400 anos

Shakespeare é homenageado no lançamento do Anuário da Justiça

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28 de abril de 2016, 8h23

Gil Ferreira
O evento de lançamento da 10ª edição do Anuário da Justiça Brasil, no Salão Branco do Supremo Tribunal Federal, terça-feira (26/4) deu oportunidade a duas homenagens seculares: os 800 anos da Magna Carta da Inglaterra e os 400 anos da morte do dramaturgo William Shakespeare. Como disse o embaixador do Reino Unido Alex Ellis, na oportunidade, tanto a Magna Carta quanto William Shakespeare tem suas origens em terras britânicas, mas são patrimônio universal.

Em homenagem à Magna Carta, tida como a primeira constituição da história da humanidade, foi inaugurada a exposição 1215: Magna Carta Libertatum – 1824: A Primeira Constituição Brasileira, promovida pela FAAP, Fundação Armando Alvares penteado, e pela embaixada do Reino Unido. A mostra também marca os quase 200 anos da peça legislativa que introduziu o Brasil no universo constitucionalista

Já Shakespeare, lembrado em todas os pronunciamentos da noite, ganhou uma homenagem especial com a récita de um trecho da peça Medida por Medida, escrita em 1603: “A peça gira toda em torno dos conceitos de justiça e corrupção, equidade e abuso do poder, castidade e volúpia, ou seja, de sentimentos conflitantes que não raro ocorrem num mesmo personagem”.

Na cena, recitada pelos atores Oswaldo Mendes e Mika Lins, o juiz Ângelo que condenou Cláudio à morte, negocia com Isabela, a irmã do condenado: seu irmão será condenado a não ser que a donzela ofereça em troca a própria virgindade.

Oswaldo Mendes e Mika Lins, convidados pela ConJur para interpretar o juiz e a donzela, são atores com larga trajetória nos palcos e grande conhecimento da obra de Shakespeare. Mika Lins é a diretora artística da série de vídeos online produzida pela TV Folha com dramatização de obras de Shakespeare. E Oswaldo Mendes participa como ator da série. Mendes, que também é jornalista, foi diretor do jornal Última Hora, de São Paulo e editor do suplemento de cultura Folhetim, da Folha de S. Paulo. Além de ator, é diretor e autor teatral e foi um dos fundadores da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).

Leia o trecho recitado da peça Medida por Medida:

Cena IV

Um quarto em casa de Ângelo. Entra Ângelo.

ÂNGELO — Quando quero pensar em qualquer coisa ao rezar, faço-o sempre distraído; sobem ao céu palavras desconexas, ao passo que a memória, surda à língua, ancora em Isabela. Tenho o nome do céu na boca, como se o mascasse sem parar, e no peito o avassalante veneno de meus planos. Até agora fiz do Estado o meu livro — belo livro! — que à força de ser lido já se torna monótono e tedioso. Este meu cargo, de que tanto me orgulho — que não me ouça ninguém! — eu o trocara com vantagem por uma pluma ociosa, que vagueasse tocada pelo vento! Ó posição! Quantas vezes apenas com teu hábito fazes tremer os tolos e acorrentas em tua falsa aparência os próprios sábios! Sangue, tu és sempre sangue; se a divisa “Anjo bom” nós gravássemos no chifre do demônio, de nada lhe servira. (Entra um criado.) Que é que há? Quem está aí?

CRIADO — A irmã Isabela, que deseja falar-vos.

ÂNGELO — Faze-a entrar (Sai o criado.) Oh céus! Por que me aflui ao coração o sangue deixando-o quase morto e, ao mesmo tempo, privando os demais órgãos de seus meios de ação? É assim que faz a multidão sem tino com alguém que desmaia; correm todos em seu auxílio e o privam justamente do ar de que mais precisa. O mesmo fazem os súditos de um rei estremecido: saem dos seus lugares e com mostras de amizade obsequiosa, junto dele de tal modo se postam, que sua estúpida afeição grande incômodo lhe causa. (Entra Isabel.) Então, bela menina?

ISABELA — Vim para ouvir a vossa decisão.

ÂNGELO — Quisera que a soubésseis, omitindo essa pergunta. Cláudio vai morrer.

