Diário de Classe

Um elo entre o livro virtual, a hermenêutica e a fundamentação das ciências humanas

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13 de agosto de 2016, 8h05

Spacca
De minha parte, sempre fui um fã de livros. Desde adolescente cultivava o hábito de colecioná-los. E, evidentemente, o contato com o papel representava um elemento sensorial importantíssimo para essa relação passional. Quando a informática e o virtual atingiram o ponto do paroxismo digital, dei de ombros para aqueles que anunciavam o fim do livro “físico”. Confesso que, inclusive, nutria certa relutância pelo formato digital. Em meio a um certo neorromantismo, achava que a falta do contato com o papel tornaria menos charmosa a experiência da leitura.

Nos dias de hoje, mudei profundamente minhas ideias a respeito do livro digital. Na verdade, sou agora um entusiasta do formato. Encanta-me a ideia de ter acesso imediato a um conteúdo que, se ainda dependêssemos do modelo old-fashioned, teríamos que esperar horas, dias, semanas e até meses para nos ser entregues. Sem contar o fator ambientalmente correto. Enfim…

Faço esse introito porque, recentemente, experimentei mais um momento de êxtase possibilitado pelo livro digital. A editora Fondo de Cultura Económica vem disponibilizando nesse formato a tradução para o espanhol da obra completa de Wilhelm Dilthey (1833-1911). Trata-se de um monumento da Filosofia do século XIX, uma verdadeira “pirâmide do espírito” (para usar uma expressão de Hans-Ulrich Gumbrecht[1]), e agora, por causa do livro digital, ela aparece diante de nós em sua totalidade e em tão fácil acesso.

Dilthey é um autor tão importante quanto desconhecido do público jurídico em geral. Apesar da extensa produção ligada ao problema da fundamentação das ciências humanas (ou ciências do espírito) e seu papel fundamental na recuperação da hermenêutica nesse campo do conhecimento, poucos são os livros ou cursos de Teoria do Direito e hermenêutica jurídica que reconhecem o devido papel da obra de Dilthey. Com efeito, sem Dilthey, a hermenêutica contemporânea não seria o que ela é.

A coluna de hoje é para festejar essa divulgação mais ampliada da obra desse autor e, ao mesmo tempo, projetar algumas de suas intuições fundamentais que permanecem até hoje retidas em inúmeros trabalhos que se ocupam da hermenêutica jurídica. Antes, porém, cumpre salientar que, embora eu esteja aqui me referindo aos trabalhos de Dilthey disponíveis em língua espanhola, há excelentes traduções para o português, sendo digna de nota aquela feita por Marco Antônio Casanova de uma obra central no pensamento de Dilthey: Introdução às Ciências Humanas[2].

O trabalho de Dilthey é marcado pela busca de uma fundamentação filosófica para as ciências humanas (ou Geistswissenschaften, ciências do espírito, na expressão do filósofo). Esse objetivo pode ser descrito como uma tentativa de repetir Kant para alcançar um sentido diverso: assim como Kant produziu uma fundamentação filosófica para a epistemologia das ciências naturais, Dilthey pretendia que sua obra possibilitasse o mesmo para as ciências do espírito. Dizia-se, então, que, assim como Kant produziu uma “crítica da razão pura”, Dilthey pretendia fazer uma “crítica da razão histórica”[3].

Nesse contexto, a obra de Dilthey é marcada pela intenção de descolar as ciências humanas da tradição metafísica, procurando colocá-las no solo seguro da experiência concreta e, ao mesmo tempo, de declarar a independência metodológica desse campo com relação às ciências naturais. Assim, Dilthey colocava-se, ao mesmo tempo, nos antípodas da metafísica e do positivismo científico (que pretendia afirmar que as ciências da sociedade deveriam buscar nas ciências da natureza um aporte metodológico seguro que possibilitasse afirmar uma validade universal para o conhecimento por elas produzido).

Por um lado, a tradição metafísica estava incapacitada de produzir uma fundamentação das ciências do espírito porque, entre outras coisas, não podia oferecer uma explicação do indivíduo baseada na experiência. Para ele, apenas a experiência concreta, como experiência vivida e experiência histórica — e não a especulação — poderia se apresentar como o ponto de partida para a fundamentação das ciências humanas.

