Opinião

Na reta final do prazo para regularização, multiplica-se a insegurança

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5 de agosto de 2016, 6h44

No dia 27 de julho, ganhou enorme destaque o fato de que alguns advogados criminalistas se insurgiram contra as (in)determinações da Lei 13.254, de 13 de janeiro de 2016, que dispõe sobre o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), popularmente conhecida como Lei de Repatriação.

A nova legislação — a partir da regularização de recursos de origem lícita, mas não declarados oficialmente ou declarados com omissões ou incorreções, de pessoas físicas ou jurídicas, que tenham sido transferidos ou mantidos no exterior até o dia 31 de dezembro de 2014 — esperava injetar uma grande quantidade de recursos no país.

De acordo com o diploma legal em debate, pessoas que ocupavam cargos, empregos ou funções públicas no dia da promulgação da lei não podem aderir ao programa, valendo idêntica regra para seus cônjuges e parentes consanguíneos e afins até segundo grau ou por adoção.

Para incentivar a declaração dos recursos mantidos irregularmente no exterior, a Lei da Repatriação prevê a anistia de todas as obrigações de natureza cambial e financeira, a remissão de créditos tributários, a redução integral das multas de mora, a extinção da multa pela não entrega da declaração de capitais brasileiros no exterior e a extinção da punibilidade de diversos crimes, sobretudo os de natureza tributária e previdenciária, além da evasão de divisas e da lavagem de dinheiro.

Logo após a promulgação da lei, o governo acreditava que seriam arrecadados aos cofres da União valores entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões. No último mês de abril, no entanto, com o início do programa de repatriação, as previsões já eram bem menos otimistas, com expectativas de recolhimento de R$ 21 bilhões a R$ 25 bilhões.

Ocorre que, faltando três meses para o encerramento do programa de repatriação, que acaba em 31 de outubro deste ano, o governo arrecadou, até o presente momento, somente R$ 8 bilhões, fato que, como será abordado adiante, seguramente foi motivado pelas inúmeras impropriedades contidas no diploma legal em debate.

A incompreensão sobre as delimitações do RERCT fez com que a Receita Federal, em 11 de julho de 2016, aprovasse o Ato Declaratório 05, que, no esquema de perguntas e respostas, busca interpretar e explicar os pontos polêmicos contidos na Lei de Repatriação[1].

Não obstante a aparente boa intenção que permeou a elaboração do diploma, o tiro acabou saindo pela culatra. Os esclarecimentos não foram aptos a solucionar as problemáticas em torno da repatriação, e a baixa adesão ao programa, somada ao lobby de alguns advogados, fez com que as críticas à lei fossem debatidas em reunião ocorrida, no dia 27 de julho, entre o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro da Fazenda Henrique Meirelles.

Entre as críticas levantadas está, inicialmente, a de que, para regularizar esses recursos, é necessário pagar uma multa de 15% da integralidade do montante que circulou na conta existente no exterior e igual porcentagem como recolhimento de tributos.

Ou seja, os que aderirem ao programa de repatriação terão que pagar 30% de todo o valor que tenha transitado por suas contas no exterior antes de 31 de dezembro de 2014, fazendo constar, em suas declarações, todas as movimentações ocorridas.

Essa situação, além de tornar ainda mais complexa a elaboração da declaração necessária para repatriação — potencializando, por via de consequência, os riscos tributários e penais —, cria situações esdruxulas, nas quais o contribuinte terá que pagar, ao governo brasileiro, caso deseje optar pela repatriação, valor maior do que o próprio saldo restante no exterior.

Seria muito mais estimulante e seguro para o contribuinte, portanto, se o valor tomado como base para a tributação e para a multa fosse aquele existente no exterior em 31 de dezembro de 2014, como se fosse tirada uma foto do saldo da conta na referida data, e não todo o montante dos recursos que tenham transitado pela conta da pessoa, quando se teria um filme das movimentações.

Ademais, ainda que se concordasse com a ideia de que o filme dos recursos é que deve ser considerado para repatriação, a lei não deixa claro quais cenas da película deverão ser declaradas.

Outra questão que têm gerado enorme insegurança, sobretudo entre os criminalistas, decorre da imprecisão no que concerne o prazo prescricional dos crimes relacionados aos recursos declarados.

Explica-se: a Receita Federal, na pergunta 30 do Ato Declaratório Interpretativo 05, em perfeita consonância com o que dispõe a Súmula Vinculante 8 do Supremo Tribunal Federal[2], afirmou que, se for o caso, fiscalizará os declarantes pelo prazo de cinco anos contados a partir de 1º de novembro de 2016, durante os quais a pessoa deverá guardar os documentos que ampararam a declaração.

