Tribuna da Defensoria

Conversão da ação individual em coletiva no novo CPC: um veto que não se sustenta

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19 de abril de 2016, 8h05

Passado, nesta segunda-feira (18/4), um mês da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, a comunidade jurídica ainda se encontra digerindo suas inovações, tentando encerrar um debate, cada dia mais inoportuno, quanto à sua real necessidade. Muito da hodierna legislação não saiu do papel, e o que se vem percebendo, na prática, não raro, é uma jurisprudência hiperdefensiva, consubstanciando verdadeiro negócio jurídico processual tácito e coletivo no sentido de simplesmente garantir uma ultra-atividade do código de 1973.

A presente reflexão, porém, vem na contramão da análise das mudanças: trataremos aqui justamente do que não mudou, embora deveria tê-lo feito. Falo da conversão da ação individual em ação coletiva, instituto sonhado por grande parte da doutrina, bem desenhado pelo legislador, mas vetado pelo Executivo. A inovação, de resto, se alinhava com a tendência do novo CPC, ao ampliar a importância da Defensoria Pública, notadamente em uma perspectiva molecular da tutela jurisdicional.

Sua morada era o artigo 333 do novel código, cujas literalidade e razões do veto podem ser conferidas aqui.

Antes de mais nada, não é difícil compreender a decepção de parcela da comunidade jurídica com o novo código, particularmente no tocante ao tratamento da tutela coletiva. Na verdade, a matéria, não obstante tenha ganhado inegável protagonismo, seja nos tribunais, seja entre os acadêmicos (um sinal bastante prático é a autonomia que conquistou no edital de diversos concursos públicos), passou quase que totalmente ao lado da Lei 13.105/15. Digo quase porque muito pontualmente o legislador tratou do tema, em especial quanto à interação entre ações individuais e ações coletivas, como é o caso do artigos 139, X e do ora comentado.

A não coincidência com o IRDR
Cumpre, inicialmente, fazer um breve parêntese. Não soa justificada a inquietude de muitos quanto à influência do advento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no processo coletivo. Para mim, muito humildemente, parece haver uma confusão quanto à sistemática da fixação de teses, a qual se fortaleceu imensamente (tanto pela criação do IRDR quanto pela observância da jurisprudência de maneira quase que compulsória — o artigo 927 é pedagógico, nesse ponto), e a tutela de direitos coletivos lato sensu.

Bastante didático, nessa quadra, foi Marcelo Abelha[1], que diferenciou as técnicas individuais de repercussão coletiva das técnicas coletivas de repercussão individual: enquanto as primeiras versam sobre situações coletivas, garantindo tratamento coletivo de direitos subjetivos, as segundas estão inseridas da dinâmica da solução de demandas repetitivas (caso antes dos recursos repetitivos no STJ e da repercussão geral no STF, e, agora, também do IRDR). Além disso, naquelas há o requisito da legitimidade adequada, a coisa julgada se dá secundum eventum litis in utilibus, e as demandas individuais, ao menos ex lege, não ficam suspensas; enquanto nestas os legitimados nem sempre seriam os mais aptos (a princípio, qualquer autor poderia ver sua ação afeta ao julgamento-amostra), o contraditório restaria prejudicado (tantos outros autores não poderiam participar na fixação da tese em abstrato, restando-lhes o posterior distinguishing) e o sobrestamento se dá por força da lei.

Fica clara, portanto, a não coincidência do processo coletivo com qualquer instituto de fixação de teses, os quais, de resto, possuem como objetivo precípuo a diminuição do número de processos, embora não dispensem o ajuizamento de uma nova demanda para que se aplique o precedente criado. Pode até vir a existir uma interseção entre os dois gêneros, bastando imaginar uma tese fixada tendo como base uma ação coletiva, mas tratar-se-á quase que de um acaso. O IRDR, sem sombra de dúvidas, não é uma verdadeira coletivização[2], e sim o julgamento por amostragem em segunda instância.

Diferenças em relação ao artigo 139, X
Outrossim, não se confunde o instituto vetado com a previsão do artigo 139, X do novo código. Segundo este último, ao se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, cabe ao juiz oficiar os legitimados ao ajuizamento da ação coletiva, especialmente a Defensoria Pública e o Ministério Público.

