Limite Penal

Quando o juiz já sabia: a importância da originalidade cognitiva no Processo Penal 

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

29 de abril de 2016, 12h37

Spacca
O Estado-juiz deve ser terceiro justamente para não ter parcialidade (interesse/pré-julgamento) na resolução do caso penal em favor de qualquer uma das partes. A imparcialidade é uma construção técnica artificial do processo, que não se confunde com “neutralidade”. O julgador ignora os fatos, mas não é neutro[1], já que possui suas conotações políticas, religiosas, ideológicas etc., mas deve ser imparcial cognitivamente: afastamento subjetivo dos jogadores e objetivo do caso penal.

Não há neutralidade porque se trata de um juiz-no-mundo. Mas deve haver imparcialidade, um afastamento estrutural, um estranhamento em relação ao caso penal em julgamento, aquilo que os italianos chamam de terzietà (alheamento, ser um terceiro desinteressado). A imparcialidade é um princípio supremo do processo, como ensina Werner Goldschmdit, fundante da própria estrutura dialética (actum trium personarum – Búlgaro). A garantia da jurisdição é ilusória e meramente formal quando não se tem um juiz imparcial. Mais honesto seria reconhecer que nesse caso não se tem a garantia da jurisdição, pois juiz contaminado é juiz parcial, logo, um não-juiz. A questão, portanto, vincula-se à originalidade cognitiva da temática submetida ao julgamento[2].

A imparcialidade, no decorrer do tempo, desde pelo menos o julgamento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), no caso Piersack vs. Bélgica, distinguiu-se entre objetiva (em relação ao caso penal) e subjetiva (no tocante aos envolvidos). Também deve-se valorizar a “estética de imparcialidade”, ou seja, a aparência, a percepção que as partes precisam ter de que o juiz é realmente um “juiz imparcial”, ou seja, que não tenha tido um envolvimento prévio com o caso penal (por exemplo, na fase pré-processual, decretando prisões cautelares ou medidas cautelares reais) que o contamine, que fomente os pré-juízos que geram um imenso prejuízo cognitivo. É importante que o juiz mantenha um afastamento que lhe confira uma “estética de julgador”’ e não de acusador, investigador ou inquisidor. Isso é crucial para que se tenha a “confiança” do jurisdicionado na figura do julgador. Mas todas essas questões perpassam por um núcleo imantador, que é a originalidade cognitiva.

A condição de terceiro é a de ignorância cognitiva em relação às provas, ao conteúdo probatório, já que o acertamento das condutas deve ser novidade ao julgador. O juiz é um sujeito processual (não parte) ontologicamente concebido como um ignorante, porque ele (necessariamente) ignora o caso penal em julgamento. Ele não sabe, pois não deve ter uma cognição prévia ao processo. Deixará o juiz de ser um ignorante quando, ao longo da instrução, lhe trouxerem as partes às provas que lhe permitirão então conhecer (cognição).

Logo, no regime de instrução do processo, não se pode aceitar juiz contaminado por informações decorrentes de atuações anteriores em processos findos ou paralelos. Isso porque ele já sabia de condutas e provas que deveria não saber.

Nesse sentido, vale invocar o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, no HC 94.641, destacando o voto do ministro Cézar Peluso, na hipótese em que o mesmo juiz teria conhecido da ação de investigação de paternidade e depois a ação penal que resultou a gravidez (Informativo 528): “Pelo conteúdo da decisão do juiz, restara evidenciado que ele teria sido influenciado pelos elementos coligidos na investigação preliminar. Dessa forma, considerou que teria ocorrido hipótese de ruptura da denominada imparcialidade objetiva do magistrado, cuja falta, incapacita-o, de todo, para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida. Esclareceu que a imparcialidade denomina-se objetiva, uma vez que não provém de ausência de vínculos juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados jurídicos na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva), mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja ainda, de modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir. Assim, sua perda significa falta da isenção inerente ao exercício legítimo da função jurisdicional”[3].

Logo, em processos em que se opera cisão (CPP, artigo 80), há flagrante violação da originalidade cognitiva quando o mesmo juiz procede às duas instruções e julgamento, bem assim quando se trata de processos advindas de mesma investigação, separados por conveniência ou qualquer outro fundamento. A contaminação do julgador pela prova obtida em processo anterior ou paralelo ceifa a lógica do juiz terceiro, salvo aos que acreditam ser possível essa separação ingênua: o juiz finge que não lembra da instrução realizada em outro processo conexo.

Situação similar também se opera quando o juiz criminal é o mesmo que julga a ação civil pública onde se apura uma improbidade administrativa.

Mas o cenário mais grave e recorrente no processo penal é a contaminação decorrente da prática de diversos atos (pior ainda quando ex officio) na fase pré-processual. Infelizmente no Brasil, a prevenção é causa de fixação da competência, quando o Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem (há décadas) afirmando que juiz prevento é juiz contaminado, que não pode julgar.

É por tudo isso que precisamos lutar para que na reforma do CPP seja implantada a (mal)denominada figura do juiz das garantias, separando o juiz que participa da investigação daquele que irá julgar o processo. Melhor andará o legislador, até para romper com o estigma, se trocar o nome para ‘juiz da investigação’(que não tem qualquer semelhança com o famigerado ‘juiz de instrução’[4]).

Portanto, o juiz criminal — para efetivamente ser juiz e, portanto, imparcial — deve conhecer do caso penal originariamente no processo. Deve formar sua convicção pela prova colhida originariamente no contraditório judicial, sem pré-juízos e pré-cognições acerca do objeto do processo. Do contrário, a seguir-se com a prática atual, o processo acaba sendo um mero golpe de cena, com um juiz que já formou sua imagem mental sobre o caso e que entra na instrução apenas para confirma as hipóteses previamente estabelecidas pela acusação e tomadas por verdadeiras por ele juiz, tanto que decretou a busca e apreensão, a interceptação telefônica, a prisão preventiva, etc. e ainda recebeu a denúncia. A instrução é apenas confirmatória e simbólica de uma decisão previamente tomada. Esse tema também precisa ser pensado à luz da teoria da dissonância cognitiva, que complementa nossa exposição, e que já foi objeto da coluna em que trouxemos os valiosos estudos e pesquisas de Bernd Schuneman[5]

Levar a sério a originalidade cognitiva em regimes probatórios democráticos é o desafio[6]. Resta saber se há coragem para afastar um juiz manifestamente contaminado por instruções anteriores, julgamento o mesmíssimo caso. É o caso em que o juiz já sabia? O tempo dirá.


[1] GIACOMOLLI, Nereu José. DUARTE, Liza Bastos. O mito da neutralidade na motivação das decisões judiciais: aspectos epistemológicos. Revista da Ajuris, Porto Alegre, V. 33, nº 102, Jun 2006, p. 290; KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Ensayos de teoría jurídica crítica. Trad. Guillermo Moro. Buenos Aires: Siglo Vintiuno, 2010.
[2] MAYA, André Machado. Imparcialidade e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 329-330.
[4] Sobre o tema consulte-se a obra “Investigação Preliminar no Processo Penal”, de Aury Lopes Jr e Ricardo Jacobsen Gloeckner, publicado pela editora Saraiva, onde esse tema é verticalizado.
[5] SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de Direito Penal e Processual Penal e filosofia do direito. Org. Luís Greco. Ed. Marcial Pons, 2013.
[6] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.

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    é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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