"Doutrina do castelo"

Decisões favoráveis a policiais na Justiça dos EUA agravam tensão racial

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1 de agosto de 2016, 7h38

Em 31 de julho de 2013, Jermaine McBean, 33, um homem negro com transtorno bipolar, comprou uma espingarda a ar comprimido em uma loja de hipotecas, colocou-a no ombro e caminhou de volta para casa, em um condomínio em Oakland Park, na Flórida, Estados Unidos. Várias pessoas ligaram para a polícia para dizer que um homem armado andava pela rua.

Três policiais atenderam ao chamado e, quando chegaram, McBean já estava entrando no condomínio. O policial Peter Peraza, que se definiu mais tarde em um processo criminal como “branco de origem hispânica”, gritou para McBean colocar a arma no chão. McBean, como pequenos fones enfiados no ouvido, continuou andando.

Finalmente, ele escutou os gritos de Peraza e começou a se voltar para trás, já segurando a espingarda de ar comprimido na mão. Peraza disse mais tarde, na investigação, que McBean estava virando a espingarda para ele. Pensou que sua vida estava em perigo, ele disse. Deu três tiros em McBean e o matou. Os outros dois policiais não atiraram.

A Promotoria decidiu mostrar à nação que, na Flórida, ao contrário do que tem ocorrido em outros estados americanos, policiais brancos que mantam homens negros sem necessidade respondem criminalmente por seus atos na Justiça.

Para os promotores, Peraza foi rápido demais no gatilho. A biópsia mostrou que McBean não poderia estar de frente para os policiais, quando os tiros fatais foram disparados. Testemunhas confirmaram que McBean nunca apontou sua espingarda para os policiais. Por isso, o denunciaram à Justiça por homicídio.

Mas Peraza não irá a julgamento. Na quarta-feira (27/7) o juiz Michael Usan trancou o processo, com o argumento de que o policial atirou em defesa própria e que ele se beneficia da controversa lei da Flórida, a “Stand Your Ground Law”, segundo a qual uma pessoa pode atirar para matar se sentir que sua própria vida está em perigo.

“Stand your ground” significa, nos termos da lei, que o cidadão que se sente ameaçado não precisa se retirar, não precisa tentar evitar o confronto, não precisa buscar qualquer outra solução que não seja a de atirar para matar.

A lei é uma extensão da “Castle Doctrine” (a doutrina do castelo, significando o lar de uma pessoa), que também garante imunidade criminal a quem atirar para matar quando ameaçado dentro da própria casa. A lei “Stand your ground” estende o domínio residencial para qualquer lugar no estado, como na rua ou em um bar.

Ao contrário de diversos outros casos que aconteceram recentemente, em que promotores não se empenharam em condenar policiais brancos que mataram homens negros desarmados, mesmo quando alguns dos casos chegaram a um júri popular, os promotores da Flórida tentam levar o caso em frente e prometem recorrer.

Os promotores Tim Donnelly e Ryan Kelley disseram ao Sun Sentinel e a outras publicações que o juiz estabeleceu, por seu próprio entendimento, que o policial estava protegido pela lei “Stand your ground”. Porém, essa é uma decisão que deveria ser tomada por um “grand jury”. Ao “grand jury”, um corpo de jurados que examina uma “preponderância de provas”, compete decidir se um acusado deve ir a julgamento ou não.

Segundo os promotores, o fato de policiais se sentirem ameaçados de morte é um sentimento inerente à profissão. Todos os policiais vivem sob ameaça de morte. Assim, é preciso tomar decisões caso a caso. De outra forma, policiais jamais irão a julgamento, mesmo que seja necessário. Nesse caso em particular, as provas e os testemunhos eram conflitantes e, por isso, deveriam ser apresentados a um júri, em julgamento.

Na outra via, os advogados da Associação Benevolente da Polícia de Broward, Eric Schwartzreich e Anthony Bruno, declararam que os policiais não podem fazer seu trabalho, o de proteger a população, sabendo que, se o fizerem, serão indiciados por homicídio.

Também causou revolta o fato de Peraza haver sido condecorado pelo Departamento de Polícia do estado após o incidente. O irmão da vítima, Andrew McBean, declarou em um encontro da organização “Black Lives Matter” (as vidas dos negros importam) que a condecoração foi uma artimanha para mostrar à população que Peraza cumpriu o seu dever. Ou seja, uma forma de acobertar um caso de homicídio e não colaborar com a investigação.

A decisão do juiz de trancar a ação ocorreu no mesmo dia em que promotores de Baltimore decidiram retirar as acusações contra três policiais, que iriam a julgamento por causa da morte, em 2015, de Freddie Gray, um homem negro, dentro do camburão da Polícia, depois que ele foi preso e era transportado para uma delegacia.

E ao mesmo tempo em que os confrontos entre os movimentos negros, como o “Black Lives Matter”, e um movimento policial, o “Blue Lives Matter” (“blue” em referência à cor azul dos uniformes policiais), se tornou um assunto preponderante nas campanhas eleitorais para a Presidência dos EUA.

Os confrontos ganharam um caráter explosivo depois que um policial branco matou um homem negro desarmado, já praticamente subjugado, e outro policial branco matou outro homem negro em Minnesota, quando ele se movimentou para pegar sua carteira de motorista, solicitada pelo próprio policial. Logo depois de o policial dar quatro tiros, a namorada da vítima transmitiu o restante do incidente ao vivo pela rede social, provocando manifestações em todo o país.

Em retaliação, um homem negro, ex-combatente das Forças Armadas dos EUA no Afeganistão, armou uma emboscada para a Polícia de Dallas, no Texas, na qual matou cinco policiais. Todas essas ocorrências exacerbaram o conflito racial nos EUA, mas não influenciaram o julgamento no tribunal da Flórida, assegurou o juiz Michael Usan.

“A morte de McBean foi uma tragédia. Mas o debate nacional sobre policiais atirando em pessoas negras e a retaliação contra os policiais não tem lugar nessa sala de julgamento, no que se refere a esse caso”, ele escreveu.

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