Opinião

A advocacia não necessita de perdão, cumprir a lei já basta

Autor

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

8 de agosto de 2016, 15h40

“O perdão é sempre fácil de conceder, meu filho. O mais difícil é ter coragem de pedi-lo.” Morris West.

Foi noticiado pela revista eletrônica Consultor Jurídico, em 31 de julho, que o excelentíssimo desembargador federal doutor Paulo Espírito Santo, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, concedera perdão aos causídicos, em julgamento de um dos processos relacionados à operação “lava jato” Eis o teor do escólio:

“Eu perdoo o advogado que vem aqui defender clientes. Essa é a função do advogado e a gente tem que perdoar.”

Tal comentário, certamente, não foi proferido com a intenção de menoscabar, diminuir ou mesmo aviltar a função advocatícia, mormente a criminal. Ocorre que, em que pese o conhecimento e experiência do arguto desembargador, a frase acima transcrita tem o condão de, uma vez mais, transmitir à sociedade a falaciosa, ignóbil e perigosa ideia do que representa essencialmente o nobre e essencial labor da advocacia.

A Associação de Juízes Federais divulgou nota em apoio ao desembargador. Segundo a entidade de classe, tal comentário teria sido distorcido, eis que não se objetivou atacar a função da advocacia. Contudo, com as devidas e necessárias licenças, não foi isso que se depreendeu do áudio disponibilizado. Mesmo que a versão de que se trataria de resposta imediata estivesse correta, ainda assim faltaria razoabilidade no comentário. Isto porque o que poderia ser alvo de perdão é tão-somente um excesso eventualmente cometido por um causídico (frise-se e relembre-se que as partes e advogados têm imunidade nos limites da discussão da causa…). Mas jamais a função em si, o exercício da advocacia pode ser alvo de perdão. Do contrário estar-se-ia igualando o labor a uma atividade criminosa, nefasta…

Este pequeno ensaio tem por objetivo rechaçar, com as devidas e necessárias licenças, o incorreto jogo de palavras promovido pelo ilustre desembargador. Incorreto, saliente-se, por algumas razões:

1. Jamais a função de um juiz/desembargador/ministro, ao menos no Estado de Direito, deve se confundir com o mister religioso, é dizer, nunca coube (repita-se: em um Estado que se auto-proclama Democrático) ao Judiciário a tarefa de perdoar as pessoas (salvo do perdão judicial, nas hipóteses estritamente legais). A atividade judicante exige aplicação da lei, embora este dogma tenha se fragilizado recentemente, na escalda de eficientismo a todo custo.

2. De fato, há uma prestação de serviço entre advogado/cidadão acusado, quando não se tem a presença da Defensoria Pública. Contudo, antes de se defender um “cliente” se está a defender uma pessoa, um cidadão, merecedor da mesma dignidade (dignitatis humanae) de que toda e qualquer pessoa possui. 

3. A função do advogado não se limitar a “defender o cliente”. Tal qual a atividade judicante e ministerial, a função máxima da advocacia é garantir a manutenção e integralidade do Estado Democrático de Direito. Defendem-se direitos, muitas vezes em uma função contra majoritária;

4. A função do advogado não precisou, tampouco jamais precisará do perdão de quem quer que seja. Isto porque quem outorgou a missão da advocacia foi tão-somente a Constituição da República de 1988 que, queiram alguns ou não, continua em vigência.

5. O equivocado comentário termina por fazer acreditar que há um jogo maniqueísta entre bons e maus, a transmitir a famigerada ideia de que os juízes são os santos/salvadores e os advogados os pecadores merecedores da redenção.

A Constituição da República, quando trata das funções essenciais à justiça, dispõe no artigo 133 do Texto Maior da Nação, in litteris:

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

Define Gonet Branco que:

“A norma, como observou o ministro Celso de Mello, firma o princípio da essencialidade da advocacia e institui a garantia da inviolabilidade pessoal do advogado – RHC 81.750, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 10-8-2007.”[1]

Causa, minimamente, estranheza ser perdoado por cumprir e acatar os mandamentos da Constituição da República… Repita-se: ou se esqueceu o Texto Normativo Maior ou as recentes mudanças do Processo Penal promoveram a exclusão tácita de tal dispositivo… (fato já aqui denunciado pelo articulista, na constante e temerária tentativa de paulatina criminalização da advocacia).

