Retrato do Judiciário

Dez anos do Anuário da Justiça: muito a comemorar e a preservar

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23 de abril de 2016, 8h07

Será lançada nesta terça-feira (26/4), no salão Branco do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, a décima edição do Anuário da Justiça Brasil 2016. Trata-se de um especial com o retrato dos últimos 10 anos do Judiciário brasileiro. Na oportunidade, também será inaugurada a exposição “1215: Magna Carta Libertatum – 1824: A Primeira Constituição Brasileira”, que homenageia os 800 anos da Magna Carta inglesa, a primeira constituição da história da humanidade, e os quase dois séculos da Constituição brasileira de 1824.

Leia a seguir a íntegra de reportagem que será publicada no Anuário da Justiça Brasil 2016.

A comemoração é dupla: à Justiça e ao Anuário da Justiça. À Justiça, por sua contribuição, ao longo desses dez anos, para acréscimos na qualidade da democracia brasileira. Ao Anuário da Justiça, por sua perspicácia em apostar no Poder Judiciário e nas possibilidades da instituição de provocar impactos nas áreas públicas e privadas.

O primeiro Anuário da Justiça, de 2007, já nasceu festejando. O editorial antecipava o que os próximos anos testemunhariam: a vitalidade da Constituição Federal, que completaria 20 anos em 2008; o fortalecimento do órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, prestes a atingir 200 anos. E, para lembrar o compromisso do ConJur com a Justiça, consignou: “Longe de ter a mesma importância, agrada-nos imodestamente informar que a revista eletrônica Consultor Jurídico, responsável por este Anuário da Justiça, completa agora os seus primeiros dez anos.”

Em 2007, o país vivia um momento muito diferente do atual. A economia estava estabilizada; crises políticas e escândalos não afetavam a governabilidade; os pilares da democracia experimentavam as fases iniciais de construção institucional. Transcorrida uma década, a situação é outra. As bases da economia desmoronaram; as instituições políticas estão enfraquecidas; o desalento popular com o governo e com os partidos atingiu patamares críticos. A despeito desse conjunto de fatores negativos, a democracia se consolidou, graças, sobretudo, ao fortalecimento das instituições do sistema de Justiça. O desenrolar desse processo está estampado nos Anuários.

Com efeito, a série dos Anuários da Justiça, 2007 a 2015, revela a contribuição do Poder Judiciário e do sistema de Justiça no processo de consolidação democrática. A continuidade das publicações evidencia que a ousadia do projeto foi compensada. A sequência de radiografias permite que, hoje, se tenha uma imagem mais aprimorada do Judiciário e das instituições que atuam no sistema de Justiça. São retratados momentos de indiscutível avanço, outros de certa descontinuidade e outros ainda de inquietação. O balanço final — ressalte-se — é extremamente positivo.

As transformações no período são de monta, com consequências que vão muito além do Judiciário e dos demais organismos. A Justiça conquistou espaço na arena pública, tendo marcado presença em todas as principais questões que envolveram a área pública e a privada. O Poder Judiciário teve atuação constante e decisiva nos embates políticos e na definição de questões relevantes. Ministros se tornaram conhecidos e, como tal, foram elogiados ou criticados. Decisões foram televisionadas, aplaudidas por uns e desaprovadas por outros. Independentemente da apreciação que se faça, uma constatação é inquestionável: foi rompido o casulo que protegia e distanciava o Poder Judiciário e seus magistrados da sociedade.

Os Anuários da Justiça têm contribuído fortemente para essa aproximação. Textos com linguagem clara, sem rebuscamento ou juridiquês, fornecem informações sobre tribunais, ministros, decisões. Constam também dados, ainda que em menor extensão, sobre a Procuradoria Geral da República, a Advocacia Geral da União, o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Conselhos Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Tribunal de Contas da União, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Polícia Federal e o Congresso Nacional.

As publicações se transformaram em importante fonte de informação não só para especialistas ou para a comunidade acadêmica, mas para o público em geral. A leitura dos Anuários permite conhecer como, a cada ano, foi urdida a identidade do Judiciário e das instituições do sistema de Justiça. Depois de percorrer os volumes não há como não reconhecer: a Justiça ganhou nova feição, se expôs, enfrentou temas controversos, se consolidou.

