Opinião

Exemplos dos Estados Unidos e Canadá para melhorias no Carf

Autor

  • Marcos de Aguiar Villas-Bôas

    é advogado conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

4 de agosto de 2016, 6h44

Em se tratando de políticas públicas, não se pode tomar decisões sem conhecer as melhores teorias e práticas do mundo. Se viermos a ter contato com seres de outros planeta, também será prudente conhecer as suas políticas. Para buscar excelência, é preciso conhecer, dentro do possível, tudo o que existe de mais avançado.

A ideia “nacionalista ingênua” de que estamos bem servidos e não devemos olhar para fora é enganosa. Muitas das nossas políticas públicas são atrasadas, o que é compreensível, pois, dentre outros problemas, o Brasil tem menos tempo democrático do que os países desenvolvidos em geral. Passamos, por exemplo, décadas sob uma Ditadura Militar em período recente.

Além disso, nosso nível de inter-relação e intercâmbio de informações com o mundo ainda é diminuto, de modo que ficamos frequentemente distanciados das vanguardas.

Por outro lado, não se pode assumir a ideia oposta e simplesmente copiar instituições e políticas que não nos cabem, como o Brasil já fez muito, consequência do que Roberto Mangabeira Unger denomina de “colonialismo mental”[1].

É com essa visão complexa que devem ser analisadas as, já mencionadas em textos publicados na ConJur[2][3], United States Tax Court e a Tax Court of Canada, de forma a buscar ideias, inovadoras ou não, para o aperfeiçoamento do Carf.

O Carf define a relação tributária e é, ao mesmo tempo, uma consequência dela. O órgão fixa, em âmbito administrativo federal, o que é tributável e o que não é, devendo transmitir imensa transparência, lisura, imparcialidade e qualidade técnica. Esta série de textos tem o fim de ajudar a alcançar esse objetivo.

No início do sistema tributário americano, entre o final do século XIX e início do XX, os contribuintes precisavam necessariamente pagar os tributos para, então, questioná-los por meio de um pedido de restituição. Era uma sistemática bem rústica, que garantia a arrecadação em detrimento do direito de defesa do cidadão.

Em 1924, entretanto, foi criado o Board of Tax Appeals (BTA), órgão administrativo composto por pessoas da Receita Federal dos Estados Unidos (Internal Revenue Service – IRS) formado para permitir o questionamento das cobranças de tributos antes do seu pagamento. Até 1926, não era permitida a discussão judicial das suas decisões.

Na atualidade, para ingressar no Judiciário americano com intuito de discutir uma cobrança tributária, é preciso realizar o pagamento do tributo. Essa regra faz sentido num bom sistema de precedentes e com uma relação tributária mais horizontal, como acontece nos Estados Unidos.

No Brasil, ela geraria provavelmente muitos riscos de arbitrariedades por parte do fisco e, nesse sentido, é positivo exigir apenas garantia ou até liberá-la em caso de concessão de liminar. Cabe ao juiz, em análise preliminar do caso concreto, decidir sobre uma aparente existência do direito que permita ao contribuinte discutir sua dívida sem desembolsar nada.

No Canadá, foi criado em 1917 um modelo com um órgão fiscal de julgamento (Board of Referees) e uma corte com características judiciais (Exchequer Court).

Em 1923 o Board of Referees foi extinto com o intuito de serem realizados mais acordos entre o fisco e contribuintes para solucionar os litígios. Aqueles que quisessem discutir podiam recorrer diretamente para a Exchequer Court.

Em 1946 foi criado um órgão para preencher novamente a primeira instância administrativa (Income Tax Appeal Board), cujo recurso continuava indo para a Exchequer Court. A Tax Court of Canada foi criada oficialmente com esse nome em 1983.

De volta aos Estados Unidos, com o passar do tempo, o BTA americano foi ganhando cada vez mais características de uma corte de julgamento, recebendo o nome de Tax Court of the United States em 1942.

Foi, contudo, apenas em 1969 que se decidiu transformar esse órgão no que eles chamam de corte do artigo 1º da Constituição, criada pelo Legislativo, mas uma espécie de corte judicial especial, que não é um braço do Judiciário propriamente, nem segue as mesmas regras das cortes judiciais.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, por sinal, confirmou a natureza judicial das decisões da US Tax Court no julgamento do caso Freytag v. Comm’r em 1991.

Algumas diferenças entre a US Tax Court e as demais cortes judiciais é que os juízes não têm vitaliciedade, como acontece, em regra, no Judiciário americano. O mandato é de 15 anos, os salários podem ser diminuídos pelo Congresso e eles podem ser exonerados por diferentes comportamentos considerados inadequados, como ineficiência, negligência e atos de deslealdade.

Um problema da US Tax Court é que os juízes são nomeados pelo Presidente da República, um erro grave, pois tal sistemática enfraquece a meritocracia, além de gerar riscos de falta de autonomia e, consequentemente, de menor imparcialidade.

