Direito Civil Atual

O regime de contratos no projeto do novo Código Comercial (parte 2)

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1 de agosto de 2016, 8h00

Este artigo é continuação de uma reflexão cuja primeira parte já foi publicada na primeira passada na ConJur, na coluna dedicada a divulgação dos resultados das pesquisas desenvolvidas pela Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo, a respeito da proposta de um projeto de Código Comercial.

 A conclusão da primeira parte desse estudo enfrentava o problema de contratos, como os de locação e a compra e venda que, embora regulados sob uma única veste legal, comportam a sua caracterização tanto como contratos civis tanto como contratos empresariais, conforme a natureza da relação cuja veste estão servindo.

Formulou-se, então a pergunta: quais são as regras e princípios que disciplinam tais contratos, e, especialmente, é possível regular tais contratos independentemente de terem sido celebrados em uma relação civil, entre empresários ou em uma relação de consumo?

A proposta deste artigo é de que a resposta é negativa, e, consequentemente, é preciso refletir sobre quais as consequências de um Código Comercial que regule de modo distinto tais contratos.

Por isso, volta-se à disciplina anterior ao Código vigente cujo conteúdo era diferente da atual: o regime da compra e venda civil era disciplinado no artigo 1.122 e parágrafos do Código Civil, era voltado, substancialmente, para compra e venda de imóveis, sendo estruturalmente diferente da compra e venda mercantil, no artigo 191 e parágrafos do Código Comercial.

O artigo 205 do Código Comercial exigia a interpelação do vendedor ou comprador para que esse fosse constituído em mora, algo dispensado pelo Direito Civil.[1]

Ainda havia diferenças, como por exemplo, a disposição do artigo 209, inciso II, do Código Comercial a qual exigia que o objeto do contrato fosse coisas fungíveis, sempre admitindo execução da obrigação como coisa genérica, não obstante pudesse ter sido determinada pelas partes.  O artigo 211 do Código Comercial estabelecia que o prazo para reconhecimento dos vícios redibitórios era de 10 dias. Todavia, tal prazo era para reclamar pelos defeitos da mercadoria e não para propor ação redibitória ou actio quanti minoris, como no Código Civil, cujos prazos eram de 15 dias para bens móveis e seis meses para bens imóveis.

O artigo 212 do Código Comercial presumia que a devolução da coisa com o recebimento pelo vendedor, sem que esse depositasse a mesma judicialmente, representava aceitação da resolução. [2]

Essas diferenças foram eliminadas com o Código Civil vigente.

Então, formula-se nova pergunta: como é possível considerar distintamente compra e venda mercantil da compra civil?

A resposta é dupla.

Primeiro, o atual Código Civil teve como base o diploma de 1916, tendo inserido algumas disposições que somente incidem nas relações empresariais, para permitir a disciplina dessa modalidade de contrato.[3]

O melhor exemplo é a regra do art. 488, cujo conteúdo aparentemente é contraditório com a disposição o art. 482 do mesmo código.

Enquanto no artigo 482 a lei exige como elementos essenciais do contrato o preço, a coisa e o respectivo consenso, o artigo 488 estabelece solução para a venda “sem fixação de preço ou de critérios para sua determinação”, caso em que deve ser obedecido o “tabelamento oficial”, ou, então, “o preço corrente nas vendas habituais do vendedor”.

A contradição é apenas aparente, pois o próprio artigo 488 é elucidativo a propósito de sua incidência ao usar a expressão “vendas habituais do vendedor”.

Quem vende habitualmente é o empresário, nos termos do que determina o artigo 966 do Código Civil, pois a atividade profissional e habitual é o critério essencial adotado pelo Código Civil sobre quem é empresário.

Por isso, o artigo 488 somente incide naqueles casos em que o vendedor atua na condição de empresário com vendas habituais de determinado objeto, que justifique a existência de um preço “regularmente praticado”, nos termos do que costumeiramente se realiza nas práticas de mercado.

Se a compra e venda for “civil”, como é o caso da venda de algum bem que não se constitua em exercício de uma atividade habitual, incide o artigo 482 em sua extensão e, faltando preço ou critérios para sua determinação, o caso será de inexistência da compra e venda pela falta de elementos mínimos, constitutivos do negócio jurídico.

Dada a natureza impessoal da compra e venda empresarial, não há como invocar erro quanto às qualidades essenciais da pessoa, bem como afasta-se as regras subjetivas de interpretação na fase da execução do contrato, tendo em vista “a sua estandardização e um particular rigor quanto à execução”.[4]

Além disso, são raras as hipóteses de aplicação das regras dos artigos 423 e 424 do Código Civil, que tratam sobre os contratos de adesão nos contratos civis, o que é comum nos contratos do Direito Empresarial.[5]

Essa diferença de tratamento é sustentada pela natureza diversa da relação, tendo em vista que a compra e venda mercantil é realizada por profissionais que atuam de forma organizada, inserindo o contrato no contexto de sua organização e no exercício de suas atividades, cujos fins são econômicos. A compra e venda civil é uma relação juridicamente paritária em que, apesar de sua causa ser econômica, o ato praticado não faz parte de uma atividade econômica, circunstância que pode alterar substancialmente o modo de resolução dos conflitos.