Foi feliz o legislador, nesse particular, por duas razões: primeiramente, por especificar a Defensoria Pública como destinatária do ofício em questão, ao lado do órgão ministerial, em igualdade de condições, sem condicionar a comunicação ao fato de o direito ser ou não de hipossuficientes ou necessitados.

E nem se cogite tratar-se de mero efeito redacional: não faria sentido exigir do magistrado, aquele que conhece bem as questões controvertidas da demanda, os direitos discutidos e seus supostos titulares, que oficiasse a Defensoria Pública em qualquer hipótese se não a reconhecesse como legitimada universal na tutela coletiva. O texto é didático: diferente dos “outros legitimados”, inexiste condicionante à comunicação à Defensoria — não há um “na medida do possível”. Será propriamente em todos os casos, cabendo apenas à instituição constitucional determinar, lançando mão de sua independência funcional, ser hipótese ou não de ajuizamento de demanda coletiva.

Em segundo lugar, acertou o legislador ao retirar a discricionariedade do juiz, pois a lei fala que lhe incumbe oficiar. E nem poderia ser de outro modo: pretender que o magistrado fizesse, desde já, qualquer juízo de conveniência é o mesmo que sepultar a inércia da jurisdição.

O referido instrumento, embora não precisasse estar expresso, seguramente traduz avanço na relação entre ação individual e ação coletiva, mas, sobretudo, entre Judiciário e Defensoria, que ganha mais protagonismo, como ator estratégico na desenfreada perseguição da economia processual macroscópica. Isso porque o dispositivo fala em “demandas repetitivas”. Nesse ponto, porém, não andou bem o código, porque estimula a confusão mencionada acima entre ação coletiva e fixação de tese coletiva, e limita suas hipóteses de aplicação.

Requisitos e hipóteses de cabimento
O vetado artigo 333 estabelecia dois requisitos, em seu caput. A primeira exigência era a exigência da relevância social, uma antiga conhecida, não gerando complexidades inéditas.

Por outro lado, o segundo pressuposto dizia respeito à dificuldade de formação do litisconsórcio. A motivação parece ter sido eminentemente prática, buscando a lei que um empecilho factual não impedisse a obtenção do bem da vida mediatamente desejado. A previsão é símile a das class actions, onde a impraticável incorporação de todos os membros da numerosa classe à relação jurídico-processual justifica que um deles a represente. Não falta, contudo, quem critique a importação, entendendo presumível o obstáculo, haja vista a pluralidade de interessados, por se tratar de direitos metaindividuais[3].

Dentre as hipóteses de cabimento da conversão, seria possível interpretar que o inciso I do artigo 333 significaria que o direito buscado na ação singular não seria propriamente difuso ou coletivo, porque esses possuem essencialmente, e sobretudo de acordo com o conceito do diploma consumerista que o próprio legislador adotou, titularidade supraindividual.

De lege ferenda, o que o dispositivo vetado intentava era ampliar a efetividade da tutela, que, embora buscada de maneira individual, poderia beneficiar outros sujeitos, externos ao processo. Pensemos, por exemplo, em um cadeirante que busque o efetivo acesso à universidade ou à escola, pleiteando a construção de uma rampa de acesso. Não resta dúvida de que é titular desse direito, considerado de maneira isolada, como também não se pode questionar que a faceta difusa do mesmo interesse. A conversão, in casu, garantiria amplitude maior à solução da lide, beneficiando sujeitos exoprocessuais.

O segundo cenário autorizador é bastante interessante. Exigia-se que o pedido da primeira ação objetivasse solucionar conflito relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral que merecesse solução uniforme, seja por força da lei ou pela natureza do bem jurídico. Num primeiro olhar, lembrei-me aqui do conceito de litisconsórcio unitário, o qual perpassa justamente por uma exigência legal ou real de idêntica resposta jurisdicional a todos os sujeitos — conceito, aliás, que o novo CPC corrigiu (artigo 116). Indo adiante, todavia, há que se perceber o plus desenhado ao cabo do inciso II, que termina falando em assegurar tratamento isonômico para todos os membros do grupo.

