Opinião

Diálogo sobre a (in)coerência e a justa causa no impeachment‏

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12 de abril de 2016, 16h41

São inquietantes os debates jurídicos acerca do processo de impeachment no corrente ano, tendo em vista as intensas movimentações políticas nacionais. É imprescindível não se confundir, no entanto, a perspectiva jurídica daquele instituto com suas motivações e com suas implicações políticas.

Os juristas Marcelo Cattoni, Bernardo Fernandes, Alexandre Bahia e Diogo Bacha publicaram importante e aprofundado texto jurídico sobre a questão da análise da justa causa pelo presidente da Câmara de Deputados no processo de impeachment. Trata-se de uma séria abordagem de assunto específico que demonstra acuidade jurídica no tema proposto, sem misturar os corolários políticos que dele possam advir.

Defenderam, em síntese, que a liminar do ministro Marco Aurélio no Mandado de Segurança 34.087 violou a integridade, a coerência e a separação de poderes. O objetivo do presente texto é estabelecer um diálogo no sentido de que a referida decisão observou a integridade, a coerência e a harmonia entre os poderes. Em suma, trata-se de uma abordagem na perspectiva de que não houve ativismo judicial na espécie.

Quanto à integridade, o princípio democrático deve ser reforçado em um processo de impeachment, tendo em vista a drástica medida que acaba por infirmar a soberania popular exercitada pelo voto, por exemplo, nos casos de agentes políticos do Executivo. Cidadania e pluralismo político são fundamentos de nossa República constituída em Estado Democrático de Direito — artigo 1º, caput  e incisos II e V, da Constituição —, sendo que todo poder emana do povo, que o exerce indiretamente por meio de representantes eleitos — parágrafo único daquele dispositivo constitucional.

Nesse quadro, deve preponderar a regra do colegiado (in dubio pro collegialis) nas decisões acerca do processo de impeachment, como uma espécie de reforço hermenêutico que prestigie a soberania do voto. É necessário, neste passo, diferenciar o processo penal clássico do processo de impeachment. Ainda que este último se socorra da normatividade daquele, há evidentes especificidades que os distinguem, como ficou claro na questão antes trabalhada acerca do regime democrático e da soberania do voto.

Excepcionar à decisão monocrática do eventual presidente da Casa Legislativa competente para o processo de impeachment deve ser normatização expressa e clara, a exigir interpretação restritiva, o que não está, até aqui, explicitado de forma substancial. O artigo 395 do Código de Processo Penal não normatiza o recebimento de denúncia a ser submetida a um típico julgamento colegiado. Não se ignora o tribunal do júri, mas os casos de impeachment envolvem um processo repleto de nuances que lhe dão autonomia institucional, tanto que se exige um parecer elaborado por comissão especial da Câmara dos Deputados, quando regulados pelo artigo 20 da Lei 1.079/50.

Nesse quadro de complexidade normativa, deixar a análise, mesmo superficial, da (in)existência de justa causa para o impeachment ao presidente da casa legislativa competente pode ser temerário, independentemente de quem seja o/a presidente em questão. Afinal, o que seria isto — a análise superficial? É muito tênue a linha distintiva do que seria efetivamente uma análise superficial da justa causa e, de outro prisma, uma invasão no exame meritório propriamente dito. Denunciam essa dificuldade as intensas divergências doutrinárias processuais penais sobre as características e sobre os limites da justa causa prevista no inciso III do artigo 395 do Código de Processo Penal, com a redação da Lei 11.719/2008.

Até porque o exame da (in)existência de justa causa pelo Plenário da Câmara dos Deputados, em eventual recurso regimental interposto contra a decisão do presidente daquela casa no ato de recebimento ou não da denúncia, corre(ria) o risco de tornar prescindível superveniente parecer da comissão especial, ao menos no intensificado plano simbólico do processo de impeachment. Tanto é assim que a Lei 1.079/1950, no caput do seu artigo 20, dispõe que a comissão especial poderá proceder a diligências no intuito de esclarecimento da denúncia. Essas diligências tendem a ser desnecessárias nos casos de nítida ausência de justa causa — aqui admitidos para fins de problematização.

Em suma, as construções doutrinárias sobre o processo de impeachment devem sempre tentar resguardar as diferenças deste com o processo penal clássico. Eis aí a exigência de vigilância epistemológica e de um constante fator de filtragem hermenêutica para evitar importações inadequadas. E isso é trabalhado pela Crítica Hermenêutica do Direito, de Lenio Streck, por exemplo, nas importações das diversas teorias jurídicas alienígenas, tais como as teorias da argumentação jurídica, as estruturações argumentativas em torno da ponderação de valores, de interesses, de direitos, e assim por diante.

A propósito da (in)coerência na decisão liminar proferida pelo ministro Marco Aurélio no Mandado de Segurança 34.087, há que se ter um cuidado no trato da jurisprudência, o que envolve demasiada complexidade e aprofundamento em face do caráter histórico-dinâmico da atuação jurisdicional. Esse cuidado adquire reforçada exigência no processo de impeachment, pela sua óbvia eficácia nos rumos da República. Com efeito, o ministro Gilmar Mendes concedeu entrevista dizendo aos jornalistas: "É tudo novo pra mim. Mas o ministro Marco Aurélio sempre está nos ensinando".

Embora esta fala do ministro Gilmar Mendes tenha sido dirigida mais especialmente à discussão acerca da (im)possibilidade de impeachment quanto ao vice-presidente — o que foge ao objeto deste texto —, ela é importante no plano simbólico inerente ao debate em torno da (in)coerência jurisprudencial no tocante à competência do presidente da Câmara dos Deputados para o recebimento da denúncia e para o exame da justa causa no processo de impeachment. Ainda que se admita a possibilidade de exame superficial, o requisito da justa causa para o recebimento vai além da regularidade meramente formal da denúncia. E, neste específico ponto, há concordância com o artigo doutrinário de Marcelo Cattoni, Bernardo Fernandes, Alexandre Bahia e Diogo Bacha.