ISABELA — Está bem; que o céu guarde Vossa Honra.

ÂNGELO — Poderia viver — quem sabe? — tanto quanto eu ou vós. No entanto, é necessário que morra.

ISABELA — Porque vós o sentenciastes?

ÂNGELO — Sim.

ISABELA — Dizei-me, por obséquio, o dia exato, para que nesse prazo, longo ou curto, fique ele em condições de salvar a alma.

ÂNGELO — Esses vícios imundos! Fora o mesmo perdoar a quem um ser já feito rouba à Natureza, e dar de mãos às rédeas da luxúria que faz cunhar a imagem do céu, quando proibida. Uma existência legítima destruir por meios falsos, eqüivale a deitar metal em molde vedado para criar vida ilegítima.

ISABELA — Isso é certo no céu, não cá na terra.

ÂNGELO — Pensais assim? Pois vou já confundir-vos. Que preferis que a lei precisa e sábia a vosso irmão, agora, tire a vida, ou que, para salvá-lo, às impurezas voluptuosas o corpo abandonásseis, como a que ele manchou?

ISABELA — Podeis dar crédito ao que vos digo: preferira o corpo sacrificar a vir a perder a alma.

ÂNGELO — Não estou falando da alma; nossas faltas obrigatórias nunca são levadas em conta; valem só como parcelas.

ISABELA — Como dizeis?

ÂNGELO — Isto é, não o assevero, pois poderia defender o oposto do que afirmei. Dizei-me apenas isto: Eu, sendo agora a voz da lei escrita, pronuncio sentença contra a vida de vosso irmão. Não se concebe que haja caridade na falta cometida para salvar-lhe a vida?

ISABELA — Fazei isso; chamo sobre minha alma a culpa toda; não é pecado algum, é caridade.

ÂNGELO — Se o salvásseis com risco da própria alma, a caridade e a falta ficariam bem compensadas.

ISABELA — Se é pecado pela vida dele impetrar, que o céu me faça carga de toda a culpa. Se pecardes por me atender, então, nas minhas preces matinais pedirei que esse pecado seja incluído nos meus, não vos ficando nada a ser computado.

ÂNGELO — Mas ouvi-me, pois não me acompanhais o pensamento; ou ignorante sois, ou, por astúcia ignorância fingis, e é mau fazê-lo.

ISABELA — Bem, que eu seja ignorante e apenas boa para reconhecer minhas fraquezas.

ÂNGELO — Quando a sabedoria se deprime, é por querer que o brilho próprio aumente, como as máscaras pretas que proclamam dez vezes mais valiosa a formosura velada, do que quando descoberta. Mas prestai atenção; para fazer-me compreender vou falar com mais rudeza: vosso irmão vai morrer.

ISABELA — Bem.

ÂNGELO — E seu delito é tal, como parece, que se encontra passível do castigo previsto pela lei.

ISABELA — Certo.

ÂNGELO — Admiti que não haja Outro recurso para salvar-lhe a vida — não inculco semelhante medida ou qualquer outra; falo em termos gerais — a não ser este: que vós, sua própria irmã, vos encontrásseis requestada de alguém que, por motivo de sua posição, tivesse influência junto do juiz, e a vosso irmão pudesse libertar facilmente das algemas da lei que envolve a todos, e que meio terreno não houvesse de salvá-lo, exceto o de entregardes a mais rica jóia do vosso corpo a essa pessoa. Sem isso, fatal fora a morte dele. Que faríeis?

ISABELA — Por meu irmão, o que por mim faria. Se eu me sentisse acaso na iminência de morrer, aceitara como sendo rubis as marcas todas do chicote, e me despira para entrar na tumba como em um leito há muito cobiçado sem consentir que o corpo me poluíssem.

ÂNGELO — Sendo assim, vosso irmão deve morrer.

ISABELA — É o meio mais barato, pois é melhor que o irmão morra de um lance, do que ficar morrendo eternamente a irmã, para salvá-lo.

ÂNGELO — Não seríeis, assim, tão cruel como essa sentença que acusais?