Na verdade, uma correta compreensão das hipóteses de cabimento acima perpassa, necessariamente, por verificar que, entre as categorias “direito individual” e “direito coletivo” existem outras, intermediárias, cuja classificação nem sempre se dá prima facie. É nesse intervalo que estão as ações individuais com efeitos coletivos e as ações pseudoindividuais.

As ações individuais com efeitos coletivos são aquelas em que, embora a eficácia do decisum seja, tecnicamente, inter partes, no plano fático ela transborda esse limite. É o caso do cadeirante, que buscamos posicionar no inciso I, bem como o de um morador de uma rua cujo acesso foi fechado por uma guarita colocada por um vizinho, porque a retirada do obstáculo beneficiará todos os demais habitantes.

Por outro lado, os interesses pseudoindividuais dizem respeito a casos nos quais o autor aparentemente tem direito individual, mas o critério da isonomia leva à necessidade do tratamento coletivo, justamente o que buscou o inciso II. Como exemplo, Ada Grinover traz o caso de um sujeito que busca, de maneira isolada, o reconhecimento de nulidade de determinada tarifa telefônica, que, seguramente, também deveria ser írrita para os demais consumidores.

Legitimidade (da Defensoria)
Deve-se ter em mente que o instituto da conversão não é uma invenção do legislador pátrio, mas uma importação do Direito norte-americano, onde uma demanda singular pode ser certificada, pelo magistrado, como ação coletiva. Tal proceder, se alhures dá-se ex officio, aqui, na forma prevista no artigo 333, somente autorizaria o magistrado a converter em coletiva a ação individual. A certificação, a rigor, não passou pela alfândega: no sistema pátrio, far-se-ia necessário o requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública (eventualmente, de outro legitimado, segundo o parágrafo 1o). Mais uma vez, o legislador coloca as duas instituições lado a lado, sem qualquer condicionantes, reconhecendo a importância de ambas na experiência da tutela coletiva.

Apenas pecou quanto ao condicionar a conversão à oitiva prévia do MP, quando não for o requerente. Caberia colocar aí também a Defensoria, permitindo uma revisão do entendimento ministerial e uma mais perfeita decisão do juízo.

O infeliz veto
Não obstante o instrumento tenha significado real avanço no processo coletivo brasileiro, sendo corretamente construído pelo legislador, acabou por representar o mais duro veto à Lei 13.105/15. E as razões do veto são o melhor argumento contra ele próprio.

Em primeiro lugar, diz-se que “da forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão (…) de maneira pouco criteriosa”. Uma simples frase que ofende três instituições fundamentais à democracia: o Legislativo, (que não andou mal, anteviu vários problemas e foi minucioso no tratamento); os legitimados, notadamente a Defensoria (que dispõe de um “verdadeiro termômetro de litigância”, nas palavras de Franklyn Roger e Diogo Esteves[4]); e o Judiciário, a quem caberia, tecnicamente, frear demandas temerárias, e não ao Executivo, em um juízo abstrato prévio.

Segue a motivação com uma suposta preocupação com o interesse das partes (da ação originária), que poderia ser contrariado com a conversão. Nesse ponto, tivemos a oportunidade de ver o ilustre José Rogério Cruz e Tucci sustentar, aqui mesmo na ConJur[5], o acerto do veto, porque a conversão ofenderia o acesso à Justiça do autor individual, afastando o nemo iudex sine actore, devendo, segundo o professor, a celeridade servir às partes, e não ao Estado. Argumentou, ainda, que o julgamento-piloto, experiência similar ao artigo 333 no âmbito da Corte Européia dos Direitos do Homem, acaba por prejudicar os interesses do demandante originário, em prol de decisões genéricas.