Ministros e decisões
Um leitor menos familiarizado com a literatura sobre as instituições de Justiça poderia se perguntar: qual a importância de se conhecer a idade, o local de nascimento, o estado civil, a faculdade de formação, a área de especialização, a trajetória profissional e a orientação do voto dos ministros? Não é apenas para satisfazer a curiosidade que normalmente se tem em relação a personagens públicos: trata-se de aspectos que contribuem para a compreensão do desempenho da instituição e para orientar análises prospectivas.

A indagação — “como os juízes chegam às decisões?” — orientou grande parte das interpretações sobre a Suprema Corte nos Estados Unidos, desde, pelo menos, o início dos anos 1950. Muito antes, já em 1835, Tocqueville, um aristocrata francês, em viagem aos Estados Unidos para estudar o sistema penitenciário daquele país, constatou a singularidade da democracia norte-americana. Diferentemente do que ocorria no continente europeu, ali o sistema político se sustentava na efetiva tripartição do poder; o Judiciário havia sido alçado à posição de instituição de poder de Estado, exercendo função contra majoritária. Nos anos seguintes, traços que indicavam uma potencialidade foram fortalecidos, acentuando-se o protagonismo do Judiciário.

Em face de tal participação nas esferas política, social e privada, multiplicaram-se os estudos sobre o Poder Judiciário. Os impactos provocados pelas decisões da instituição foram os principais estímulos para a busca de respostas sobre as variáveis que interfeririam nos julgamentos. Entre os modelos interpretativos mais conhecidos despontam os que valorizam atributos pessoais dos ministros. Para essa linha de explicação, as decisões são, em grande parte, influenciadas pelo background social e econômico (idade, sexo, religião etc.), pelo tipo de carreira, pelos valores e as convicções dos magistrados. Embora esse modelo não seja hegemônico, as interpretações concorrentes não desprezam essas variáveis.

No caso brasileiro, estudos sobre o comportamento dos integrantes das cortes de Justiça são, comparativamente, muito mais recentes, tendo conquistado vitalidade apenas nas últimas décadas do século XX. Certamente isso se deve ao fato de que a partir da Constituição de 1988 as instituições do sistema de Justiça foram erigidas a posições de destaque, passando a responder às exigências de um Estado democrático e republicano.

O número de análises guarda estreita relação com a importância da instituição e com a amplitude de seus reflexos na vida política e social. Assim, não se trata de uma casualidade que, a partir dos anos 1990, o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tenha se transformado em tema de estudos e atraído a atenção da mídia. A corte se configurou como uma arena de debates de questões que envolvem amplos setores da sociedade; tem exercido o controle da constitucionalidade sobre leis e atos normativos relacionados às relações entre os poderes do Estado e entre esses poderes e a sociedade. Essas características impuseram a elaboração de indagações semelhantes às que orientaram os estudos nos Estados Unidos, tais como: que aspectos interferem na decisão dos magistrados?; respondem eles aos interesses do partido político que os indicou?; orientam seus votos pela letra estrita da lei, sem considerar suas consequências econômicas e sociais?; são permeáveis à opinião pública? etc.

O desenvolvimento de estudos, entretanto, depende fundamentalmente de informações. Na ausência de dados e de informações é impossível elaborar análises e interpretações minimamente consistentes. A inexistência ou a precariedade de fontes primárias constituem terreno fértil para discursos normativos e, no pior dos casos, para proposições simplistas, mistificadoras, demagógicas e, muito provavelmente, utópicas.

Os Anuários da Justiça permitem escapar do “achismo”, do reducionismo, fornecendo um notável conjunto de informações. A partir da coleção de publicações, o pesquisador pode se debruçar sobre um farto material, com dados sobre magistrados, sobre o funcionamento e a composição dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal.  Sobre as decisões de maior impacto, sobre a orientação dos votos. Os dados estão sistematizados, representado uma matéria prima já lapidada.

Além disso, cada exemplar elege o que poderia ser considerado a marca essencial daquele ano e sua contribuição para a melhoria da prestação jurisdicional. As chamadas de capa são um roteiro: Nasce um novo Judiciário; A luz no fim do túnel; A montanha se moveu; O poder da última palavra; A hora da razão; Explosão de direitos; Um por todos: Judiciário prioriza soluções coletivas sobre casos individuais; A reinvenção da Reforma.