Contudo, se o contribuinte não declarar a integralidade dos recursos, poderá, como já visto, ser investigado por outros crimes relacionados ao delito anistiado com a repatriação. E, como não há na Lei de Repatriação uma norma que possa afirmar, com clareza, se o prazo para essa fiscalização será de cinco anos — como disposto na decadência tributária descrita no Código Tributário Nacional —, ou observará o artigo 109, incisos I a VI, do Código Penal[3], fica clara a insegurança jurídica que tem atingido diversos dos contribuintes que pretendem repatriar seus ativos mantidos no exterior.

Apenas para ilustrar a situação, é importante frisar que os crimes de evasão de divisas e de lavagem de dinheiro, por exemplo, só prescreveriam, pela pena in abstrato, em 12 anos e 16 anos respectivamente, prazo, como se vê, bem superior ao contido no já mencionado Ato Declaratório Interpretativo da Receita Federal.

Ainda mais preocupante do que todas essas questões é verificar que, uma vez mais, o Legislativo criou um diploma legal que contém, em seu bojo, flagrante violação ao atualmente relativizado, para não dizer banalizado, princípio da presunção da inocência.

A conclusão contida no parágrafo acima se baseia em simples interpretação do artigo 1º, parágrafo 5º, inciso II[4], da lei em comento, o qual afirma que a repatriação não poderá ser efetivada pelo contribuinte que já tiver sido condenado, em primeira instância, pelo rol taxativo de delitos previstos no artigo 5º, parágrafo 1º, do diploma em debate[5].

Em outras palavras, mesmo sem trânsito em julgado de eventual condenação, o declarante não poderá integrar o RERCT, mais um exemplo de que o artigo 5º, inciso LVII, da Carta Magna, que prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, foi rasgado, tornando ainda mais crítico o perigoso cenário que começou a ser delineado com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Habeas Corpus 126.292/SP, conforme já tivemos a oportunidade de anunciar[6].

Menos grave que, em cenários de total escuridão como o presente, algumas luzes continuam a brilhar, como se depreende de recente e importante decisão proferida, pelo magistrado da 13ª Vara Federal de Porto Alegre Leandro da Silva Jacinto, nos autos de Mandado de Segurança Preventivo, que autorizou um réu em processo criminal ainda sem trânsito em julgado a integrar o programa de repatriação.

A atual e profunda crise pela qual passa a economia brasileira já não é, há alguns meses, novidade para ninguém.

Claro está, portanto, que um alto índice de adesão ao RERCT traria, ao governo, não só os benefícios diretos (multas e tributos relacionados aos valores repatriados), mas também indiretos, na medida em que, uma vez injetados no Brasil, esses montantes seriam utilizados para aquisição de bens e consumo e investimentos, gerando, consequentemente, uma gama de novas oportunidades para amenizar a famigerada crise econômica.

Ainda assim, e o prazo para declaração já está entrando em sua reta final, o governo, mesmo ciente de todos os benefícios que o alto índice de valores repatriados traria para o país, bem como consciente das críticas apontadas acima e da insegurança que a não resolução destas tem trazido para o contribuinte, permaneceu irredutível e não promoverá mudanças na lei, postura essa, segundo Meireles, que será adotada para “que os contribuintes tenham segurança”.

Moral da história: para evitar a insegurança, vamos manter a lei como está, na mais completa insegurança…


[1] Receita Federal do Brasil. Disponível em <http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/dercat-declaracao-de-regularizacao-cambial-e-tributaria/perguntas-e-respostas-dercat> Acesso em jul/2016.
[2] Súmula Vinculante 8: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam da prescrição e decadência do crédito tributário”.
[3] Artigo 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:
I – em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;
II – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;
III – em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito;
IV – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;
V – em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois;
VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.
[4] Art. 1º, § 5º: Esta Lei não se aplica aos sujeitos que tiverem sido condenados em ação penal:
II – cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do art. 5º, ainda que se refira aos recursos, bens ou direitos a serem regularizados pelo RERCT.
[5] Art. 5º, § 1º:  O cumprimento das condições previstas no caput antes de decisão criminal, em relação aos bens a serem regularizados, extinguirá a punibilidade dos crimes previstos:
I – no art. 1º e nos incisos I, II e V do art. 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990;
II – na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965;
III – no art. 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV – nos seguintes arts. do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando exaurida sua potencialidade lesiva com a prática dos crimes previstos nos incisos I a III:
a) 297; b) 298; c) 299; d) 304;
V – (VETADO);
VI – no caput e no parágrafo único do art. 22 da Lei no 7.492, de 16 de junho de 1986;
VII – no art. 1o da Lei no 9.613, de 3 de março de 1998, quando o objeto do crime for bem, direito ou valor proveniente, direta ou indiretamente, dos crimes previstos nos incisos I a VI.
VIII – (VETADO).
[6] Consultor Jurídico. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2016-fev-19/daniel-burg-supremo-contramao-garantias-fundamentais>. Acesso em jul/2016.

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