Opinião

Lei antiterrorismo inova com a tentativa antecipada do crime

Autores

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

  • Adriano Sousa Costa

    é delegado de Polícia Civil de Goiás autor pela Juspodivm e Impetus professor da pós-graduação da Verbo Jurídico MeuCurso e Cers membro da Academia Goiana de Direito doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

20 de abril de 2016, 6h02

Ao editar a lei de antiterrorismo (Lei 13.260/16), o legislador atendeu, com certo atraso[1], ao mandado de criminalização estampado no artigo 5º, XLIII da Constituição Federal, que estabelece o terrorismo como crime equiparado a hediondo. Seguiu também uma tendência mundial de adotar medidas para prevenir, punir e eliminar o terrorismo, obrigação assumida pelo Brasil ao aderir a instrumentos internacionais, a exemplo da Convenção Interamericana contra o terrorismo.[2]

A novel legislação trouxe significativas mudanças ao arcabouço normativo pátrio, que geraram, não sem razão, grande dose de inquietude na comunidade jurídica. Muito se falou sobre a antecipação da tutela penal[3], fruto da tipificação de diversos crimes-obstáculo. Além disso, não passaram em branco a presunção absoluta de interesse da União a impor a competência da Justiça Federal e a atribuição investigatória originária da Polícia Federal (artigo 11),[4] além da atuação do juiz de ofício na fase investigatória (artigo 12).[5]

A audaciosa iniciativa do legislador, ao coibir o crime ainda em sua fase embrionária e promover a liquefação de bens jurídicos, pode ser vista sob distintos prismas. De um lado, alguns entenderão como um temerário flerte com o Direito Penal do Inimigo. Lado diverso, outros irão encarar como uma atuação mais rigorosa da lei penal em face dessa específica categoria de criminalidade[6], porquanto crimes tão graves demandam o atendimento à proporcionalidade constitucional (proibindo-se eventuais excessos, mas igualmente vedando-se a insuficiência tuitiva — garantismo positivo).[7]

A par dos vários debates possíveis, examinaremos nesse curto espaço uma grande novidade que ainda não contou com a detida análise doutrinária. Trata-se da punibilidade antecipada da tentativa, da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, antes mesmo do início da execução. É o que se passará a chamar de tentativa, desistência voluntária e arrependimento eficaz antecipados.

Não é estranho ao ordenamento pátrio a possibilidade excepcional de punição de atos preparatórios, quando o legislador, pelas suas regras de experiência social, opta por erigir a preparação à condição de delito autônomo. [8] Esse chamado crime-obstáculo faz consumar uma infração penal mais branda, visando a evitar que infrações mais graves venham a ocorrer.  

A Lei 13.260/16 trouxe mais exemplos dessa técnica jurídica. O artigo 2º, §1º, I permite a punição de quem possui explosivos e materiais perigosos capazes de promover destruição em massa, conduta tipicamente preparatória da execução do atentado propriamente dito. O artigo 3º antecipa a incriminação para atingir quem constituir organização terrorista, destinada a causar o terror social ou generalizado (artigo 1º, §2º, II da Lei 12.850/13). O artigo 6º, por sua vez, pune aquele que mantém valores destinados ao planejamento e preparação do terrorismo. Já o artigo 5º, §1º criminaliza o recrutamento e treinamento de terroristas. Todos esses são exemplos de crime de perigo.

Entretanto, a grande novidade da lei de antiterrorismo foi tornar possível a punição da tentativa do crime de terrorismo mesmo antes do começo da prática do verbo nuclear.

A tentativa, como genericamente conhecemos, ocorre quando o autor do fato inicia a execução do crime que quer consumar, mas não consegue alcançar seu objetivo final por motivos alheios à sua vontade. Apesar de já estar em fase avançada no iter criminis, o indivíduo é punido com base na pena do crime consumado reduzida de um a dois terços (artigo 14, II do CP). Percebe-se que a punibilidade da tentativa simples sempre se vinculou ao começo da execução (realização do núcleo do tipo).

Tal paradigma agora foi rompido pela Lei 13.260/16. O artigo 5º, caput, sentencia que “realizar atos preparatórios de terrorismo” sujeita o agente à pena do delito consumado diminuída de um 1/4 a 1/2, possibilitando a tentativa de terrorismo desde a prática de atos preparatórios que orbitem (de maneira próxima) o verbo nuclear. Cuida-se de verdadeira tentativa antecipada, com outro parâmetro de diminuição de pena.

