Observatório Constitucional

Proteção das marcas olímpicas e liberdade de expressão: fair play?

Autor

  • Beatriz Bastide Horbach

    é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

6 de agosto de 2016, 8h05

Spacca
Símbolo formado por cinco aros interligados que representam a união dos continentes; lema Altius, Citius, Fortius, que, do latim, significa "mais alto, mais rápido, mais forte"; tocha e chama olímpicas, que percorrem longo caminho desde Atenas, passando por diversas cidades: não é difícil associar instantaneamente qualquer um desses elementos ao megaevento esportivo Olimpíadas[1].

Com o início da Rio 2016, a atenção mundial volta-se à Cidade Maravilhosa. Estima-se que cinco bilhões de espectadores acompanhem o desempenho de ídolos como Usain Bolt, Michael Phelps, Serena Williams e outros mais de 10.500 atletas. São pessoas que ligam suas televisões tendo prévio conhecimento do formato básico do que esperam assistir, ou seja, sabem que é um evento que ocorre a cada quatro anos, inicia-se com uma festa de abertura que inclui desfile dos países participantes, e conta com uma série de esportes já tradicionalmente aguardados.

Tudo isso se deve em especial a um fator: o poder mundial da marca Olimpíadas e de todas suas derivações e associações.

No Brasil, a Lei 13.284/16 é o mais recente instrumento federal que trata do tema. A proteção da marca olímpica também recebe reforços da Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/96), da Lei do Desporto (Lei 9.615/98), e do Tratado de Nairóbi, voltado à proteção do símbolo olímpico e ratificado pelo Brasil em 1984 (Decreto-Lei 90.129/84). São legislações que garantem ao Comitê Olímpico a utilização exclusiva dos símbolos olímpicos, como tochas, mascotes e variações da palavra Olimpíadas, e que se repetem, de certa forma, em diversos ordenamentos jurídicos.

Com inúmeras restrições, a existência de demandas sobre propriedade industrial olímpica é inevitável nos mais de cem países-membros do Comitê Olímpico Internacional. Em razão da matéria, contudo, pouquíssimas disputas acabam submetidas e efetivamente apreciadas por cortes constitucionais. Um caso da Suprema Corte americana merece, todavia, destaque, por tratar dos limites da proteção de marcas e patentes em relação à liberdade de expressão e ao direito de manifestação dos homossexuais: o “San Francisco Arts & Athletics Inc. v. United States Olympic Committee” (SFAA Decision), de 1987.

Em 1981, uma organização sem fins lucrativos de São Francisco, nos Estados Unidos, a San Francisco Arts & Athletics (SFAA), começou a divulgar o que chamou de “Olimpíada Gay”. O objetivo principal seria reforçar o orgulho homossexual, especialmente em um momento marcado por diversas mortes associadas a Aids. Prevista para durar nove dias, teria a participação de centenas de atletas de diversos países, os quais marchariam em uma cerimônia de abertura. A SFAA chegou a planejar que uma “tocha olímpica gay” seria conduzida por duas mil pessoas, de Nova Iorque até São Francisco, local em que a “chama olímpica gay” seria acesa. Os atletas competiriam em 18 modalidades, e os vencedores receberiam medalhas de ouro, prata e bronze. Pôsteres, camisetas e anúncios de divulgação do evento passaram a ser veiculados na mídia.

No mesmo ano, a SFAA foi notificada pelo Comitê Olímpico Norte-Americano sobre a exclusividade da palavra Olimpíadas, com base no Ato dos Esportes Amadores (Amateur Sports Act), de 1978, que a autorizaria a proibir certas utilizações comerciais e promocionais da marca. Em um primeiro momento, a San Francisco Arts & Athletics aceitou e passou a denominar seus jogos “Gay Games”, mas voltou atrás pouco tempo depois, o que levou o comitê a judicializar a questão.

