Opinião

Regularização fundiária como política de estado, e não de governo

Autores

10 de agosto de 2016, 6h43

Em outubro deste ano, comemoram-se os 15 anos do Estatuto da Cidade, um marco legislativo que, ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, possibilitou a concretização de vários dos direitos constitucionais relacionados à dignidade, igualdade e inclusão. No entanto, ainda antes da promulgação da Lei 10.257/2001, o município de Porto Alegre dava um importante passo em direção ao mesmo ideal que moveu, primeiramente, os movimentos sociais e, depois, o legislador a propor e aprovar o texto da lei: garantir direitos, por meio de instrumentos de política urbana.

No ano de 1994, a Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre (PGM/POA) tomou para si a responsabilidade de promover a regularização fundiária, na sua dimensão jurídica, na capital gaúcha. Ao incluir nas atribuições legais dos procuradores o ajuizamento de ações em nome de terceiros para regularização fundiária e criar uma estrutura permanente, contínua e com procedimentos estáveis, a advocacia pública municipal agiu de forma proativa, criativa e inédita, transformando a regularização fundiária em política de estado e garantindo a milhares de famílias o direito à propriedade.

A atuação da PGM/POA surgiu em um cenário em que as comunidades pleiteavam a regularização da área no orçamento participativo, o município fazia as obras, porém a titularidade seguia indefinida, causando incerteza jurídica aos possuidores, bem como impossibilidade de exercício de outros direitos decorrentes do reconhecimento da propriedade, tais como contrair empréstimo para financiamento da casa própria.

Da necessidade de garantir a propriedade e da compreensão dos princípios da segurança da posse que já naquela época eram propagados pela ONU/Un-Habitat, a PGM/POA assumiu a tarefa, sendo desempenhada até hoje. Não é tarefa fácil, exige diálogo permanente com outras instituições e articulação em busca de estratégias para superar os impasses e promover a regularização fundiária na sua plenitude, ou seja, com a entrega da matrícula do imóvel aos então possuidores.

A evolução da regularização fundiária em Porto Alegre acompanhou as alterações legislativas, sendo que a PGM/POA, pela experiência vivenciada, contribuiu ativamente para o aperfeiçoamento da legislação. Em 1994, foi aprovada a Lei municipal 7.433/94, que previu nas atribuições dos procuradores municipais atuar na defesa dos interesses dos cidadãos e entidades municipais necessitados, em questões relativas à regularização fundiária de terrenos urbanos, fornecendo orientação jurídica promovendo ações, contestando, reconvindo e recorrendo. Assim nasce a Equipe de Assistência Jurídica Municipal (EAJM), no âmbito da PGM/POA, sendo que os procuradores municipais passaram a representar as pessoas nas ações judiciais atuando em usucapiões. As usucapiões passaram a ser ajuizadas pelos procuradores municipais em benefício das pessoas que moravam nas áreas que o orçamento participativo definia como de regularização fundiária.

Em 1996, foi criado o Núcleo de Regularização de Loteamentos, embrião do tratamento coletivo da regularização fundiária. Regularizar um loteamento exigia aprovação de lei municipal instituindo área especial de interesse social, pois os padrões urbanísticos (tamanho de lote, existência de equipamentos públicos, tamanho da via) não eram os do entorno. Esse aspecto denomina-se dimensão urbanística da regularização fundiária e foi trabalhado a partir do advento do Estatuto da Cidade em 2001 e da alteração da Lei Federal 6766/79, incluindo a previsão das zonas especiais de interesse social. Ainda, para realização das obras, os proprietários que venderam os lotes foram notificados, foram ajuizadas ações judiciais exigindo a implantação das obras de sua responsabilidade, pois o tratamento da questão precisava ser na sua integralidade.

O Núcleo de Regularização de Loteamentos era coordenado pela PGM/POA e tinha a presença de outras secretarias, em especial da Secretaria de Planejamento municipal, que atuava com a Procuradoria, e uma forte articulação com a comunidade interessada. Os passos da regularização são lentos, quebram paradigmas, envolvem uma série de atores internos ao município e externos (Ministério Público, Judiciário, Registro de Imóveis). Tratar da irregularidade significa atuar no anticonvencional, nos problemas que a institucionalidade não responde com o tratamento uniformizado. Na medida em que as fases da regularização iam avançando, surgiam novos entraves, pois a administração pública e o registro de imóveis não estavam burocraticamente preparados para processos anticonvencionais como esses.

Em dezembro de 2006, por meio do Decreto 15.432, foi criada a Gerência de Regularização de Loteamentos, com atuação de procuradores e engenheiro, estes coordenando uma comissão intersecretarias responsável pela emissão de diretrizes para a aprovação dos projetos urbanísticos nas áreas de regularização fundiária. Em 2013, por meio do Decreto 18.471/13, foi criada a Procuradoria de Regularização Fundiária (Parf), órgão que unificou a Gerência de Loteamentos e a EAJM.

Em 2016, no âmbito da alteração de estrutura da PGM, criou-se a Gerência de Arquitetura e Engenharia, órgão integrante da estrutura oficial da PGM/POA, nos termos do Decreto 19.303/16, que tem por atribuição prestar assessoria aos projetos urbanísticos, às comissões, audiências e todas as demais necessidades para construção dos projetos específicos e das diretrizes gerais.

Na medida em que foram sendo introduzidos novos instrumentos (Estatuto da Cidade 2001, Minha Casa Minha Vida 2009), esses foram sendo aplicados, e disso decorreu a ampliação da equipe, a incorporação de técnicos de outras áreas e a atuação interdisciplinar e interórgãos que existe em Porto Alegre.