ISABELA — Resgate ignominioso e perdão livre são coisas diferentes; a demência legítima não tem afinidades com a redenção infame.

ÂNGELO — Há alguns momentos, da lei fazíeis um tirano, vendo no ato de vosso irmão mais um desporto do que mesmo uma culpa.

ISABELA — Oh, perdoai-me, senhor! Sucede às vezes que quem quer algo esconde o pensamento. Atenuo o que odeio, em benefício da pessoa a que amo ternamente.

ÂNGELO — Nós todos somos frágeis.

ISABELA — Pois que morra meu irmão se ele, apenas, sem ter cúmplice, for dono e herdeiro dessa tua fraqueza.

ÂNGELO — As mulheres são frágeis como os homens.

ISABELA — Sim, como seus espelhos, que tão pronto refletem formas, como se espedaçam. Oh, as mulheres! Deus as guarde! Os homens, delas se aproveitando, estragam tudo quanto eles mesmos criaram. Sim, chamais-nos dez vezes frágeis, porque somos brandas como a cute que temos e sensíveis às falsas impressões.

ÂNGELO — De grado o creio. Firmado, então, no próprio testemunho do vosso sexo — pois só somos fortes, penso, ao ponto de sermos abalados pelos deslizes — vou ser corajoso: pego-vos na palavra; sede apenas o que sois, a saber: mulher. Se fordes mais, não sereis nenhuma. Mas se o sois, como vosso exterior assaz o indica, demonstrai-o nesta hora, revestindo-vos do trajo competente.

ISABELA — Só disponho de uma língua, senhor; instante peço-vos que volteis a falar na outra linguagem.

ÂNGELO — Direi, pois, sem ambages, que vos amo.

ISABELA — Meu mano amou Julieta, e me dissestes que por isso ele morre.

ÂNGELO — Não morrerá, Isabel, se amor me derdes.

ISABELA — Sei que vossa virtude o privilégio goza de uma licença com que feia se torna, só com o fim de a outros tentar.

ÂNGELO — Palavra de honra, crede-me: o que digo é todo o meu intento.

ISABELA — Ah! essa honra é pequena em demasia para ser crida. E o intento, mais que infame! Hipocrisia tudo, hipocrisia! Cuidado, Ângelo! Vou desmascarar-te! Vais assinar-me logo a liberdade de meu irmão, se não, com toda a força dos pulmões vou gritar por esse mundo que espécie de homem tu és.

ÂNGELO — Quem dará crédito ao que disseres, Isabel? Meu nome sem mácula, a austereza do meu modo de viver, a formal contestação a quanto asseverardes, e meu posto dentro do Estado, tanto a vossas queixas hão de prevalecer que heis de asfixiar-vos em vosso próprio conto, só restando de tudo, ao fim, um cheiro de calúnia. Mas já que principiei, vou soltar rédeas ao instinto sensual: consente logo no que requer o meu desejo ardente, pára com essas sutilezas, esses rubores dispensáveis, que só servem para banir o que eles ambicionam; resgata o irmão, cedendo aos meus desejos o corpo; do contrário, não somente vai morrer ele a morte cominada e, ante a recusa tua, ora acrescida de morosa agonia. Amanhã traze-me a resposta; se não, por esta mesma paixão que me domina, eu me transformo para ele num tirano. Quanto a vossas verdades, espalhai-as, que com a minha falsidade irei dar-lhes morte asinha. (Sai.)

ISABELA — A quem me queixarei? Quem há de crer-me, quando eu contar tudo isto? Oh bocas cheias de perigos, que, com uma língua apenas, tanto podem matar como dar vida, dobrando a lei com tais e tais caprichos, que o justo e o injusto espetam no apetite que os maneja à vontade! Vou ver Cláudio; conquanto a instigação do sangue o tenha feito cair, abriga tal espírito de honra, que se possuísse dez cabeças para estender nos cepos sanguinosos, sacrificá-las-ia antes que o corpo sua irmã abandonasse a tão abjeta profanação. Morre, irmão! Isabel, sê sempre pura! Os irmãos passam, a pureza dura. Mas vou contar-lhe o que Ângelo me disse para que a morte aceite com ledice. (Sai.)

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