A corte distrital local decidiu, ao apreciar a matéria, que a palavra Olimpíadas pertencia ao Comitê Olímpico Norte-Americano sem que esse precisasse provar que a expressão estava sendo utilizada de forma confusa, apta a gerar dúvidas quanto a sua associação efetiva ao evento olímpico. Trata-se de requisito presente na Lanham Act, principal instrumento de proteção de marcas nos Estados Unidos, e comum em legislação da área. Entendeu-se, portanto, que, nessa hipótese, o Ato dos Esportes Amadores deveria prevalecer.

Em grau de apelação, o tribunal de origem manteve a decisão original. Todavia, três juízes discordaram e questionaram a legitimidade da interpretação conferida ao Ato dos Esportes Amadores, em especial no tocante à violação da liberdade de expressão. Em razão desse ponto em especial, o feito acabou aceito pela Suprema Corte americana e passou a integrar o rol não muito extenso de jurisprudência constitucional sobre o tema.

Um dos principais argumentos da SFAA foi, então, a inconsistência da superproteção da marca Olimpíadas, feita de forma tão restritiva e com base em um instrumento legislativo até então pouco conhecido. Nesse ponto, indicou dúvidas acerca da interpretação literal do texto legislativo.

A Suprema Corte, em decisão escrita pelo justice Powell, entendeu não ser conclusiva a mera interpretação literal do texto da lei, nos termos propostos pela recorrente. Decidiu ir além e verificar se o legislador teria tido a intenção de conceder exclusividade da palavra Olimpíadas ao Comitê Olímpico e, mais, se teria legitimidade para fazer tamanha concessão, possivelmente violando liberdade de expressão de terceiros.

Ao analisar a questão, concluiu que o Congresso teve, sim, intenção de garantir que o comitê continuasse a executar suas funções primárias da melhor forma possível. Ao ser detentora exclusiva da palavra Olimpíadas, teria maiores condições de efetivamente criar e desenvolver a ideia que temos hoje ao vermos a marca e a associarmos ao megaevento olímpico. A exclusividade era razoável, já que foi o Comitê Olímpico, por meio de seu trabalho, que desenvolveu e deu alma à marca, e muito do poder de uma marca advém do seu uso limitado.

A SFAA alegou, ademais, que a Primeira Emenda proibiria o Congresso americano de conferir exclusividade do uso de uma palavra genérica, de origem histórica, a uma organização privada. Dessa forma, ela passaria e ter o poder de decidir em quais situações sua marca poderia ou não ser utilizada, possuindo uma discricionariedade apta a discriminar minorias, de acordo com sua vontade. Apontou que o Comitê já aprovara o uso da marca para olimpíadas infantis, para eventos organizados por policiais ou por escolas; porém, não a autorizara para a realização de olimpíadas da terceira idade e, no caso, dos homossexuais.

A Supreme Court fundamentou, nesse ponto, que entende que muitas palavras não são sempre fungíveis e facilmente substituídas, e que a supressão de algumas delas podem, sim, gerar o risco de aniquilar determinadas ideias. Esse não seria o caso, todavia, da palavra objeto da disputa.

Para a Suprema Corte, o Congresso americano foi razoável ao concluir que a palavra olimpíadas era produto do trabalho, talento e energia dispensados pelo Comitê Olímpico ao longo dos tempos. Fez, para tanto, breves considerações sobre as origens dos jogos e seu resgate aos tempos modernos, frisando que foi o Comitê Olímpico Internacional que definiu as regras e os procedimentos que guiam os jogos atuais, exatamente nos termos que todos conhecemos. O Congresso não destacou uma palavra qualquer e, sem motivos, atribuiu a uma determinada organização. Havia, portanto, um forte sentido na regulamentação.

A SFAA, ao vender camisetas, botons, adesivos com o título “Gay Olympic Games” poderia induzir à confusão e estaria a utilizar-se do “magnetismo comercial” da marca. A imagem que a SFAA pretendeu passar com os seus jogos, por meio do procedimento seguido, como a condução da tocha e a premiação dividida em ouro, prata e bronze, não tinham relação com as Olimpíadas da Grécia Antiga, mas, sim, guardavam estreita vinculação com as realizadas atualmente. A imagem invocada era exatamente a mesma que fora cultivada cuidadosamente pelo Comitê Olímpico.