A doutrina sempre conferiu muita importância à definição da transição entre os atos de preparação e os de execução, justamente pois isso representava a possibilidade de o Estado passar a punir as condutas ilícitas, ao menos a título de tentativa, simples ou abandonada. Várias teorias surgiram para tentar dar um pouco mais de certeza ao exato momento em que o crime passaria a ser executado, dentre elas a objetivo-formal, a objetivo-material e a objetivo-individual.

Para a teoria objetivo-formal, predileta dos autores clássicos, só há que se falar em começo da execução de um crime se o verbo nuclear do crime começar a ser realizado. Dessa sorte, outros verbos, independentemente de serem condutas tidas como antecedentes lógicos desse verbo principal (elencado no tipo penal), não configurarão sequer a tentativa do crime.

Segundo autores mais modernos, adeptos da teoria objetivo-material e da teoria objetivo-individual, são considerados para viabilizar a punição do autor do fato, ao menos pela tentativa, não só o começo da prática do núcleo do tipo, mas também os verbos que lhe são considerados imediatamente anteriores, conforme a visão de um homem-médio (teoria objetivo-material) ou o plano do próprio autor do fato (teoria objetivo-individual). Ficam afastados das garras do Direito Penal somente os atos preparatórios distantes, a não ser que tenham sido tipificados como delito autônomo (crimes-obstáculo).

De posse dessas informações, fica fácil notar que o artigo 5º, caput, da lei de antiterrorismo abandonou aquele apego demasiado ao verbo nuclear para fins de incidência da lei penal. [9] Em outras palavras, a teoria objetivo-formal foi afastada da Lei 13.260/16 em razão da autorização expressa de punição dos preparatórios que gravitam em torno do núcleo do tipo, a título de tentativa antecipada.

A interpretação legal deve ser no sentido de atingir apenas as condutas imediatamente antecedentes à prática dos verbos nucleares do terrorismo, sob pena de constituir um buraco negro incriminador capaz de atrair praticamente todo e qualquer comportamento humano antecedente à prática do verbo nuclear.

Com efeito, a Lei 13.260/16 criou um sistema binário de incriminação da preparação: os atos preparatórios distantes só podem ser punidos se definidos como crimes-obstáculo (verbi gratia, artigo 2º, §1º, II, artigo 3º, artigo 5º, §1º e artigo 6º), enquanto os atos preparatórios imediatamente anteriores ao núcleo do tipo penal de terrorismo são criminalizados a título de tentativa (artigo 5º, caput).

Visto isso, convém formular observações acerca da tentativa abandonada (arrependimento eficaz e desistência voluntária), aqui residindo também grande inovação da lei de antiterrorismo.

Segundo a lição de Franz von Liszt, existe uma ponte de ouro do Direito Penal, que faculta ao agente reingressar à seara da licitude e escapar do conatus. Abrange tanto a situação em que o agente abandona o seu dolo antes de esgotar os atos executórios (desistência voluntária) quanto aquela em que esgota os atos executórios, mas consegue impedir o resultado (arrependimento eficaz). Nesses casos, o agente não responde pela tentativa do crime almejado (operando-se a exclusão da tipicidade quanto a ele), mas somente pelos atos até então praticados. É dizer, responde por eventual crime de menor gravidade já consumado (falando-se nesse caso em tentativa qualificada) ou fica impune caso seus atos pretéritos praticados não configurem delito autônomo.

O detalhe fundamental é que se exige o início da execução, como prescreve o artigo 15 do Código Penal, segundo o qual “o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”. Essa mesma baliza inicial é a que costumeiramente habilitava o poder punitivo estatal, como se depreende da tentativa simples (artigo 14, II do CP) e da participação (artigo 31 do CP).

Pois bem. De modo totalmente inovador, o artigo 10 da Lei 13.260/16 passou a facultar a incidência da desistência voluntária e do arrependimento eficaz antes dos atos de execução, ainda durante a preparação:

Art. 10.  Mesmo antes de iniciada a execução do crime de terrorismo, na hipótese do art. 5o desta Lei, aplicam-se as disposições do art. 15 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

Trata-se de autêntica tentativa abandonada antecipada (desistência voluntária ou arrependimento eficaz antecipados). Aqui, na verdade, ocorre um efeito punitivo inverso do que aquele verificado na tentativa. Ora, quando da antecipação do marco inicial da tentativa, garantiu-se uma maior amplitude punitiva pelo conatus praticado (desde os atos preparatórios próximos ao verbo nuclear); já no caso da antecipação do marco inicial do arrependimento eficaz e da desistência voluntária, ficou habilitada a ponte de ouro a partir dos atos preparatórios, aumentando a incidência do benefício de política criminal e com isso reduzindo o espectro punitivo.