De outra banda, os métodos das ciências da natureza não ofereciam um caminho seguro para a epistemologia das ciências humanas. Segundo Dilthey, essa constatação poderia ser demonstrada por dois motivos: em primeiro lugar, haveria uma impossibilidade cognitiva: para a descrição dos fenômenos naturais, pressupunha-se uma separação total entre o sujeito que conhece o e objeto que é conhecido (segundo o pensamento padrão vigente no século XIX). Nas ciências humanas, por outro lado, essa separação seria impossível. Isso porque a experiência histórica só pode ser conhecida na medida em que vivenciada por uma consciência subjetiva. Logo, o sujeito que conhece participa, necessariamente, de seu objeto de conhecimento.

Dilthey afirmava ainda que o proceder das ciências da natureza, baseadas no princípio da causalidade, manifestava-se de um modo explicativo (vale dizer, uma lei da natureza é explicada com base numa relação de causa e efeito); ao passo que, no ambiente das ciências humanas, procuramos compreender (e não explicar) a experiência histórica e a experiência vivida. Desse modo, fica constituída uma diferença fundamental entre explicar e compreender que marcaria, em consequência, os espaços epistemológicos das ciências naturais e das ciências humanas[4].

A base mais fundamental para o desenvolvimento das ciências humanas será, para Dilhtey, em um primeiro momento, a Psicologia. Melhor dizendo: a ciência humana fundamental (da qual derivam todas as outras, história, sociologia, direito etc.) seria a Psicologia porque a base segura para a descrição da experiência vivida individualmente e da experiência histórica universal dependeria inexoravelmente de uma psicologia descritiva que pudesse estabelecer as condições para a compreensão das expressões de vida. Nesse aspecto, o que é vital e histórico é registrado, de forma mais originária, nas consciências dos indivíduos. Daí que o ponto de partida de qualquer investigação oriunda das ciências humanas deveria ser a “vida psíquica interna”. Mas, como o mundo histórico se faz a partir do compartilhamento de várias “vidas psíquicas internas” que precisaram ser compreendidas por outras (ou seja, o conhecimento da história exige que o sujeito saia da compreensão de si em direção à compreensão dos outros), a hermenêutica se impõe como método. Entre outras coisas, isso é assim porque a tentativa de compreender o que se passa na vida psíquica interna do outro está sujeita a mal-entendidos. Por isso, para compreender corretamente, seria preciso encontrar as condições adequadas de interpretação. Assim, deve-se, primeiro, interpretar e compreender a evidência mais imediata, que é a própria vida psíquica (o problema do autoconhecimento), para, depois, buscar as condições para interpretar e compreender a vida psíquica alheia.

O desenvolvimento da obra de Dilthey, contudo, é marcado por uma radical transformação em sua trajetória. É possível dizer que existe um Dilthey primevo e um Dilthey tardio. O primeiro estaria representado por essa breve descrição feita acima e que colocava a Psicologia como centro epistêmico das ciências humanas. O segundo seria caracterizado pela superação desse psicologismo em direção a uma verdadeira fundamentação hermenêutica das ciências humanas. Em outras palavras, no Dilthey tardio, a hermenêutica passa a exercer o papel que, antes, era da Psicologia. Na verdade, ocorre aqui uma ressignificação com relação ao papel da hermenêutica: de disciplina auxiliar, que oferecia o método para as ciências do espírito, a hermenêutica passa a ser ela mesma o fundamento dessas ciências. Essa mudança de rota no pensamento de Dilthey é muito pouco lembrada ou destacada. De algum modo, a posteridade coloca maior ênfase no Dilthey primevo, psicologista, do que no Dilthey tardio, que alça a hermenêutica para uma dimensão que, kantianamente, poderíamos chamar de “condição de possibilidade”. É importante registrar que esse Dilthey tardio será influência primordial na construção da fenomenologia hermenêutica de Martin Heidegger e estará, de certo modo, presente nos desenvolvimentos posteriores da hermenêutica.

Sem embargo, essa modificação profunda pode ser compreendida em face do contexto temporal e dos debates filosóficos de então. De fato, no final do século XIX e início do século XX, a Filosofia é marcada pelo combate ao psicologismo (a tentativa de fundar a origem radical de todo conhecimento humano na Psicologia). Tanto a tradição analítica quanto a tradição continental produzirão escolas que têm como ponto de partida a superação do psicologismo (basta lembrar Frege, entre os analíticos; e a fenomenologia de Husserl, entre os continentais). E é evidente que todo esse movimento da Filosofia influenciou a obra de Dilthey. Especialmente o impacto causado pelas Investigações Lógicas de Edmund Husserl.