Outro ponto seria o interesse do Congresso em garantir que o produto Olimpíadas continuasse a ser executado com qualidade, de forma a trazer benefícios ao público. A corte invocou, nesse sentido, princípios do Comitê Olímpico que exaltam a união dos povos, o desenvolvimento dos princípios físicos e morais, a construção de um mundo melhor e mais pacífico, causas que devem ser incentivas e, portanto, passíveis de certo incentivo pelo Congresso.

Para a SFAA, a utilização da palavra Olimpíadas em seus jogos foi com objetivo de transmitir uma mensagem política sobre o status representado pelos homossexuais na sociedade. Sua proibição ocasionaria supressão do principal objetivo da associação e representaria um duro golpe na defesa dos direitos dos homossexuais. Em resposta, a corte anotou que proibir o uso da palavra não impediria a SFAA de continuar divulgando sua mensagem. Outras expressões poderiam ser utilizadas — tanto que, em eventos posteriores e com formato semelhante, foi adotado o nome “Gay Games”.

A decisão do tribunal de origem acabou por ser confirmada pela Suprema Corte americana, que rejeitou o argumento de que a autorização concedida pelo Congresso americano ao Comitê Olímpico configuraria ofensa à Primeira Emenda. Também, afastou a alegação de que a SFAA teria direito constitucionalmente garantido à utilização da palavra como veículo de defesa da reafirmação dos direitos homossexuais.

Em manifestação dissidente, justice Brennan indicou que o pronunciamento da corte foi falho ao apreciar a interdependência entre o Comitê Olímpico e os Estados Unidos, já que a transferência de tamanha exclusividade poderia, sim, gerar violação ao discurso não comercial. Entendeu, portanto, que se estava a falar de uma ação governamental que violaria a Constituição por impor restrições muito mais rígidas às impostas às marcas em geral. Lembrou, nesse aspecto, que o Comitê Olímpico Norte-Americano desempenha uma distinta, mas tradicional função de representação governamental: ele representa a nação para a comunidade internacional. Prova disso era a influência do governo para que o comitê nacional boicotasse as Olimpíadas de Moscou, em evidente manifestação de conexão.

Brennan ressaltou que o comitê deve ter meios de impor sua marca, mas não a ponto de ter a arbitrariedade de regular a liberdade de manifestação e limitar o desenvolvimento de ideias políticas e sociais. Ele lembrou que a corte, em casos sobre a liberdade do uso de linguagem em comerciais, concluiu que a língua, inclusive em um contexto comercial, pertence ao público, ao menos que haja especial interesse governamental e que seja apenas na proporção necessária à efetiva proteção. Por esses motivos, a SFAA poderia sim utilizar a palavra Olimpíadas para designar seu evento, no que foi acompanhado por outros dois colegas.  

A proteção comercial de determinadas palavras é necessária e serve para afastar os consumidores de eventuais fraudes e, ao mesmo tempo, garantir que seus proprietários tenham condições de continuar prestando serviços de qualidade. Todavia, justamente por muitas vezes regular o principal objeto da liberdade de expressão — nesse caso, as palavras —, a proteção às marcas deve ser cautelosa e pontual, de forma a não esvaziar o discurso dos que querem se fazer ouvir e defender seus ideais. É o fair play que também na esfera constitucional não pode ser esquecido por seus jogadores.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] Artigos consultados: Opinion of the United States Supreme Court in San Francisco Arts & (and) Athletics, Inc. v. United States Olympic CommitteeThe Trademark Reporter, Vol. 77, Issue 4 (July – August 1987), pp. 350-374; Revisiting San Francisco Arts & (and) Athletics v. United States Olympic Committee: Why It Is Time to Narrow Protection of the Word Olympic. University of Hawai'i Law Review, Vol. 24, Issue 2 (Summer 2002), pp. 729-762; Trademarks, Speech, and the Gay Olympics Case. Boston University Law Review, Vol. 69, Issue 1 (January 1989), pp. 131-186.

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    é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen, Alemanha e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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