No capítulo dedicado ao STF, vários são os aspectos salientados: o processo de informatização; os efeitos da racionalização e do gerenciamento; a promoção de audiências públicas; a adoção e as consequências da Súmula Vinculante e da Repercussão Geral; decisões importantes e como votaram os ministros, as turmas e o colegiado. O elenco das decisões selecionadas está classificado por temas: administrativo, advocacia, ambiental, comercial, comunidade jurídica, constitucional, criminal, eleitoral, família, financeiro, imprensa, legislativo, funcionalismo público, política, previdenciário, processual, trabalhista e tributário.

Similar organização dos dados aparece em relação aos demais tribunais. Completam as informações, notas sobre a PGR, a AGU, o CNJ, o CNMP, o Cade, o Carf, o TCU.

Retomando a questão — como os magistrados decidem? —, pode-se constatar que tem crescido, entre nós, o acervo de dados e de pesquisas. Conclusões salientam que conhecer quem são os integrantes da instituição e como votam faz a diferença. Conclui-se, com base em dados, por exemplo, que o presidente da República ou o partido político que indicou o ministro tem influência relativa em suas deliberações e que essa importância tende a desaparecer com o seu tempo na corte. Nesse sentido, reafirma-se que o perfil dos principais protagonistas é extremamente relevante, já que auxilia na previsão de votos, indicando quais convicções podem contribuir para o posicionamento sobre questões relevantes.

O exame da coletânea de decisões reunida nos Anuários atesta que não há posições fixas, que classificações baseadas em “estereótipos simplistas como ‘conservador’, ‘progressista’ e ‘governista’ não servem para designar a maior parte dos ministros e ministras” (Anuário da Justiça 2007, página 11).

Uma década reluzente
Este ano foi decisivo! Essa observação se repetia a cada Anuário da Justiça lido. O mesmo comentário foi repetido tantas vezes que impingiu a dedução: uma década marcante. Com efeito, quando se percorre a sequência dos Anuários, depara-se, no final, com um quadro modelado por um volume extraordinário de mudanças e por situações que contribuíram para a consolidação do atual sistema de Justiça brasileiro. Os impulsos não são iguais em todos os anos. Eles refletem características das lideranças, dos demais integrantes das cortes e também da conjuntura.

Um brevíssimo retrospecto, meramente ilustrativo e apenas focado no STF, destaca alguns fatores que, a cada ano, contribuíram para o perfil da corte no presente.

A ascensão do Poder Judiciário e a sua efetiva autonomia destacada no Anuário da Justiça 2007 percorrem todos os Anuários. Resume o editorial: “O ano de 2006 entra para a história do Brasil como o período de maior evidência da Justiça brasileira. Foi também a quadra em que o Supremo Tribunal Federal mais influiu na vida do país. Tornou remota a era em que o Executivo parecia ser o único Poder da República, relegando o Legislativo e o Judiciário a um plano subalterno perante a opinião pública.” (Anuário da Justiça 2007, p. 29) Aquele foi o ano em que a primeira mulher presidiu o STF; a impunidade sofreu golpes com o Mensalão; um magistrado de corte superior foi afastado; operações policiais se transformaram em sucesso midiático.

Em 2008, apesar de grande parte da agenda pública estar focada nos escândalos de corrupção, o STF, presidido por Gilmar Mendes, implementou alterações de grande impacto: a Súmula Vinculante, a Repercussão Geral, a Lei dos Recursos Repetitivos. Pela primeira vez foi aprovado o planejamento estratégico e adotado um programa de padronização e racionalização de procedimentos. A corte redefiniu a posição dos tratados internacionais no ordenamento jurídico nacional; decidiu sobre a utilização de células-tronco em pesquisas científicas; restringiu o uso de algemas; aprovou a fidelidade partidária; proibiu o nepotismo; houve a definição de teto salarial no Judiciário. Além desses aspectos, o Anuário da Justiça 2009 realizou uma pesquisa junto aos magistrados, indagando sobre três temas polêmicos: a revisão da Lei da Anistia, o quinto constitucional e a vinculação da Polícia Federal ao Executivo.

Em 2009, houve inequívocos ganhos em transparência; no compromisso com a accountabiliy e nos benefícios decorrentes do estabelecimento de metas. Entendimentos com os poderes Executivo e Legislativo resultaram no Pacto Republicano para agilizar o Judiciário. Mutirões carcerários enfrentaram problemas centenários, corrigindo erros judiciais. O CNJ aperfeiçoou a coleta de dados, permitindo diagnósticos e o desenho de políticas de planejamento e gestão. A Corregedoria do CNJ abriu as portas para a sociedade. Pesquisa do Anuário da Justiça aponta que a extensa maioria dos ministros das cortes superiores (61%) considera que ao julgar o juiz deve levar em consideração os impactos de sua decisão em termos sociais, econômicos e de governabilidade.