A grosso modo, em 1994, usucapião era o único instrumento que podia ser utilizado para regularização de áreas privadas nas quais não ocorreu a compra e venda, mas ocupação. O More Legal é utilizado para os casos em que ocorreram loteamentos clandestinos ou irregulares, regulariza toda a gleba, inserindo-a na cidade.

A usucapião é um instituto que existe para reconhecer a perda de uma propriedade. A pessoa que consta como proprietário em uma matrícula assim é considerado até que se demonstre o contrário (posse mansa, pacífica, para fins de moradia por mais de cinco anos até 250 m2, e até 15 anos nos demais tamanhos). Por isso, o processo para reconhecimento da perda da propriedade é complexo. Tem a citação de todos os lindeiros, todos os proprietários e cônjuges que constam nas matrículas e intimação da Fazenda Pública dos três entes federativos. É moroso e não foi pensado para situações coletivas como as trabalhadas nas áreas irregularmente ocupadas. Ao assumir a regularização fundiária como sua atribuição, a PGM/POA deparou-se com áreas ocupadas há mais de 30, 40 anos, porém sem infraestrutura, pois os moradores não eram os titulares da propriedade. No entanto, o processo de reconhecimento da perda formal da propriedade precisava passar por todas as etapas. Excessos de citações, intimações e repetição de atos cartorários eram sua característica.

Ao longo do período, foram entregues mais de 850 matrículas individuais, representando o número de famílias de baixa renda que tiveram sua propriedade reconhecida nas áreas de regularização fundiária assim trabalhadas a partir das prioridades definidas pelo Orçamento Participativo. Estão ainda em tramitação 191 processos.

Após o advento do Estatuto da Cidade, foi prevista a usucapião coletiva. Apesar de todas as dificuldades, a PGM/POA conseguiu concluir um processo coletivo, que reúne 92 lotes. Porém, os entraves das ações individuais repetiram-se na ação coletiva, e essa levou mais de 15 anos tramitando até o trânsito em julgado. A grande vitória é que os mandados para registros serão individualizados para cada lote, gerando matrícula especificada para cada moradia.

Nas hipóteses da existência de loteamentos (com venda dos lotes, não ocupação consolidada), desde o advento dos Provimentos More Legal, estes são utilizados, pois dão celeridade à tramitação. O primeiro loteamento regularizado foi em 2003: Residencial Vitória, ainda sob o marco do More Legal I. De lá para cá (os dados sistematizados são a partir de 2007), foram regularizados (entregue matrículas) cerca de 10 loteamentos, perfazendo mais de 700 lotes. Em andamento para regularizar pelo More Legal têm-se já ajuizados 15 loteamentos, perfazendo 1576 lotes. Não estão incluídas nessa base de dados as áreas públicas.

Atualmente, o trabalho mais intenso é nos processos de demarcação urbanística e legitimação da posse, instrumentos previstos pelo Minha Casa Minha Vida e que visam dar celeridade à regularização. Para tanto, foi desenvolvido um fluxo novo, prevendo contato direto por meio da compatibilização das ferramentas de informática com os registros de imóveis, assinatura digital e outros meios atuais que possibilitam atribuir a segurança e celeridade necessárias aos processos de regularização fundiária. Toda a tramitação da legitimação da posse está sendo em processo administrativo eletrônico (SEI), já em pleno funcionamento e uso. Duas demarcações urbanísticas estão em andamento, perfazendo 1.517 lotes.

No processo de evolução da regularização fundiária, a PGM/POA incorporou estrutura técnica, desenvolvendo metodologias e fluxos para agilizar os processos interno e externo de reconhecimento do direito de moradia às pessoas, sendo hoje uma atividade institucional incorporada, consagrada e tarefa permanente dos procuradores municipais de Porto Alegre.

Correlata a esse trabalho, importante atuação se dá nas comissões que discutem e aprovam as diretrizes e, posteriormente, os processos de regularização urbanística. A atuação em áreas já ocupadas, bastante consolidadas, o cumprimento das exigências das legislações setoriais que não dialogam entre si e os conceitos jurídicos que se concretizam a partir dos projetos específicos previstos nessas leis aumentam a complexidade e fazem com que o processo de interpretação da legislação e de construção de conhecimento interdisciplinar seja um desafio constante. Nesse particular, a função da PGM/POA na interpretação das leis frente aos casos concretos tem sido relevantíssima para destravar situações que pareciam insuperáveis, para estabelecer os limites jurídicos sustentáveis, bem como para formular as hipóteses de aplicação dos instrumentos existentes.

O resultado desse esforço está na voz de cada uma das milhares de pessoas beneficiadas nestes 20 anos de atuação da Procuradoria. Como os moradores do Residencial Vitória, que assim batizaram o antigo Beco dos Garcia após a regularização do loteamento, a primeira feita pela PGM/POA. Ou no olhar esperançoso de quem aguarda pela titularidade de seu imóvel, como a comunidade do Mariante, loteamento que carece de toda infraestrutura e cujo processo de regularização ainda em etapa embrionária. Em cada um dos cidadãos que obtêm ou lutam pelo direito à propriedade dos imóveis onde moram, por vezes há décadas, é possível visualizar a missão primordial da advocacia pública: atuar para garantir direitos.

No momento em que se debatem as administrações municipais em função das eleições dos novos gestores, sugerimos um olhar para essa importante matéria, pois a regularização fundiária é morosa, perpassa gestões e, a nosso ver, estruturas permanentes devem ter atribuição no tema, a fim de garantir a continuidade das ações independente dos gestores. Assim como em outras áreas consolidadas, regularização fundiária na sua dimensão jurídica precisa ser vista como função permanente e contínua da administração pública, independentemente do governo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!