Observatório Constitucional

A liberdade de expressão no contexto da sátira e da crítica política

Autor

  • Marco Túlio Reis Magalhães

    é doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

30 de abril de 2016, 16h35

A promoção dos direitos, liberdades e garantias é essencial para o fortalecimento da democracia e do Estado de Direito em diversos países do mundo, notadamente a partir da dimensão dos direitos fundamentais.

Embora os direitos fundamentais variem quanto à nomenclatura, à compreensão dogmática e à forma de exteriorização nos distintos ordenamentos jurídicos, pode-se dizer que têm, como funções básicas, a defesa da liberdade individual e a limitação do Poder. [i]Nesse contexto, destaca-se o direito à liberdade de expressão.

A Constituição brasileira assegura a livre manifestação do pensamento, veda o anonimato e assegura o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, IV e V). Também assegura a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e protege o amplo acesso à informação (art. 5º, IX e XIV).

No Título da Ordem Social, o art. 220 complementa esse quadro normativo, ao dispor que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” e que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.” Tal artigo veda toda e qualquer censura política, ideológica e artística, bem como proíbe que o domínio dos meio de comunicação constitua monopólio ou oligopólio. Os artigos 221 a 224 complementam a proteção objetiva e institucional dos meios de comunicação social.

A definição constitucional ampla da liberdade de expressão busca a proteção de uma variedade de faculdades, tais como “a liberdade de comunicação de pensamento, de ideias, de informações e de expressões não verbais (comportamentais, musicais, por imagem, etc.)[ii], a fim de potencializar o pluralismo de opiniões e, consequentemente, a vontade livre de escolha da informação e da convicção sobre os assuntos em geral.

Defende-se o princípio de que não cabe ao Estado censurar a livre opinião e manifestação de ideias e pensamentos, o que torna inconstitucional lei que censure ou restrinja indevidamente a liberdade de expressão.

Tal liberdade não é absoluta e encontra limites, sendo alguns expressamente mencionados na Constituição e outros definidos a partir da interpretação de casos concretos envolvendo a colisão com outros direitos e bens jurídicos.

A doutrina destaca a necessidade de sua conformação com o direito à honra, à intimidade, à vida privada, à proteção da dignidade humana e dos valores da família. [iii]  E a liberdade de expressão não protegeria a incitação efetiva ao cometimento de atos violentos e criminosos (fighting words), pois tal liberdade é direito fundamental essencial, mas não é absoluto.

Um campo fértil nesse tema se relaciona com a crítica política, a sátira, a charge e o humorismo político, que, por vezes, tratam com acidez, ironia e sarcasmo, ou mesmo deboche, a atuação de instituições, governos e figuras públicas e políticas. É comum o uso de críticas contundentes e de deboche acentuado, por meio de palavras e imagens fortes, duras, às vezes rudes e desagradáveis. Estariam tais críticas protegidas pela liberdade de expressão?  Tal pergunta exige o olhar o ordenamento jurídico e político de um país, sem perder de vista o seu caldo histórico e cultural.

Quanto à Constituição brasileira, a resposta deve ser positiva, pois ela mantém forte compromisso com a ampla liberdade de expressão, inclusive com a liberdade de imprensa. Dois interessantes julgamentos do Supremo Tribunal Federal corroboram essa assertiva.

Em 2009, ao julgar a ADPF 130 (Rel. Min. Ayres Britto, DJe 06/11/09), o STF decidiu pela não-recepção da Lei de Imprensa. No caso, acentuou-se a relação de inerência entre pensamento crítico e imprensa livre, a qual funcionaria como instância natural de formação da opinião pública e como alternativa à versão oficial dos fatos.

A Corte destacou que o “pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada.

Nesse julgamento, houve referência a mais de 20 decisões de cortes estrangeiras nos votos dos ministros, como meio de ilustrar a amplitude e limites da liberdade de expressão, a partir de distintos coloridos históricos e culturais.[iv]

Em 2010, ao julgar a ADI 4451-MC (Rel. Min. Ayres Britto, DJe 24/08/12), o STF reforçou o entendimento firmado na ADPF 130. Na ação direta, alegava-se que os incisos II e III do art. 45 da Lei das Eleições constituiriam barreira à veiculação de sátiras, charges e programas humorísticos sobre questões ou personagens políticos durante o período eleitoral e haveria restrição indevida ao direito de divulgação de temas políticos polêmicos, sob o argumento de imparcialidade da eleição (evitar favorecimento a candidatos e partidos).