O ano de 2010 presenciou a redução no estoque de processos à espera de julgamento nos tribunais superiores graças à Súmula Vinculante e à Repercussão Geral. A gestão de César Peluso privilegiou questões jurisdicionais e foi marcada por um estilo oposto ao de seu antecessor. Foi confirmado o princípio da individualização da pena e validada a Lei da Ficha Limpa. A pesquisa elaborada pelo Anuário versou sobre quem são os doutrinadores preferidos pelos ministros que compõem a cúpula do Judiciário. Os mais citados foram Barbosa Moreira e Pontes de Miranda.

Em 2011, o Judiciário continuou a perseguir a adoção de métodos de gestão e de tecnologia para aumentar a eficiência. Decisões mais rápidas e uniformes e a redução no número de recursos são exemplos de resultados favoráveis. Ocorreram julgamentos emblemáticos, como o que equiparou o regime jurídico das uniões estáveis homoafetivas ao das uniões estáveis entre homem e mulher; a competência do CNJ; a extradição de Battisti.

O ano de 2012 foi monopolizado pelo julgamento da ação penal 470, o Mensalão, que colocou o Judiciário em foco e transformou ministros em personagens conhecidos por vastas camadas da população. Mas foi também quando se deu o reconhecimento da constitucionalidade das leis Maria da Penha e da Ficha Limpa; foi decidido que a interrupção de gravidez de feto anencéfalo não é crime de aborto; e o STF reconheceu que políticas de ações afirmativas com base em critérios étnicos estão de acordo com a Constituição Federal.

Em 2013 políticas judiciais deram continuidade à busca pela padronização e uniformização de entendimentos. Ampliou-se a aceitação de que uma Justiça eficiente depende de gestão e planejamento.

O ano seguinte foi marcado pelos efeitos de uma alteração no regimento do STF, que valorizou o trabalho das turmas e liberou o Plenário para o julgamento de ações de controle concentrado de constitucionalidade e recursos com repercussão geral reconhecida. Cresceu significativamente o número de ações julgadas e, em decorrência, a corte exerceu mais plenamente sua atribuição de controle da constitucionalidade. Foram priorizados recursos com Repercussão Geral. Acrescente-se, igualmente, a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos que autorizavam contribuições de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais; e o reconhecimento da competência do Ministério Público Federal para promover investigações de natureza penal.

A caminho da apoteose
Os dados e as análises que formam a coletânea dos Anuários indicam que parte do percurso em direção a uma Justiça mais eficiente, de qualidade e diligente foi percorrido. Chegar ao destino deixou de significar uma quimera compartilhada apenas por idealistas ou sonhadores.

Nestes últimos anos a transformação do Judiciário e das demais instituições do sistema de Justiça foi muito mais expressiva do que em todo o período anterior. Uma série de dificuldades foi superada.

Ocorreram inquestionáveis ganhos no conhecimento do Judiciário. Levantamentos como Justiça em Números e Justiça Aberta e os Anuário da Justiça permitem aproximações com a realidade. A coleção de Anuários oferece, ademais, um extraordinário material sobre as demais cortes superiores. Acrescente-se que o acervo de pesquisas é, hoje, apreciável. A partir dessa acumulação de conhecimento é possível elaborar hipóteses e descartar interpretações superficiais ou simplistas. E, extremamente importante: há bases para a definição e a implementação de políticas públicas visando a aprimorar a instituição e a prestação jurisdicional.

Salientar os avanços não significa, contudo, ignorar o longo caminho que ainda precisa ser percorrido e os obstáculos a se enfrentar. Dentre eles, o extraordinário volume de processos, a morosidade, a cultura da litigância, a falta de gerenciamento, o reduzido acesso à Justiça.

Quando se completa dez anos e se pode dizer que, a despeito de dificuldades, ocorreram conquistas, há motivos para comemorar e para preservar. Para terminar, votos que essa bodas de estanho entre o Anuário e a Justiça seja o prenúncio de muitas outras.

Autores

  • Brave

    é doutora em ciência política, professora do Departamento de Ciência Política da USP e diretora de pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.

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