Com todas as vênias, ouso discordar. Inicialmente, porque o instrumento contava com previsões aptas a resguardar os interesses do autor originário, afastando sua responsabilidade pelo pagamento de quaisquer despesas processuais e garantindo-lhe o papel de litisconsorte unitário do legitimado para condução do processo coletivo (parágrafos 6o e 7o), para além de poder agravar por instrumento da decisão de conversão (artigo 1.015, inciso XII, igualmente vetado). Depois, porque a perspectiva individualista do processo civil deve dar vez a um coletivismo, sempre respeitando as garantias processuais, por óbvio. Essas, porém, acabam mitigadas em certas situações, sem que, com isso, se incorra em qualquer absurdo inconstitucional.

Em outras palavras, chegou a hora de prestigiar mais as florestas que as árvores, o que não quer dizer que se defenda o desmatamento. Priorizar a efetividade a um egoístico acesso à Justiça (sob a perspectiva de continuar no processo, e não somente inaugurar a relação processual) não me soa tão negativo, até porque há que se questionar: não seria essa a ampliação do rol de legitimados à ação coletiva, com uma legitimidade indireta do autor individual (leia-se: segunda onda do acesso à Justiça)[6]?

Terceiro aspecto do veto condenável é o fato de o código supostamente já conter mecanismos para tratar de demandas repetitivas. Quanto a isso, não se discute, só que as técnicas, como já visto, não se confundem. Antes, deveriam somar e conviver.

Curioso é o comentário final do veto: em seu sentido, posicionou-se a OAB. Será que por ser muito mais interessante, notadamente do ponto de vista financeiro, o ajuizamento de inúmeras ações individuais do que apenas uma coletiva? Ada Grinover propõe uma solução de modo a conciliar os interesses: a condenação ao pagamento de honorários do advogado da ação convertida.

Não querendo mudar o imutável, entendo ser possível dar alguma sobrevida ao instituto da conversão. Assim, ao lançar mão do artigo 139, X, deve o magistrado fazer uma interpretação à luz do artigo 333 e seus incisos, para abranger aqueles direitos intermediários de que se falou, além da mera previsão exemplificativa de existirem demandas repetitivas. De todo modo, há que se ressaltar a esperança depositada no Projeto de Lei do Controle Judicial de Políticas Públicas, que contempla o instrumento da certificação, dando legitimidade ao juiz de ofício para a conversão.

À Defensoria Pública, que recebeu um golpe com um veto tão inoportuno (ao menos, um golpe não nominal, dessa vez), resta saber aproveitar as novas ferramentas e prerrogativas garantidas pela codificação de 2015. Em especial, ao receber o ofício do artigo 139, X, cabendo-lhe o mais imediato possível ajuizamento de ações, antes de qualquer outro legitimado notificado. Oxalá, os próximos meses sob a égide do novo código sejam mais encorajadores que este primeiro, permitindo que as tão guerreadas concessões legais à nossa instituição no sistema coletivo percam qualquer caráter programático — como até então se tem mostrado a legitimidade para suscitar o IRDR.


[1] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Técnicas individuais de repercussão coletiva X técnicas coletivas de repercussão individual. Por que estão extinguindo a ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos? In: DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes (coords.). Repercussões do Novo CPC – Vol. 8 – Processo Coletivo. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 623 – 639.
[2] No mesmo sentido da conclusão, GRINOVER, Ada Pellegrini. A coletivização de ações individuais após o veto. In: CIANCI, Mirna; et. al. (coords.) Novo Código de Processo Civil – Impactos na Legislação Extravagante e Interdisciplinar, Volume 1 – São Paulo: Saraiva, 2016, p.15-23.
[3] COSTA, Suzana Henriques da. Morte e Vida da Conversão da Ação Individual em Coletiva. In O Novo Código de Processo Civil – Questões controvertidas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 421-438.
[4] ALVES SILVA, Franklyn Roger e ESTEVES, Diogo do Couto. A Nova Disciplina da Leitimação Extraordinária da Defensoria Pública no Novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JUNIOR, Fredie; SOUZA, José Augusto Garcia de (coords.) Repercussões do Novo CPC – Vol. 5 – Defensoria Pública.  Salvador: Juspodivm, 2015, p. 313-344.
[5] CRUZ E TUCCI, José Rogério. Um Veto providencial ao novo Código de Processo Civil! Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-mar-17/paradoxo-corte-veto-providencial-cpc

 

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