Às vésperas do pleito eleitoral, o Min. Ayres Britto deferiu a liminar para suspender as restrições mencionadas, ad referendum do Plenário – o qual veio a confirmá-la em setembro, por maioria de votos.

O caso se destaca por tratar do humorismo político como elemento integrante da atividade de imprensa, protegida pela liberdade de expressão (art. 220, §1º, CF).[v] Segundo o Min. Ayres Britto, as restrições coibiriam um estilo peculiar de fazer impressa: “aquele que se utiliza da trucagem, da montagem ou de outros recursos de áudio e vídeo como técnicas de expressão da crítica jornalística, em especial os programas humorísticos.

O julgado acentuou que “programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos” integram a liberdade de imprensa e o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado”, o que não impediria eventual direito de resposta e responsabilidade penal e civil pelos abusos e excessos.

A Corte afirmou não haver lugar para a censura, dentro ou fora de período eleitoral, sendo a liberdade de expressão plena em todo o tempo, lugar e circunstâncias. E nela se insere a produção e a veiculação de charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam partidos políticos, pré-candidatos e autoridades em geral.

Os casos apresentados ilustram a importância da liberdade de expressão no Brasil, que deve ser ampla, sobretudo em tempos de crise, como a que se verifica atualmente no país, dadas as dificuldades econômicas e o embate político em torno do processo de impeachment da presidente da República. A tolerância e a liberdade devem ser bandeiras de todos os partidos e de toda a sociedade, independentemente da posição política ou ideológica que se assumir. O pensamento crítico e alternativo à versão oficial dos fatos torna-se essencial.

Um outro ângulo de análise do tema aprofunda-se no debate sobre a garantia de liberdade de expressão quanto a críticas e sátiras em relação a agentes políticos e figuras públicas estrangeiras e internacionais, feitas por jornalistas ou apresentadores de programas de rádio e televisão. Haverá aí alguma diferenciação jurídica relevante? Deve haver legislação regulando essa situação com base em fundamentos de relações internacionais ou de interesse público nacional?

Um episódio ocorrido na Alemanha pode ser útil para a reflexão: o denominado caso Böhmermann, que, em março de 2016, tornou-se destaque no noticiário e nos meios de comunicação, ao inflamar o debate quanto à liberdade de expressão no país, à (in)adequação de um polêmico dispositivo do código penal alemão e ao posicionamento tomado pelo governo federal.

Façamos um breve relato do ocorrido. Após a exibição de um vídeo no programa televisivo satírico Extra3 (emissora pública alemã  NDR ,17.03.2016), que, por meio de uma paródia musical, criticava o Presidente turco Recep Tayyip Erdogan, por perseguir minorias étnicas e reprimir jornalistas turcos e estrangeiros que o criticassem,  o governo turco notificou o embaixador alemão para protestar contra a referida sátira e exigir que ela não mais fosse exibida. Isso gerou polêmica na Alemanha, com reações políticas, sociais e da imprensa.

Em 31.03.2016, Jan Böhmermann, apresentador do programa televisivo satírico Neo Magazin Royale (emissora pública alemã ZDF) retomou o debate sobre o vídeo do Extra3 e criticou a postura do presidente turco, afirmando que ele deveria entender que sátiras e críticas seriam decorrências da liberdade de expressão, prevista na Lei Fundamental alemã.

A seguir, de forma irônica e alegando que queria explicar ao público e ao presidente turco o que seria e o que não seria permitido pelo direito alemão, o apresentador decide recitar uma espécie de poema satírico proibido (Schmähgedicht), que extrapolaria os limites da crítica (Schmähkritik), a fim de demostrar o que realmente seria incompatível com a liberdade de expressão e passível de responsabilização jurídica. Assim, tendo ao fundo do palco a imagem da bandeira e do presidente turcos, Böhmermann recita o poema satírico proibido, recheado de palavras rudes e de baixo calão, referências negativas (de cunho sexual, físico e moral) à pessoa do presidente turco e acusações de que ele reprimiria minorias e maltrataria curdos e cristãos.[vi]

A virulência desse episódio foi enorme na imprensa alemã e internacional e junto à opinião pública. A revista alemã Der Spiegel, por exemplo, dedicou a capa e matéria central da edição de 16.04.2016 ao caso, ressaltando a polarização que o caso ativou, a tensão gerada para a relação diplomática entre Turquia e Alemanha, o direito fundamental envolvido, os limites da liberdade de expressão e a atuação criticável da chanceler alemã Angela Merkel.