Essa conferência de poder excessivo ao Presidente é característica do Presidencialismo Americano, infelizmente copiada no Brasil. A péssima sistemática de escolha dos ministros do STF, por exemplo, é uma cópia americana, que também deixa a decisão sob quase completa liberalidade do Presidente.

O modelo atual do Carf revela problemas similares. Ainda que não haja má fé nas indicações dos conselheiros representantes dos contribuintes, a livre escolha por critérios frouxos pode levar a favorecimentos em face de interesses pessoais ou de grupos.

Corre-se, assim, o risco de nomeação de conselheiros recém formados e/ou sem razoável experiência em contencioso administrativo e/ou sem bom conhecimento em tributação federal, simplesmente por conta de terem bons contatos, enquanto que há dezenas ou centenas de interessados mais bem preparados do que eles para o cargo, mas que não tinham relacionamentos dentro das entidades com poder de indicação.

Só a expressão “representantes de” já é um erro em si e, enquanto mantida essa sistemática, como as palavras têm força, deveria haver mudança para “indicados por”. Os representantes das partes são os procuradores e os advogados, e não os conselheiros, algo que ainda parece não ser compreendido por muita gente.

Na US Tax Court, os próprios juízes elegem um Chief Judge, que é o correspondente, de certa forma, ao Presidente do Carf. Esse é um procedimento que dá mais autonomia do que o brasileiro, de livre escolha pelo Ministro da Fazenda.

Como é natural no Poder Judiciário, os juízes da US Tax Court e da Tax Court of Canada podem ter assistentes de maneira formal, legalizada, dando-lhes condições para julgar mais casos e com mais qualidade num menor espaço de tempo.

Esses assistentes poderão adquirir conhecimento que lhes levará a serem, eles mesmos, bons juízes no futuro. Essa troca de experiências e de posições é natural nas estruturas de relações humanas e normalmente apresenta eficiência.

A participação de advogados e até de indivíduos de outras áreas, como contadores, entre os assistentes dos juízes é vista como uma possibilidade de os contribuintes terem voz na US Tax Court.

É um modelo sugestivo para o Carf. Em lugar de julgadores indicados por fisco e contribuintes, formato que gera os problemas apresentados neste e noutros textos, os juízes concursados poderiam ter, de forma paritária, assistentes com experiências ligadas ao fisco e aos contribuintes, mantendo, assim, a troca de conhecimento no órgão.

Em regra, o prazo para se defender de um auto de infração federal nos Estados Unidos e no Canadá é de 90 dias, outra ideia a ser estudada pelo Brasil. Não há qualquer razão relevante para conferir um prazo tão curto como 30 dias para os contribuintes, pois, muitas vezes, as matérias são complexas e exigem apresentação de milhares de páginas de documentos.

Enquanto os fiscais levam, em vários casos, 1 ou 2 anos fiscalizando, além de terem prazo decadencial de 5 anos, o contribuinte tem apenas 30 dias para se defender e, durante o processo administrativo, ainda costuma sofrer limitações ao seu direito de apresentar documentos após a defesa.

Parece uma intransigência sem razão, que limita o direito fundamental de defesa. Caso se entenda que a mudança para 90 dias seria drástica, pode-se tentar inicialmente um prazo de 60 dias.

Após autuado, o contribuinte apresenta uma defesa, que vai direto para a US Tax Court, não necessitando passar por um julgamento de primeira instância, como no Brasil e no Canadá. Não há atualmente dever de depósito, nem muito menos de pagamento do tributo para se defender perante a corte tributária.

Há um interessante órgão para evitar o prosseguimento de conflitos (Office of Appeals) até a US Tax Court. Ele fica administrativamente dentro da IRS, mas age com independência, funcionando como mediador para fomentar acordos entre ela e os contribuintes. Vale a pena tratar desse órgão em texto futuro.

No Canadá, o contribuinte apresenta dentro dos 90 dias uma espécie de defesa para a Canada Revenue Agency (CRA) e, se ficar inconformado com o resultado do julgamento, terá mais 90 dias para questioná-lo junto à Tax Court.

A US Tax Court e a Tax Court of Canada não têm uma Câmara Superior de Recursos Fiscais (Csrf), como o Carf, que fica revendo boa parte dos casos julgados pelo órgão. Isso é desnecessário e deveria desaparecer, pois, dentre outros problemas, gera ainda mais demora na conclusão do processo.

Quanto mais longo for o processo tributário, maior será o tempo para a Receita Federal do Brasil (RFB) arrecadar e para o contribuinte saber se deixará ou não de ser devedor. A questão do tempo de demora para solução de conflitos tributários é essencial no Brasil, favorece apenas o sonegador e precisa ser enfrentada imediatamente, sendo a reestruturação do Carf um bom momento para isso.

Pode até ser criado um procedimento para uniformização de entendimentos sobre questões que receberam posicionamentos contraditórios no Carf, mas não continuar a Csrf funcionando como uma terceira instância.