Talvez tenha olvidado das lições firmadas por um sujeito, cujo brilhantismo o exime até mesmo do perdão dos bons. Eis as palavras de Rui Barbosa:

"nós juristas, nós os advogados, não somos os instrumentos mercenários dos interesses das partes. Temos uma alta magistratura, tão elevada quanto aos que vestem as togas, presidindo os tribunais; somos os auxiliares naturais e legais da justiça; e, pela minha parte, sempre que diante de mim se levanta uma consulta, se formula um caso jurídico, eu o encaro sempre como se fosse um magistrado a quem se propusesse resolver o direito litigiado entre partes. Por isso, não corro da responsabilidade senão quando a minha consciência a repele."

Por outro lado, ainda no bojo do comentário afirmou Sua Excelência, frise-se, em julgamento de Habeas Corpus, o desembargador, que o "o país não suporta mais a corrupção, a violência também, o desvio de conduta das autoridades. E o país não suporta mais a impunidade”.

No julgamento de um Habeas Corpus???

Sobre tal trecho, convém rememorar que a Constituição vem sendo diariamente desprezada, ultrajada e violada sem que tal reiteração não cause a devida e necessária comoção.

No que tange ao suposto desvio de conduta das autoridades, verificado por Sua Excelência, também ocorre quando os desígnios do Texto Constitucional são desrespeitados. Diversas são as mutações constitucionais marcadas pelo utilitarismo da exceção, a exemplo do que se faz com a presunção de inocência e o processo legal devido, a título meramente exemplificativo, eis que são inúmeras as malversações das garantias.  

Ainda na declaração, o desembargador federal dá conta da eficiência da imprensa e mídia do Brasil. Lamentavelmente, em alguns procedimentos (não se generalizará), nota-se algum tipo de preocupação com a opinião pública. Recomenda-se a pesquisa do caso da “Escola Base”, somente a título de exemplo. Ilustrativa é a passagem quando uma autoridade policial, em um inquérito em trâmite na Bahia, assevera que: “Tendo em vista que se trata de um acidente (…), com muita repercussão e cobrança da mídia, este signatário requisita que os Srs. Peritos desse Departamento, sempre prestimosos, procedam com os exames necessários (…) com a urgência que o caso requer”. Isso mesmo, caro leitor: a mídia dita o ritmo das investigações…

E a advocacia é que precisa ser perdoada?

Com as devidas venias, nunca será necessário à advocacia o perdão. Os homens até podem ser. Jamais a função, que materializa a defesa dos direitos humanos e dos cidadãos. Assim como não encontra lógica e respaldo argumentativo perdoar o Poder Judiciário, o Ministério Público. As funções não erram. Quem erra são os homens, e goste-se ou não todo o Judiciário é composto por homens, os quais, independentemente das funções exercidas, estarão passíveis ao cometimento de erros. E o judiciário — poder estruturante dos mais respeitados e importantes da república — não precisa, definitivamente, de perdão.

A advocacia também não.

Se algo precisaria ser perdoado — não me atreverei em perdoar, pois não me arvorarei a palmatória do mundo — é a constante relativização das nulidades ocorrida no processo penal, vide o inconstitucional e arbitrário pacote das dez medidas promovido pelo Ministério Público. Ou mesmo a transformação de julgamentos prévios em decisões condenatórias.

Sua Excelência, desembargador, por exemplo, afirmara que um fato (típico) estaria provado, antes mesmo da condenação criminal! Afirma isso em julgamento de habeas corpus… Quando um julgamento de necessidade de prisão preventiva se transmuda para discussão do mérito, há algo a ser perdoado, mas não se fará aqui, porquanto não sendo Hermes, escrevo tão apenas para os meus

Quando condenações criminais aplicadas em dezenas de anos são iniciadas em regime semi-aberto/domiciliar, com o objetivo republicano (?) de se fazer valer a delação premiada, há algo que precisaria ser perdoado…

Quando advogados são transformados em terroristas, há algo a ser perdoado…

Quando a presunção de inocência é um empecilho jurídico à efetivação da segurança pública, há algo a ser perdoado…

Quando o principal meio de prova do processo penal é o instrumento da delação premiada, há algo a ser perdoado…

Quando se afirma que “O problema é o processo”, haveria algo a ser perdoado…

O desrespeito à dogmática, aos princípios, este, sim, é verdadeiramente imperdoável.

Enfim, há e indubitavelmente sempre haverá muito a ser perdoado. Mas, para a infelicidade de muitos e para a esperança dos poucos que não serão perdoados, sempre haverá de existir alguém, que por meio das leis ou princípios, defenderá os imperdoáveis. Provavelmente, este alguém será um advogado. E que não precisará de perdão algum…


[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p 1047.

Autores

  • é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.

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