Opinião

A possibilidade de ressignificação da omissão inconstitucional

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21 de abril de 2016, 12h53

*Artigo originalmente publicado no Boletim Jurídico do escritório Fachin Advogados

Recentemente, ao discutir a trágica situação carcerária do país por meio da medida cautelar ínsita à ADPF 347, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de um “estado de coisas inconstitucional” (ECI). Em suma, trata-se do reconhecimento de uma violação sistemática e estrutural a direitos fundamentais que ocorre não em virtude de uma lei ou de um ato normativo, mas, isto sim, em função de uma situação fática que se perpetua em razão de uma persistente omissão estatal no âmbito de seus poderes.

O conceito do ECI surgiu, primeiramente, das discussões da Corte Constitucional Colombiana, em 1997, que utilizou esse termo para qualificar a situação previdenciária de seu país. Na época, 45 professores municipais ingressaram com uma ação por terem seus direitos previdenciários negados pelo Estado colombiano. No curso das discussões a Corte Constitucional Colombiana percebeu que o descumprimento de tais garantias previdenciárias era, em verdade, generalizado e seria decorrente de uma falha estrutural no provimento de tais direitos. Foi essa concepção de estado de coisas inconstitucional que ecoou no recente julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro. Compreender essa “nova” categoria é, portanto, fundamental para se avançar no debate de seu alcance e utilidade.

O professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos identifica três pressupostos básicos para se caracterizar uma situação fática como um estado de coisas inconstitucional. O primeiro desses pressupostos diz respeito ao reconhecimento de uma violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que afete uma ampla parcela da população. Não basta, portanto, uma proteção insuficiente de caráter episódico e com pequena repercussão, é necessário que tal violação se apresente mais como regra do que como exceção.

O segundo pressuposto trata da omissão reiterada das autoridades públicas na promoção de tais direitos, isto é, trata-se de uma ausência de medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e judiciais no tratamento dessas violações de direito, determinando uma verdadeira falha estrutural na garantia de direitos. Note-se, dessa forma, que a omissão de uma autoridade ou de um âmbito do poder não é suficiente para configurar o ECI, mas sim, há que se identificar uma omissão coordenada entre os diversos poderes e autoridades de modo a se vislumbrar o caráter estrutural da inércia estatal.

O terceiro pressuposto se relaciona às medidas necessárias para a superação desse estado de inconstitucionalidade. Se é verdade que a crise estrutural que conforma o ECI pressupõe uma violação reiterada de diversos poderes e autoridades públicas também é verdade que a superação desse quadro pressupõe uma ação coordenada entre esses mesmos poderes e autoridades públicas outrora violadores de direitos. Assim, a Corte ao visualizar um estado de coisas inconstitucional precisará determinar medidas resolutivas para os variados âmbitos do poder que permanecem dissonantes na garantia dos direitos fundamentais.

Em verdade, a identificação do ECI por parte das Cortes Constitucionais procura não apenas reconhecer uma situação fática inconstitucional, mas também propor soluções para que tais situações voltem estar em conformidade com os objetivos da Constituição. Afasta-se aqui, desde logo, o argumento de um suposto excesso de ativismo judicial ou de invasão de competência do Poder Judiciário em relação dos demais poderes da República.

De fato, a consubstanciação de um estado de coisas inconstitucional pressupõe a omissão dos demais poderes e até mesmo do próprio Poder Judiciário frente à situação fática de violação da norma constitucional. O agir da Corte Constitucional frente à omissão dos demais poderes não pode ser encarado como ativismo, pelo contrário, trata-se de um dever do Judiciário que não pode permanecer igualmente silente em face de violações explícitas à Constituição. Não se trata, portanto, de ativismo judicial, mas sim de uma reação do Poder Judiciário à omissão dos demais poderes, o que configura um agir nitidamente legítimo. Do mesmo modo, não está o Judiciário a invadir a competência dos demais poderes da República. Como é cediço, o respeito à Constituição é dever de todos os poderes constituídos, sendo que, dentro da concepção clássica de separação dos poderes calcada na ideia de freios e contrapesos, é papel do Judiciário fiscalizar abusos ou omissões dos demais poderes, mormente no que tange ao respeito das normas constitucionais. Nesta senda, a falha estrutural que conforma ECI decorre de uma omissão reiterada da Administração Pública e do atuar legislativo, de modo que cabe ao Judiciário impor a tais poderes as medidas necessárias para fazer cessar a omissão inconstitucional e estimular um agir positivo do Estado no sentido de fazer desaparecer esse estado de coisas que viola a Constituição.

No exemplo brasileiro de reconhecimento do ECI, duas medidas foram resultantes: a primeira que diz respeito à obrigatoriedade da audiência de custódia perante o juiz, em até 24 horas, quando da prisão em flagrante e a segunda que proíbe o contingenciamento do Fundo Penitenciário. Tais medidas em momento algum expressam qualquer tipo de ativismo em excesso ou demonstram uma invasão de competência por parte do Judiciário. Com efeito, embora representem importantes avanços no que tange à caótica situação carcerária brasileira, ainda demonstra um agir tímido do Judiciário frente a um ECI evidente. O incontestável problema das prisões provisórias (responsável por mais de 40% do encarceramento brasileiro), por exemplo, não foi tratado pelo STF, o que indica que a Corte, em verdade, poderia ter ido ainda mais além.

É precisamente neste meandro da discussão que se vislumbra o principal desafio da conceituação do ECI. Qual o alcance que as suas medidas resolutivas podem ter? Se a resposta para essa pergunta for envolta em um puritanismo que procura extirpar a atuação positiva e propositiva do Judiciário em relação aos demais poderes estar-se-á diante do conceito já bastante conhecido no ordenamento jurídico brasileiro de omissão inconstitucional, que, como bem se sabe, em termos práticos é quase irrelevante.

Poderia se dizer que a omissão inconstitucional é efetivamente resolvida por meio do mecanismo do Mandado de Injunção, no entanto, a discussão ainda vigente sobre o alcance da regulamentação exarada pelo Poder Judiciário nesses casos torna o MI insuficiente para sanar um Estado de Coisas Inconstitucional, haja vista que o ECI pressupõe uma violação generalizada e o MI, ao menos em tese, se pretende uma ação de efeitos inter partes.

A adoção do ECI pela cultura jurídica brasileira tem, pois, a oportunidade de revestir de eficácia a declaração de omissão inconstitucional pelo Poder Judiciário. Para tanto, é preciso ter em mente que frente a uma omissão que gera uma evidente violação à Constituição é dever do Judiciário agir ativamente e propositivamente de modo a assegurar a autoridade da norma constitucional. Igualmente, como bem suscita Roberto Gargarella, a mera ampliação de direitos e sua interpretação concatenada e sofisticada são inócuas se a maquinaria institucional não for alterada. Isto significa que a solução proposta para um estado de coisas inconstitucional precisa ser, necessariamente, estrutural, o que pressupõe uma atuação coordenada entre os poderes que enseje uma mudança na própria cultura institucional.

É somente dessa forma, com um Judiciário sem medo de tomar seu lugar e capaz de propor alterações verdadeiramente estruturais, que se poderão efetivar as expectativas que sempre se depositaram na ideia de inconstitucionalidade em face das omissões estatais.

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