O Recurso Especial deveria ser abolido, sendo criado um mecanismo de solução de conflitos com propositura pelos próprios conselheiros, de modo que a Csrf continuaria existindo para se reunir de 90 em 90 dias e solucionar os eventuais conflitos suscitados durante os julgamentos das câmaras baixas, que ficariam sobrestados aguardando a uniformização.

Após o julgamento da Csrf, as câmaras baixas teriam que seguir o seu entendimento uniformizador de jurisprudência, a menos que trouxessem novos fortes argumentos não considerados por ela para ir contra a sua posição.

A hipótese atual de recurso para a Csrf é a existência de um julgamento do Carf que tenha revelado entendimento diferente daquele apresentado no Acórdão do qual se recorre. Devido ao modelo paritário do órgão e à corrupção, há entendimento para todos os gostos. Em praticamente qualquer matéria, por mais absurdos que sejam os posicionamentos, é comum encontrá-los em algum Acórdão do Carf.

Abre-se uma terceira instância, na qual os contribuintes pouco ganham, sobretudo quando se trata das matérias que envolvam altos valores, pois os conselheiros representantes da RFB se alinham em seu favor e o Presidente das turmas da Câmara Superior, com o poder do voto de qualidade, é sempre o Presidente do Carf, que, estatisticamente, decide em favor da RFB em quase todos os casos, garantindo que ela dificilmente perca as grandes questões controversas.

Conforme os textos anteriores, o modelo paritário gera inúmeras distorções, como essa agora mencionada, pois cria uma visão de órgão repartido, em luta de classes, o que incentiva julgamentos parciais e práticas de corrupção.

Após o julgamento pela US Tax Court e pela Tax Court of Canada, o contribuinte recorre, em regra, diretamente para as cortes federais existentes em cada região. É como se, no Brasil, o Carf fosse um tribunal especial judicial e o resultado do seu julgamento fosse objeto de recurso para o Tribunal Regional Federal.

O Brasil precisa analisar com cuidado o seu atual modelo de contencioso administrativo e judicial, cada qual com 3 instâncias. Se considerarmos STJ e STF como uma instância cada um, são 7 instâncias no total. É completamente inviável.

Se for o caso, é preciso alterar, inclusive, a Constituição, para que o processo tributário ganhe mais agilidade junto com aumento de qualidade. O Brasil não pode ter medo de reformas institucionais e estruturais. Elas devem ser bem estudadas e implementadas gradualmente, mas é preciso progredir, acompanhar os avanços e atender às necessidades contextuais do país.

Essas instâncias de discussão não garantem julgamentos de qualidade, pois são mal desenhadas. É possível fazer uma reforma estrutural para, de uma só vez, tornar o processo tributário mais eficiente e justo, com uma melhor integração entre o administrativo e judicial, que pode se aproximar, talvez, dos modelos americano e canadense, eliminando o atual formato da Csrf, como proposto, e os julgamentos de questões tributárias por juízes singulares em primeiro grau judicial.

Haveria, assim, o julgamento na DRJ, o julgamento em um novo Carf – nos moldes sugeridos neste e nos dois textos anteriores – e, então, o recurso iria direto para o TRF, simplificando, assim, o processo tributário ao mesmo em que se teria um Carf mais imparcial e com maior qualidade nos julgamentos.

Quantidade não é qualidade, e isso vale para a quantidade de tributos e normas. A US Tax Court tem apenas 19 juízes e a Tax Court of Canada tem 22. Ambas são cortes itinerantes, ou seja, realizam julgamentos nos diferentes estados dos seus países, tornando desnecessário, muitas vezes, o deslocamento dos contribuintes.

Isso é possível porque as suas quantidades de processos são infinitamente menores do que a do Carf. É preciso fazer, imediatamente, com o sistema tributário brasileiro o mesmo que deve ser feito urgentemente com o contencioso tributário: uma reforma institucional completa que o reduza em quantidade e o aumente em qualidade.

A baixíssima qualidade da tributação e do sistema de solução de conflitos no Brasil tem as mesmas raízes: a) conhecimento teórico atrasado sobre políticas públicas; b) falta de conhecimento acerca das melhores práticas existentes no mundo; c) falta de avaliação constante com base nesses parâmetros teóricos e práticos avançados; e d) avaliação e tomada de decisão pautadas em interesses de pessoas e órgãos, e não nos mais justos interesses sociais.

O Brasil precisa de mudanças drásticas nos mais diferentes âmbitos. Para tanto, é preciso deixar o conservadorismo de lado e encarar os problemas de frente. A melhoria da tributação e, assim, da economia depende de um contencioso muito mais eficiente e justo. Só depende de nós, brasileiros.


1 Para uma análise mais detalhada das ideias de colonialismo mental e nacionalismo ingênuo, vide: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/colonialismo-mental-e-nacionalismo-ingenuo.

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