Destarte, vejamos os cenários de tentativa, desistência voluntária e arrependimento eficaz antecipados conforme as categorias de atos preparatórios praticados pelo agente.

Caso o agente pratique atos preparatórios imediatamente anteriores ao verbo nuclear do terrorismo, e não ocorrer a consumação por circunstâncias alheias à sua vontade, incide a tentativa antecipada (artigo 5º, caput – pena do crime consumado reduzida de 1/4 a 1/2). Já se o indivíduo abandonar voluntariamente a empreitada criminosa, ocorre a desistência voluntária ou arrependimento eficaz antecipados (artigo 10 – responde pelos atos praticados).

Imagine o exemplo: o agente monta arma de fogo de uso restrito com capacidade de cinco munições (sem potencial de causar destruição em massa)[10] para se tornar acionável por controle remoto, a fim de matar alguém em meio à multidão e causar terror social por discriminação religiosa. Se é impedido de acionar a arma responde pelo crime do artigo 2º, §1º, V da Lei 13.260/16 com pena diminuída (combinado com artigo 5º, caput). De outro lado, se desiste de acionar o dispositivo responde pelo delito do artigo 16 da Lei 10.826/03 (desistência voluntária antecipada), e se aciona a arma mas empurra o alvo, evitando seu atingimento, responde pelos artigos 15 e 16 da Lei 10.826/03[11] (arrependimento eficaz antecipado).

Por fim, caso o agente pratique atos preparatórios distantes, e os fatos não forem típicos, o sujeito fica livre da responsabilidade penal. Pense no exemplo: o sujeito aluga um apartamento pensando em, futuramente, criar um centro de treinamento de terroristas.

Já se esses atos preparatórios remotos forem incriminados por tipo penal específico, responderá pelo crime-obstáculo correspondente. Visualize o exemplo: o indivíduo mantém em sua casa arma de fogo de uso permitido com o fim de, futuramente, apoderar-se de uma aeronave para provocar terror generalizado em razão de preconceito de cor. Responde pelo crime do artigo 12 do Estatuto do Desarmamento.

Defeituosa ou não, uma coisa é certa: a Lei 13.260/16 distingue-se em meio à imensidão legislativa brasileira e merece especial atenção dos juristas.


[1] Superando a discussão sobre a tipificação ou não do terrorismo no art. 20 da Lei 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional), que criminaliza a vaga expressão “atos de terrorismo”, e trazendo um conceito legal de terrorismo mais completo do que aquele encontrado no art. 1º, §4º da Lei 10.744/03.

[2] Decreto 5.639/05.

[3] ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. t. I. Madrid: Civitas, 2006. p. 410.

[4] O dispositivo merece leitura conjunta com os arts. 109 e 144, §1º da Constituição Federal.

[5] Comando legal que não pode ignorar a vigência de um sistema processual penal acusatório.

[6] Como explica a doutrina, o terrorismo envolve a prática do terror e se volta contra número de vítimas indeterminado, mediante violência generalizada que acarreta enorme sentimento de insegurança na população e dificulta sua capacidade de reação (DOTTI, René Ariel. Terrorismo e devido processo legal. RCEJ, ano VI, Brasília, set. 2002. p. 27-30).

[7] SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798, abr. 2002.

[8] Como ocorre, por exemplo, nos crimes de associação criminosa (art. 288 do CP) e de tráfico de maquinário (art. 34 da Lei 11.343/06).

[9] Vale lembrar que a jurisprudência já vem empregando esse raciocínio, como por exemplo quando considera o uso de barra de ferro para ingresso em residência de terceiro, com "animus furandi", como início de execução (STJ, REsp 113.603, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 28/09/1998).

[10] Quaisquer dos objetos materiais elencados no artigo 2º, §1º, I, da lei de antiterrorismo, devem ser capazes de produzir destruição em massa. Se não assim, a posse de uma pedra (a qual é apta a causar dano) poderia ser enxergada como suficiente para fazer incidir o tipo penal em comento, que criminaliza a posse ou porte de outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa.

[11] Não se falando no princípio da consunção pelo fato de as condutas terem sido destacadas em contextos fáticos distintos.

Autores

  • é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar. Redes sociais: Facebook, Twitter, Periscope e Instagram

  • é delegado de polícia de Goiás, mestrando em Ciências Políticas pela UFG, professor titular da Escola Superior da Polícia Civil do Estado de Goiás, professor convidado do Ministério da Justiça (SENASP) e da rede LFG, professor da Especialização na PUC/GO, da FASAM e da FACNOPAR, professor universitário na UNIP/GO e UniAnhanguera/GO, e membro da Academia Goiana de Direito.

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