Opinião

Distorções na condenação de segunda instância

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8 de agosto de 2016, 10h03

*Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta segunda-feira (8/8).

O Supremo Tribunal Federal deveria ser a última trincheira de defesa da Constituição. Assim foi no ciclo pós-promulgação da nossa Lei Maior, quando vivenciamos o maior período democrático do país, sob a garantia da corte suprema contra tentativas de desvios autoritários do Estado.

Por isso, causa estranheza o fato de o Supremo tentar promover a "justiça de ruas" ao decretar o fim da presunção de inocência, cláusula pétrea inserida no inciso 57 do artigo 5º da Constituição de 1988: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

O tema tem ensejado manifestações de juízes, promotores e até de colunistas, que repetem o argumento, falso, de que deixar de prender alguém após condenação em segunda instância equivale a golpear mortalmente a operação "lava jato" e o combate à corrupção. Falta de bom senso, de lógica jurídica e fartura de desinformação.

O processo que culminou com a decisão do STF não tem como origem crime de colarinho branco, como supõem seus defensores. A questão inicial envolveu um jovem pobre de uma cidade paulista, condenado por roubo. A mãe, empregada doméstica, trabalha na casa de uma advogada que agiu em defesa do rapaz sem nada cobrar.

O juiz não enxergou nele periculosidade, razão pela qual autorizou recorrer da sentença em liberdade. O Ministério Público aceitou a decisão e não recorreu. O Tribunal de Justiça de São Paulo, argumentando com base no clamor popular, e não em fatos atribuídos ao réu, decretou de ofício a prisão. Ao chegar o caso ao STF, por meio de habeas corpus, o Ministério Público se manifestou mais uma vez contrário à prisão, mas a corte a manteve.

O caso teve impactos. No dia seguinte, um Tribunal do Trabalho, na esteira da decisão, já proclamava que um processo trabalhista poderia desconsiderar a existência de recurso. A arbitrariedade alargava horizontes.

Hoje, chegamos ao absurdo de defender a canhestra tese de que a "lava jato" está ameaçada de morte se o STF corrigir a decisão tomada. Ora, o comando constitucional estabelece que a todos os brasileiros se assegura a liberdade até transitar em julgado a decisão condenatória. Apenas excepcionalmente, em casos de imperiosa necessidade, comprovadamente demonstrada, o ordenamento permite a segregação do acusado.

Se a Justiça tarda, a quebra da norma não irá apressá-la. É inadmissível transferir para o cidadão o fardo de o país ter uma Justiça desestruturada. A voz das ruas não deve ser o "leitmotiv" para a aplicação da Justiça. Responder a uma ação penal não significa ser culpado. Inocentes podem ser réus.

Como lembra o ministro Celso de Mello, 25% dos recursos penais que chegam ao Supremo são acolhidos. O STF já tentou implantar a decisão provisória de sentenças penais, por meio de proposta de emenda constitucional, rechaçada pelo Poder Legislativo. Não pode a corte agir como Assembleia Constituinte e invadir o terreno legislativo, expandindo a politização da Justiça.

A lei já define as circunstâncias que justificam a prisão preventiva antes do trânsito em julgado de decisão condenatória. São situações especialíssimas, nas quais o legislador definiu quando o interesse social justifica supressão da liberdade individual.

A decisão do Supremo desconsidera a delimitação legal e permite a prisão de réus condenados em segunda instância, mesmo os primários e de bons antecedentes.

Erro é deixar a critério de cada julgador o poder de levar o cidadão ao cárcere de acordo com regras por ele definidas. A consolidação da democracia brasileira exige respeito absoluto à Carta Magna.

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