Processo Familiar

Novo CPC valorizou aspectos da Psicologia no Direito de Família

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

24 de abril de 2016, 8h00

Spacca
As perícias psicológicas são instrumentos cada vez mais fundamentais nas demandas judiciais de famílias que necessitam de equilíbrio no exercício das funções parentais. Equilíbrio perdido, ou mesmo nunca atingido, nas crises decorrentes das separações — em sentido lato —, e em discussões a respeito do exercício do poder familiar. Equilíbrio que deve ser ponderado levando-se em conta os interesses e necessidades de crianças, adolescentes e, também, dos adultos. Interesses e direitos que devem ser necessariamente complementares numa família.

Em nossos dias, ponderar o necessário equilíbrio quanto ao exercício da função exercida por cada qual numa família representa uma dificuldade maior, visto que as funções, materna e paterna, não guardam mais a clara especificidade de outrora, em tempos em que são mais amplamente compreendidas as necessidades dos filhos, e dada crescente importância aos aspectos afetivos.

A relativamente clara e objetiva responsabilidade que cabia a cada ator da cena familiar ganhou outras nuances, inclusive com a consciência de que os aspectos subjetivos, emocionais, se operacionalizam nos vínculos, nas formas de relacionamento, nas diversas possibilidades de convivência.

Em suma, o exercício do poder familiar e da responsabilidade parental abrange aspectos materiais e existenciais, num amálgama entre fatores objetivos e subjetivos que, nas demandas judiciais, cabe esclarecer com o auxílio das perícias.

Aos especialistas da Psicologia cabe o uso de lentes próprias à sua formação para descobrir o que de latente há no manifesto das demandas judiciais. O latente, as motivações não tão claras para o leigo, podem esconder tanto aspectos legítimos quanto ao exercício das funções, como podem mascarar aspectos egoístas que, indevidamente e inconscientemente, animam as demandas em nome do exercício das funções materna e paterna e em nome dos filhos.

Cabe, então, sob a ótica das perícias, decantar o cantado Princípio do Superior Interesse da Criança e do Adolescente. Como demonstram alguns exemplos do cotidiano das varas de Família, o referido princípio mascara, muitas vezes, entre outros, interesses egoístas como um luto pela perda da conjugalidade ou da(o) companheiro(a), sentimentos de exclusão e rejeição, sentimentos de ciúmes para com aqueles que agora são alvos dos afetos antes dirigidos ao par desfeito.

As ações na área do Direito de Família são especialmente complexas, e, se não for compreendida a dinâmica psicológica que as anima, essas tendem a se repetir, apenas mudando seu objeto. Assim é que, mesmo quando firmados bem formulados acordos, ou julgadas questões aparentemente “resolvidas”, estas retornam travestidas por outros objetos, agora alvo de disputa. Questões quanto ao patrimônio transformam-se em questões quanto aos alimentos e mesmo em disputas quanto ao exercício da guarda. “Resolve-se” uma demanda, ressurge outra. Uma dinâmica que necessita de análise para se modificar.

As perícias são, por definição, prenhes de expectativas e de subjetividade. E, nesse contexto, estão imersas as partes, os operadores jurídicos e, por maior que seja o preparo, também os profissionais da Psicologia e do Serviço Social. Some-se a isso a judicialização dos conflitos, as condições de trabalho muitas vezes inadequadas e as diversas expetativas em relação às perícias (avaliação da dinâmica familiar, diagnóstico de psicopatologias, proteção dos interesse das crianças e adolescentes, de sua integridade mental, quando não da física). Sendo que algumas expectativas transcendem o próprio objeto das perícias (investigação da ocorrência objetiva de fatos, mediações e acordos, abordagem psicoterapêutica e outras).

E há, ainda, a bem conhecida pressão dos prazos, em área em que o tempo da subjetividade absolutamente não corresponde ao tempo da objetividade dos prazos processuais.

Nesse contexto, especialmente delicado e adverso, encontramos por vezes até avaliações elaboradas com base em apenas uma ou duas entrevistas. E, ainda, ferindo o que seria, do ponto de vista da Psicologia, a ausência do direito ao contraditório, é feita avaliação somente da suposta vítima nos graves casos de denúncia de violência e de abuso sexual. Situações que, por sua vez, denunciam um contexto relacional doente, de que padece não somente um dos membros da família.