A título de exemplo, o inadimplemento do preço de um contrato de compra e venda para o empresário representa dificuldades em seu capital de giro, possibilidade de que uma duplicata tenha sido emitida e descontada perante uma instituição financeira, possibilidade da falência do devedor no caso de protesto do título, etc. Numa relação civil, o inadimplemento terá as consequências legais e os motivos do vendedor poderão ser relevantes para determinação da possibilidade de execução ou resolução do contrato, situação que não pode ser considerada nas relações empresariais.[6]

A natureza fática, o modelo proveniente da “vida de relação”, guarda peculiaridades que não permitem a adoção de um standart normativo único para resolução dos conflitos.

A análise das disposições do contrato de compra e venda inseridos no Projeto de Código Comercial trazem algumas perplexidades.

A primeira delas é o afastamento de norma equivalente ao art. 488 do Código Civil, o que torna essentialia negotti o acordo sobre o preço, contrariando os usos e costumes e a prática do mercado.  Segundo a disposição do Art. 331 do Projeto de Código Comercial, caberá ao autor da demanda provar o acordo a respeito do preço do produto.

Em não havendo tal prova, será o caso de incidir o Art. 488 do Código Civil, tendo em vista a norma de aplicação supletiva desse diploma legal (artigo 298, caput, do projeto)?

Parece que uma resposta negativa resultaria em severa e prejudicial alteração ao bom andamento dos negócios e uma resposta positiva torna inútil a nova regulamentação.

O mesmo diga-se relativamente à venda sobre documentos, compra e venda com reserva de domínio, etc., que apesar de serem operações típicas do Direito Comercial continuarão a ser reguladas pelo Código Civil.

Em síntese, as falhas sistemáticas na disciplina dos contratos em espécie precisam ser pensadas, sob pena de ser aprofundada a crise de insegurança jurídica que o meio empresarial vive hoje.

Passado mais de uma década da vigência do Código Civil algumas de suas deficiências começam a ser tratadas de modo uniforme pela jurisprudência, não sendo plausível que neste momento haja um aprofundamento das incertezas por problemas de técnica legislativa e de má compreensão da extensão e da complexidade do relacionamento entre o sistema do Direito das Obrigações com o Direito Empresarial.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] Entre inúmeras decisões a respeito da matéria, veja-se a seguinte, proferida durante a vacatio legis do Código Civil vigente: Superior Tribunal de Justiça. RESp. n. 49011/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 12.03.2002, DJ. 06.05.2002, www.stj.gov.br

[2] Exemplo interessante está em decisão no âmbito do Direito Falimentar, em que se aplicam as regras sobre evicção: Superior Tribunal de Justiça, REsp. n. 117716/SP, 4ª Turma, Min. Barros Monteiro, j. 02.09.1999, DJ. 13.12.1999, www.stj.gov.br. Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 162163/SP, 4ª turma, Rel. Min. Ruy Rosado do Aguiar Júnior, j. 16.04.1998, dj. 29.06.98, www.stj.gov.br.TJRS, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. Mara Larsen Chechi, j. 30.10.2002, www.tj.rs.gov.br, em 28.07.2007.

[3] Tratamos da unificação legislativa e o regime obrigacional sobre a compra e venda no artigo BRANCO, G. L. C. . O regime obrigacional unificado do Código Civil brasileiro e seus efeitos sobre a liberdade contratual. A compra e venda como modelo jurídico multifuncional. Revista dos Tribunais (São Paulo), v. 872, p. 11-42, 2008.

[4] ASCARELLI, Tullio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947, p. 52.

[5] Porém, não se pode confundir a eficácia de um contrato de adesão nas relações de consumo com os contratos empresariais. Exemplo disso é a decisão proferida no STJ, REsp nº 1.055.185/PR, Quarta Turma, Relator: Min. Marco Buzzi, 1/04/2014, na qual  o STJ reconhece a natureza de adesão do contrato, mas mantém os efeitos da cláusula contratual de eleição de foro.

[6] BRANCO, G. L. C.  Autonomia privada e vontade: considerações históricas sobre a formação dos motivos no código civil brasileiro.. In: BRANCO, Gerson Luiz Carlos; BAEZ, Narciso Leandro Xavier; PORCIUNCULA, Marcelo (Org). (Org.). A Problemática dos Direitos Humanos Fundamentais na América Latina e na Europa: Desafios Materiais e Eficaciais. Joaçaba: Unoesc, 2012.

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