A partir daí é possível dizer que Dilthey passa a abordar o problema da compreensão e da fundamentação das ciências humanas não mais desde a perspectiva da subjetividade, mas, sim, desde uma perspectiva ligada à “objetividade da vida”. Ou seja, o conhecimento produzido nas ciências humanas não está fundado numa descrição das condições psíquicas internas que levam os indivíduos a registrar suas experiências vitais; ao contrário, a validade de tal conhecimento está atestada por aquilo que o ser humano inscreve no mundo histórico, deixando suas marcas nos textos, nas artes, nos monumentos etc. A história é prenhe de registros “escritos” da vida. O resultado apresentado pelas ciências do espírito depende de compreender essas manifestações objetivas. Assim, a hermenêutica, enquanto “teoria da arte (Kunstlehre) de compreender as manifestações de vida fixadas por escrito, convertia-se no fundamento adequado para as ciências do espírito”[5].

Há vários procedimentos epistemológicos complexos envolvidos nessa “virada” da obra de Dilthey. Todavia, para os limites deste pequeno texto, quero apenas jogar luz ao tratamento que essa fase tardia do autor dá ao conceito de “comum” e o papel por ele desempenhado na hermenêutica e nas ciências humanas.

O que se chama de “comum” aqui remete à condição intersubjetiva válida e vinculante para um grupo de indivíduos que se encontram imersos e envolvidos por um horizonte partilhado, ou uma “esfera de comunidade” (algo que, mais contemporaneamente, aparece também em Peter Sloterdijk). “Toda manifestação de vida espiritual representa, no reino do espírito objetivo, um elemento comum. Cada palavra, cada gesto, cada obra de arte, cada ação histórica são compreensíveis porque há uma comunidade que une o que neles se manifesta (…) o indivíduo vive, pensa, e trabalha em uma esfera de comunidade.”[6]

A necessidade de pensar o “comum” aparece, posteriormente, no conceito de mundo de Heidegger e, mais contemporaneamente, na tentativa de explorar o sentido de um a priori compartilhado, como desenvolvido por Herbert Schnädelbach, Ernildo Stein e, no caso específico do Direito, Lenio Streck[7].

Notem: o conceito de comum, central para a hermenêutica desde Dilthey, é um elemento essencial para pensar a política e o Direito. Na verdade, o sentido e o significado que produzimos na política e no Direito só são possíveis em face do que se experimenta no âmbito “comum”. Claro que não estou afirmando que Dilthey tem a chave para abrir todas as portas desse monumento da política e do Direito. Menos que isso, o certo é que a passagem por sua obra constitui uma espécie de pedágio obrigatório.

O comum remete à tradição. Tradição, mais do que simplesmente um fóssil do passado, remete à entrega; à transmissão de uma geração a outra de tesouros culturais, dos quais a política e o Direito são a quintessência. Foi Peter Sloterdijk quem disse que a paleopolítica (a experiência coletiva e comunitária que acompanhava a humanidade antes de se tornar Grande, na polis grega ou na urbe romana) é o milagre da repetição do ser humano pelo ser humano[8]. Desvelar o que se esconde nas tramas da tradição é o que possibilita essa repetição. A experiência do comum é seu laboratório, e a hermenêutica, sua condição de possibilidade.


[1] Gumbrecht, Hans Ulrich. Graciosidade e Estagnação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
[2] Dilthey, Wilhelm. Introdução às Ciências Humanas. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
[3] Para análise mais ampla da questão, Cf. Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, especialmente o tópico 10.2.2.
[4] Stein, Ernildo. Racionalidade e Existência. O ambiente hermenêutico e as ciências humanas. 2 ed. Ijuí: Unijuí, 2008.
[5] Guervos, Luis Henrique de Santiago. Hans-Georg Gadamer y la Hermenéutica en el Siglo XX. Kindle Edition, 2012, pos. 1349.
[6] Dilthey, Wilhelm. El Mundo Histórico. Obras VII. México: Fondo de Cultura Económica, 2014, Kindle Edition, pos. 3496 e segs.
[7] Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, em especial o posfácio.
[8] Sloterdijk, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre a Hiperpolítica. São Paulo: Estação Liberdade, 1999, p. 20.

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