre trânsito de pedestres, e o direito à propriedade não poderia se sobrepor ao direito fundamental à liberdade de manifestação do pensamento. “Nesse caso, a matéria de fundo ganha contornos especiais, já que se tratava de um protesto em defesa de direitos individuais”, comentou Sibylle.

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