Os noticiários deram conta de diversos desdobramentos: (1) a emissora ZDF apoiou o apresentador, mas retirou o vídeo dos seus arquivos digitais públicos, por incompatibilidade com seus padrões de qualidade; (2) muitos pedidos de investigação do caso foram apresentados contra a manifestação de Böhmermann, por civis, às autoridades alemãs; (3) Böhmermann deixou de responder a uma interpelação extrajudicial feita por um advogado alemão (em nome do presidente turco), para que se omitisse de reiterar a crítica feita em seu programa; (4) o presidente turco apresentou queixa (por injúria) às autoridades alemãs, por meio de um advogado alemão; (5) o governo turco apresentou, pela via diplomática, queixa ao governo alemão, exigindo investigação por violação do §103 do código penal alemão, que estipula ser ilícito ofender órgãos ou representações estrangeiros; (6) o governo federal alemão deu seu aval para autorizar o início de investigação do caso; (7) artistas se solidarizaram publicamente com o Böhmermann, que também ganhou prêmio (Grimme Preis) por sátira feita sobre o ex-ministro grego Yanis Varoufakis; (8)  Böhmermann e a ZDF decidiram suspender seu programa até maio de 2016.[vii]

Como se vê, o caso é exemplar para a discussão da liberdade de expressão. Do ponto de vista político, a necessidade de autorização do governo federal para investigação de ilícito penal do §103 do código penal alemão tem enorme potencial de desgaste político, evidenciado aqui pelo fato de a Alemanha ter assumido papel de liderança no controvertido acordo firmado com a Turquia para frear o fluxo migratório de refugiados para a União Europeia. A preocupação com um estremecimento diplomático, a precipitada declaração de Merkel sobre o caráter proposital da manifestação de Böhmermann (como tentativa de arrefecer o problema diplomático, seguida de retratação do dito pela primeira-ministra) e a forte crítica da oposição política e da imprensa sobre o descuido da liberdade de expressão (em face de interesses regionais e estatais ligados à crise migratória) são elementos que demonstram o tamanho do problema que o debate do caso pode assumir. De todo modo, não é salutar à democracia e à garantia dos direitos fundamentais que temas de liberdade de expressão assumam conotação de questões de Estado (no sentido de uma contínua interferência e intromissão). Nesse sentido, é preciso refletir, inclusive, sobre o intrigante dado noticiado pela imprensa internacional de que o governo turco, em 20 meses de mandato, tenha provocado a abertura de quase 2 mil casos judiciais por insultos ao Presidente Erdogan.

Do ponto de vista jurídico, o caso acentua o debate da liberdade de expressão na Alemanha e no âmbito da União Europeia, sobretudo quanto a manifestações satíricas e críticas políticas contundentes. A discussão da definição de limites da liberdade de expressão e da legitimidade jurídica do §103 do código penal alemão (e da exigência de autorização do governo federal para início da investigação) podem ensejar até uma controvérsia constitucional, a depender dos desdobramentos das investigações.

Os conflitos ligados a críticas políticas, charges, humorismo político e sátiras incitam estimulantes desafios de compreensão da liberdade de expressão. Ainda que o grau de tolerância próprio da história e da cultura de cada país influencie esse debate, e ainda que tal liberdade tenha que observar certos limites e correção de excessos, não se deve perder de vista o princípio de que uma ampla liberdade de expressão é essencial para a democracia, para o Estado de Direito e para o estímulo ao pensamento crítico.


[i]Ferreira Filho, Manoel G. Princípios fundamentais do direito constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 82 et. seq.

[ii] MENDES, Gilmar F.; BRANCO, Paulo G. G.. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 265.

[iii] MENDES; BRANCO, op. cit., p. 270 et seq.

[iv] SILVA, Christine O. P. da. A ADPF 130 e a democracia de antíteses no contexto do estado cooperativo. In: HORBACH, Beatriz B.; FUCK, Luciano F. O Supremo por seus assessores. São Paulo: Almedina, 2014, p. 175-179.

[v] GUSMÃO, Sílvia P. B. de. O humorismo político levado a sério pelo Supremo Tribunal Federal: a análise do julgamento da ADI 4451-MC. In: HORBACH; FUCK, op. cit., p. 259-266.

[vi] <http://www.spiegel.de/kultur/tv/jan-boehmermann-das-sind-die-fakten-der-staatsaffaere-a-1086571.html>(29/04/16)

[vii] <http://mitvergnuegen.com/2016/eine-chronologie-der-ereignisse-rund-um-boehmermanns-erdogan-schmaehkritik/> (29/04/16)

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  • Brave

    é doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo e pela Freie Universität Berlin (Alemanha), mestre em Direito pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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