O diálogo fica tensionado, no entanto, quando dizem que o "ato de recebimento da denúncia de crime de responsabilidade não é meramente burocrático, devendo sim rejeitá-la quando a mesma for despida de justa causa", no substancioso artigo doutrinário aqui dialogado. Para os estimados juristas nominados ao fim do parágrafo anterior, "a análise da presença dos requisitos de uma denúncia não implica apenas a sua regularidade formal ou não, mas, consoante prescreve o artigo 395, III do CPP, a existência da justa causa".

Ocorre que não foi o ministro Marco Aurélio quem, no dia 5 de abril do corrente ano, quebrou a coerência jurisprudencial — aqui admitida para fins de debate doutrinário. Antes disso, em 3 de dezembro de 2015, o ministro Gilmar Mendes já havia também proferido decisão liminar no Mandado de Segurança 33.921, o qual fora impetrado em face da decisão de recebimento da denúncia contra a atual presidente da República.

Ao tratar da atuação do presidente em exercício da Câmara dos Deputados, o ministro Gilmar Mendes asseverou tratar-se "de análise acerca do cumprimento dos requisitos formais de prosseguimento da denúncia". Mais enfaticamente, a decisão liminar do ministro Gilmar Mendes consolida a interpretação de que, ao observar "detidamente o ato apontado como coator, configura-se claro que houve apenas análise formal pelo Chefe da Câmara dos Deputados, devidamente fundamentada, no exercício do seu mister constitucional". Antes de se vislumbrar a (in)aplicabilidade do artigo 395, III, do Código de Processo Penal, deve-se atentar para o "mister constitucional" do eventual presidente da casa legislativa competente para o processo de impeachment.

Portanto, se efetivamente havia tradição jurisprudencial de abertura ao juízo superficial de mérito para o recebimento da denúncia no processo de impeachment, configurado no exame de justa causa pelo(a) presidente da casa legislativa competente, esta coerência foi quebrada pelo ministro Gilmar Mendes na decisão liminar proferida no Mandado de Segurança 33.921, em 3 de dezembro de 2015. E, como já aqui explicitado, essa incoerência é uma resposta constitucionalmente adequada. Mais um ponto para Ronald Dworkin. A preservação da integridade do Direito exige, muitas vezes, a construção de respostas imediatamente incoerentes com o passado jurídico, mas mediatamente coerentes com a cadeia argumentativa vindoura. Eis a metáfora do romance em cadeia (chain novel).

E salta aos olhos nesta questão a complexidade do e no Direito, é dizer, os compromissos deontológicos dele provenientes. Note-se que a decisão liminar do ministro Gilmar Mendes chancelou o recebimento da denúncia no processo de impeachment da atual presidente da República. Todavia, na sua ratio decidendi, no seu núcleo duro, encontra-se o estopim da coerência jurisprudencial da decisão liminar proferida pelo ministro Marco Aurélio que derrubou a decisão de não-recebimento da denúncia no processo de impeachment contra o vice-presidente da República. Conquanto essa perspectiva não tenha sido explicitada neste último julgado, eis aí o papel da doutrina, nem de vassalagem intelectual, nem de iluminismo solipsista, mas de vigilância e de constrangimentos epistemológicos.

Resta, finalmente, debater a questão da separação de poderes. É conhecida a ocupação da Crítica Hermenêutica do Direito no estabelecimento de uma criteriologia para o trato da judicialização da política e do ativismo judicial. Nem toda atuação jurisprudencial que interfira na atuação parlamentar configura invasão de competência. Há, sem sombra de dúvidas, uma intensa atuação do Supremo Tribunal Federal que, por vezes indevidamente, acarreta intervenções no Legislativo. E a Crítica Hermenêutica do Direito não se isenta da responsabilidade de desconstruir as decisões com tal característica.

No entanto, no caso específico da decisão liminar do ministro Marco Aurélio no Mandado de Segurança 34.087, não houve ativismo judicial, mas judicialização da política, no sentido trabalhado pela Crítica Hermenêutica do Direito, ou seja, sem afronta aos limites institucionais de atuação do Judiciário. A judicialização da política é contingencial e decorre do caráter rígido da Constituição brasileira de 1988, de seu plus transformativo, de seu extenso rol de direitos fundamentais. E a referida leitura hermenêutica ocorre independentemente da discordância com as declarações do ministro Marco Aurélio de que "decide conforme sua ciência e sua consciência" (ver, nesse sentido, O que é isto decido conforme minha consciência? do jurista Lenio Luiz Streck).

Além de observar a integridade do Direito e de ser coerente com a cadeia jurisprudencial inaugurada — pelo menos — desde a decisão liminar proferida em 3 de dezembro de 2015 pelo ministro Gilmar Mendes no Mandado de Segurança 33.921, a decisão liminar proferida em 5 de abril do corrente ano pelo ministro Marco Aurélio no Mandado de Segurança 34.087 deixa incólume a independência e a harmonia entre os poderes asseguradas no artigo 2º da Constituição brasileira de 1988. Mais que uma possibilidade, reconhecer isso decorre da exigência de respostas corretas em Direito, ou seja, de respostas constitucionalmente adequadas.

Sem surpresas, a cadeia jurisprudencial aqui explicitada dará previsibilidade ao(s) processo(s) de impeachment que estão ou que venham a ocorrer em nossa República democrática.

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