Embargos Culturais

Mas por que Morus também descreveu uma república imperfeita?

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

14 de agosto de 2016, 8h03

Spacca
Nesse nosso ano admirável de 2016 lembramos os 400 anos da morte de William Shakespeare e de Miguel de Cervantes, bem como os 500 anos da publicação da Utopia, de Thomas Morus (1478-1535)[1]. A Utopia é um livro permanentemente enigmático, dividido em dois livros, que para muitos não se comunicam. Frustra-se o leitor que busca a descrição de um sociedade ideal logo no primeiro livro. A Utopia, tal como recorrentemente invocada por nosso imaginário político, é tema do segundo livro.

É nessa seção que o fantasioso Rafael Hitlodeu discorre sobre a melhor constituição de uma República, “tal como registrado por Thomas Morus, cidadão e subxerife de Londres”. Esse livro de Morus compõe uma galeria de concepções de sociedades imaginárias, literatura política típica do Renascimento, no que foi seguido pela Cidade do Sol de Tomás Campanella (livro de 1623) e pela Nova Atlântica, de Francis Bacon (livro de 1627)[2]. O realismo na política é também de algum modo contemporâneo, porque o Príncipe, de Maquiavel, foi publicado em 1532.

O espaço topográfico e geográfico da República da Utopia pode até lembrar a Inglaterra. Hitlodeu teria dito a Morus que “a ilha dos utopianos é mais larga no meio, onde mede cerca de trezentos e vinte quilômetros(…) nunca se estreita muito mais do que isso, a não ser nas extremidades, que diminuem gradualmente até se curvarem como se tivessem sido traçadas por um compasso, formando um círculo de oitocentos quilômetros de circunferência”[3]. Pode haver alguma semelhança com a pátria de Morus (nasceu em Londres, em 1478); o principal rio da Utopia, “Anidro”, poderia, de igual modo, lembrar o Tâmisa; traduzido para o inglês para “Nowater”, o que para nós equivaleria a “Sem Água”, há aqui uma reserva de sentido hermenêutico que prestidigitaria a catástrofe ambiental; alguns ambientalistas adoram essas falsas previsões.

O neologismo quinhentista “utopia”, transcendeu de substantivo de identificação de espaço político quimérico para adjetivo que evoca a contemplação de uma realidade perfeita. “Utopia”, assim, comunica nas línguas contemporâneas um ideal, uma esperança e ao mesmo tempo uma ilusão. É nesse sentido que a Utopia de Morus poderia ser a retomada parcial da República de Platão, e por isso também carregada de perfeições e de imperfeições. Estou convencido que há mais imperfeições do que perfeições, o que comprova que nossa percepção cultural de “utopia” teria sido dolosamente construída. Mas por que Morus também descreveu uma república imperfeita?

Exemplifico com a liberdade de locomoção[4]. A constituição da Utopia dividia as viagens em dois grupos: no próprio espaço da cidade originária ou, mais raramente, para outras cidades, ainda que dentro da própria ilha. A Utopia contava com 54 cidades, “grandes e magnificas, e nelas todos falavam a mesma língua, têm os mesmos hábitos e vivem sob as mesmas leis e instituições”[5]. Para transitar pelos arredores de sua própria cidade, os utopianos precisavam tão somente (sic) da autorização do pai e do consentimento do cônjuge. No entanto, para que pudessem visitar um amigo que morasse em outra cidade ou para conhecer algum outro lugar (dento da própria ilha, bem entendido) precisavam da autorização das autoridades locais, os sifograntes e os traníboros, além da aquiescência do próprio governador.

A autorização não era dada, se as autoridades entendessem que a presença do pretenso viajante fosse imprescindível para a cidade onde morava. Era proibida a viagem solitária. Viajantes deveriam se deslocar, sempre, em grupos. A carta de autorização indicaria, precisamente, a data da partida e o dia do retorno. Não havia necessidade de sacolas e malas. Hitlodeu disse a Morus que onde quer que estivessem (na ilha, de novo, bem entendido) sempre seriam bem-vindos e sempre seriam tratados como se em suas próprias casas estivessem. Por isso, não precisavam de bagagens.

Na hipótese de que os viajantes não portassem a carta de autorização seriam presos e severamente castigados. Caso reincidissem, seriam reduzidos à escravidão. Se ficassem por mais de 24 horas em uma outra cidade, que não a originária, o viajante deveria trabalhar uma parte do dia em sua profissão. Se não o fizesse, não poderia dividir a refeição comum, diariamente servida a todos os utopianos. Quem não trabalhasse não poderia comer. Não havia perigos, imprevistos, surpresas e contratempos. Mas também não haveria o que se ver, porque todas as cidades eram rigorosamente iguais.

Com a restrição da liberdade de locomoção na sua ilha imaginária Morus coloca-nos um paradoxo: a imperfeição da república perfeita pode ser a medida exata da perfeição da república imperfeita. Morus foi um intelectual da renascença, um tempo de paradoxos, como aquele que se lê no inesquecível verso de Camões (c. 1524-1580) outro renascentista, para quem o amor é ferida que dói, mas que não se sente.


[1] Há muitas e excelentes traduções para o português. Destaco, entre outras, no Brasil, a tradução da Martins Fontes, com o prefácio, as observações sobre o texto, a introdução e as sugestões de leitura de George M. Logan e Robert M. Adams. A tradução foi feita por Jefferson Luiz Camargo e Marcelo Brandão Cipolla. Em Portugal há a tradução de José Marinho, com as notas e o posfácio de Pinharanda Gomes, publicada pela Guimarães Editora de Lisboa.
[2] Para uma introdução a esses livros, consultar o estudo preliminar de Eugenio Imaz em Utopias del Renacimiento, México: Fondo de Cultura Economica, 1991.
[3] Morus, Thomas, A Utopia, São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 79.
[4] Morus, Thomas, A Utopia, cit., pp. 110-111.
[5] Morus, Thomas, A Utopia, cit., p. 82.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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