Opinião

Mérito de denúncia contra Temer cabe a comissão especial, e não a Cunha

Autor

  • Marina Toth

    é advogada criminalista mestre em Direito pela Universidade de Michigan (EUA) pós-graduada em Compliance e em Teoria Geral da Infração pela Universidade de Coimbra (Portugal) e conselheira da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP.

19 de abril de 2016, 16h36

De acordo com o autor do pedido de impeachment protocolado dia 30 de março de 2016 contra o vice-presidente em exercício, o fato de Michel Temer ter assinado quatro decretos de crédito suplementar sem autorização do congresso, mesma espécie de decreto que consta como um dos três fundamentos do pedido de impeachment em andamento contra a presidente Dilma Rousseff, significa que também ele, o vice, teria atentado contra a lei orçamentária, sendo devido a abertura do mesmo procedimento em seu desfavor.

O presidente da Câmara, ao analisar o pedido de impeachment de Temer, apesar de declarar sua validade sob o aspecto formal, entendeu que, em razão das datas dos decretos, todos anteriores à revisão orçamentária, eles não teriam potencialidade para descumpri-la, considerando o pedido insubsistente e determinando seu arquivamento.

Em resposta, o autor do pedido ajuizou perante o STF o Mandado de Segurança 34.087, distribuído ao ministro Marco Aurélio. Entendeu o ministro que Cunha extrapolou a análise meramente formal da peça e adentrou indevidamente no mérito da questão do pedido de impeachment, usurpando competência constitucional exclusiva da comissão especial. Determinou que Cunha receba imediatamente a denúncia com a formação de comissão especial, nos termos dos artigos 19 e 20 da Lei 1.079/1950 (Lei do Impeachment).

Para Cunha, conforme manifestado em entrevistas, o fato de a petição de impeachment estar formalmente válida não é suficiente para determinar o seu recebimento, cabendo a ele, sozinho, fazer, além da análise formal, análise dos documentos e das acusações lá contidas, tendo competência para arquivar a peça de acordo com sua convicção. Completa dizendo que, se a posição do ministro Marco Aurélio se consolidar, a Câmara será paralisada por uma enxurrada de pedidos de impeachment formalmente válidos, mas com carência de elementos meritórios que os sustentem, e que ainda assim deverão ser recebidos e processados.

A decisão do ministro do STF iniciou rusga institucional entre os dois poderes, fomentando discussão acerca dos limites e deveres constitucionalmente impostos a cada um deles, cuidando do delicado equilíbrio institucional existente e colocando-nos diante de questões juridicamente sensíveis e politicamente fundamentais quando se trata de narrativa à luz do cenário binário de heróis e anti-heróis que a operação “lava jato” vem impondo.

Por um lado, nos parece absolutamente correto o entendimento de Marco Aurélio ao indicar que Cunha não pode avaliar sozinho o mérito do pedido de impeachment, competência exclusiva da comissão especial. Também nos parece correto o entendimento do presidente da Câmara ao criticar a posição adotada pelo ministro com potencial de transformar a Câmara em mera processadora de pedidos de impeachment.

A verdadeira questão que se coloca e não foi levantada nem pelo ministro do STF nem pelo presidente da Câmara está relacionada a aquilo que nós, advogados, chamamos de “justa causa” (análise preliminar que não alcança o mérito acerca da existência de indícios mínimos de materialidade e autoria).

A resposta para o impasse encontra-se na própria Lei do Impeachment (artigo 16) e no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (artigo 218). Ambos esclarecem que a denúncia (pedido de impeachment) “deve ser acompanhada dos documentos que a comprovem”. Portanto, a própria lei exige do presidente da Câmara uma análise preliminar de documentos, verificando a existência da justa causa (ainda que precária), concedendo-lhe, nesse ponto, certa discricionariedade, pois uma denúncia que descreve perfeitamente a prática de crime, mas que venha desacompanhada de indícios mínimos de materialidade e autoria, não poderia prosperar.

Portanto, enquanto é vedada ao presidente da Câmara a análise de mérito como ele indevidamente pleiteia, lhe é permitido mais do que mera análise formal como pretende o ministro Marco Aurélio, devendo Cunha verificar a presença de justa causa, compulsar os autos e determinar se neles estão ou não acostados os documentos mencionados na denúncia, e que eventualmente comprovariam as acusações.

Estando a peça formalmente válida e presente a justa causa, presentes, portanto, os elementos mínimos vinculantes, não tem o presidente da Câmara autorização regimental, legal ou constitucional para arquivar a denúncia, impondo-se o seu recebimento para que o mérito seja então analisado pela comissão especial. E não foi por outra razão que meses atrás argumentamos a obrigatoriedade do recebimento do pedido de impeachment protocolado contra a presidente Dilma Rousseff.

O argumento usado por Cunha para a rejeição do pedido de impeachment de Temer demonstra que ele verificou a existência de justa causa, porém foi além e analisou o mérito do pedido, o que lhe era vedado.

Errou Cunha ao fazer essa análise individualmente, usurpando competência constitucional da comissão especial, colegiado que deveria analisar as questões como as datas, assinaturas e alterações de metas orçamentárias. E, convenhamos, tais decretos podem inclusive ter descumprido a antiga meta, o que não os tornaria menos criminosos em razão de alterações posteriores, evidenciando a necessária análise meritória que não cabia à Cunha fazer sozinho.

Apesar dos cada vez mais acalorados posicionamentos políticos, é evidente que seria desastroso se a Constituição tivesse concedido a um único indivíduo poder tão grande que ele pudesse, sozinho, decidir os rumos da nação, com arbitrariedade absoluta acerca do recebimento ou não de pedidos de impeachment. Não é isso o que diz a Constituição, não é essa sua intenção nem é essa a essência da separação dos poderes.

A despeito da indiscutível natureza jurídico-política do impeachment, com predominância da natureza política, não há de se negar que existem imposições jurídicas a serem cumpridas, e é nesse espaço de discussão que se encontra a controversa liminar concedida por Marco Aurélio, que ainda poderá ser confirmada ou revertida pelo pleno do STF nos próximos dias. Cunha já apresentou recurso contra a liminar, alegando indevida interferência do Poder Judiciário no Legislativo. Com a apresentação de informações pela Câmara na quinta-feira (14/4), tudo indica que nos próximos dias os demais ministros se manifestarão, ratificando ou não a determinação de recebimento da denúncia contra Temer.

E sendo o impeachment um processo político, como bem vimos neste último domingo (17/4), os resultados, após cumpridas as formalidades legais, estão nas mãos da Câmara, do Senado e das ruas, fora do alcance do STF e de seus ministros, como deve ser em respeito às instituições e ao Estado Democrático de Direito em que vivemos.

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  • Brave

    é advogada criminalista sócia do escritório Toth Advogados Associados, mestre pela University of Michigan Law School, pós-graduada em US Law and Methodologies pela New York University/SCPS e pós-graduada em Teoria Geral da Infração pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. É também membro do IBCCRIM e associada ao IDDD.

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