O pensamento de Luigi Ferrajoli e as dez aporias na obra de Hans Kelsen
23 de abril de 2016, 8h05
O livro se estrutura, analiticamente, em uma premissa e dez capítulos, que correspondem às aporias kelsenianas: (I) a assunção do dever ser da sanção como categoria explicativa de toda a fenomenologia do direito; (II) a ideia de que os direitos subjetivos são apenas reflexos e pressupostos dos correspondentes deveres e das relativas sanções; (III) a desconfiança pela incorporação dos direitos fundamentais nas constituições; (IV) a confusão entre existência, validade e eficácia das normas e a negação do direito ilegítimo; (V) as ambivalências sintáticas e semânticas da noção de norma, incluindo a ficção antipositivista da norma fundamental; (VI) a progressiva remoção da dimensão estática dos ordenamentos jurídicos, em favor de sua dimensão puramente dinâmica nos estados constitucionais de direito; (VII) a tese da inaplicabilidade da lógica ao direito; (VIII) o caráter criativo e puramente volitivo da jurisdição em oposição ao caráter descritivo da ciência jurídica; (IX) a democracia política como autogoverno e a jurisdição como fonte de direito; (X) a concepção tão-somente formal das democracias atuais.
Como adverte Ferrajoli, o interesse pelas aporias de Kelsen não se deve ao seu caráter historiográfico, mas porque elas dizem respeito ao “mais importante aparato teórico de que dispõe a ciência do direito e também porque uma grande parte delas ainda se encontra na base — graças à autoridade de Kelsen — de uma difundida interpretação reducionista do constitucionalismo baseada sobre a desvalorização do papel da lógica na racionalidade jurídica, nos juízos sobre a validade das normas e na proteção das garantias implicadas e impostas pela sintaxe do paradigma constitucional”.
Trata-se, em suma, de uma obra extremamente crítica e corajosa. Isso porque, como todos sabem, Ferrajoli nunca abriu mão de sustentar uma concepção positivista de direito. Seu pensamento — em cujas bases se encontra a filosofia analítica — foi nitidamente influenciado pelas teses normativistas de Kelsen e, sobretudo, de Bobbio.
No entanto, o projeto levado a cabo por Ferrajoli — conhecido, mundialmente, por modelo garantista — sempre assumiu uma perspectiva crítica, especialmente diante do denominado paleo-juspositivismo. Ao longo de sua vasta obra, cujo início remete à década de 60, Ferrajoli foi identificando e corrigindo os gaps do pensamento do mestre de Viena. Ou melhor: Ferrajoli foi ajustando e adaptando, gradualmente, a Teoria Geral do Direito Positivo — formulada por Kelsen, em 1934, com a primeira edição da Reine Rechtslehre —, atualizando-a de acordo com as exigências resultantes da consolidação do paradigma do Estado Constitucional de Direito.
Eis um livro cuja leitura certamente vale a pena. Hoje ninguém duvida da importância de Kelsen. Ele é genial. Deu-se conta de que era impossível fazer ciência no entremeio do agir dos juristas e da aplicação do Direito. Por isso, enquanto os positivistas que o antecederam e rodeavam procuravam lidar diretamente com o Direito, Kelsen escolheu outro caminho: fazer Ciência do Direito. E, para isso, era necessária uma perspectiva externa. Descritiva. Enquanto os positivistas limitavam-se a separar direito e moral, Kelsen, realisticamente, buscou separar a ciência do direito da moral. E até hoje os juristas correm atrás do próprio rabo. Talvez o grande mistério seja descobrir o modo como um discípulo de Kelsen como Ferrajoli tenha conseguido lidar com esses dois níveis da teoria kelseniana. Esse novo livro talvez nos ajude a compreender essa intrincada problemática: como ser positivista depois de Kelsen e conservar um olhar prescritivo do e no Direito?
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