Muitas vezes, é como se aos profissionais da Psicologia se atribuísse uma capacidade de enxergar, quase que por magia, aspectos que por natureza são de evidente difícil percepção e análise. E o pior é quando esses profissionais acreditam ter tal faculdade. Alguns peritos, sob intensa pressão, colocados indevidamente numa posição idealizada e de certo isolamento face à dinâmica judicial, e dada a ausência de colaboração por parte de assistentes técnicos psicólogos, podem acabar por se defender padecendo, de forma caricata do que tomo a liberdade de denominar, de “juizite”.

Certo é que as perícias, além de merecerem uma compreensão que leve em conta a dificuldade da tarefa e as expectativas desmedidas de que são alvo, deveriam contar com a colaboração de outros profissionais da Psicologia, faculdade prevista em lei, que possam acrescentar conhecimento e mesmo contrabalançar a subjetividade inerente à essas avaliações.

Observo que às sentenças cabem recursos, já aos laudos, se feitos somente por um especialista, e se não for nomeado assistente técnico, cabem somente as críticas dos advogados, que, por mais interessados e sensíveis que sejam, são leigos no assunto.

Fundamental o concurso de colegas de visão dos peritos psicólogos, os assistentes técnicos, em seara tão prenhe de subjetividade, da qual absolutamente não estão infensos os peritos; aliás, muito pelo contrário, pois a estes tocam justamente as questões mais subjetivas.

De grande valia, e obedecendo a outra dinâmica — a da Psicologia —que deve necessariamente compreender as relações como complementares e dinâmicas — em seus aspectos conscientes e inconscientes —, deve ser a colaboração dos assistentes técnicos.

Surpreende que, justamente nessa área, muitas vezes a possibilidade e direito em nomear assistente técnico não são nem sequer discutidos com as partes. A intenção pode ser a de poupar os assistidos de ainda mais despesas — estas que são, na verdade, um importante investimento.

Os assistentes técnicos têm a oportunidade de avaliar outros aspectos aos quais o perito, por circunstâncias, não tem acesso, devendo estes profissionais levar ao conhecimento daquele suas análises, discutir conclusões e encaminhamentos.

A inerente subjetividade das avaliações e mesmo limitações e circunstâncias do trabalho pericial em muito deveria ganhar com essa colaboração. Observo que a dinâmica entre os profissionais da Psicologia deve, por definição, ser diversa da compreensão, muitas vezes parcial e oposta, dos representantes das partes, imersos em litígios que demandam a ponderação de outros profissionais.

É certo que, lamentavelmente, muitas vezes observa-se uma confusão de funções. E se o perito acaba, por vezes, sofrendo de “juizite”, o assistente técnico pode, num desvio de sua função, sofrer de “advocatite”, defendendo uma parte em vez de contribuir para a ampliação da compreensão da dinâmica relacional. Quando impera tal dinâmica, põe-se a perder um importante instrumento de auxílio de compreensão, elaboração e encaminhamento das demandas judicias.

O novo Código de Processo Civil trouxe uma inegável valorização dos aspectos subjetivos, afetivos, relacionais e da Psicologia, com a valorização das perícias, devendo o juiz contar inclusive com o acompanhamento de especialistas nas audiências.

Lugar comum falarmos de mudança de paradigma, modelos nos quais fundamentamos nosso conhecimento, nossos valores. E os novos paradigmas implicam também em procedimentos por meio dos quais avaliamos e interferimos na realidade. Além da valorização dos aspectos afetivos, o código trouxe também a valorização da dinâmica colaborativa. A conciliação e a mediação presentes no novo código são reflexo dessa mudança. E aponto aqui que, nesse sentido, que para fazer face aos ditos novos paradigmas, devem ser mais do que encorajados os procedimentos que contem com profissionais da Psicologia não só na função de peritos, e mesmo de mediadores, mas também que contem com a colaboração dos assistentes técnicos, imprimindo-se uma dinâmica cooperativa nas perícias.

Tudo em benefício de uma prestação jurisdicional em que a colaboração dos operadores do Direito e dos operadores da saúde — e desses entre si — tragam a necessária eficácia às delicadas demandas que tocam ao Direito de Família.

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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