Opinião

A inflação das delações premiadas no Brasil

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7 de abril de 2016, 12h31

[Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta quinta-feira (7/4)]

Passados mais de dois anos da entrada em vigor da Lei 12.850/13, conhecida como Lei das Organizações Criminosas, e da deflagração da operação "lava jato", que notabilizou o instituto da colaboração premiada, talvez a hora seja oportuna para uma reflexão sobre como ele tem sido aplicado no país.

A delação premiada — ou colaboração premiada, como tem sido eufemisticamente referida — pressupõe que o agente que venha a se tornar delator tenha tido, de alguma forma, participação no evento delituoso.

Isso é da essência do próprio instituto, tanto é assim que a lei dispõe que o juiz poderá conceder os benefícios àquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação, identificando os demais coautores e partícipes da organização criminosa. Prevê, ainda, que o Ministério Público poderá deixar de oferecer a denúncia se o colaborador não for o líder da organização criminosa ou for o primeiro a prestar efetiva colaboração.

Grosso modo, coautor é aquele que, ao lado do autor, concorre para a realização da conduta típica, da prática delituosa, ao passo que partícipe é quem de modo eficaz coopera para o ilícito.

Parece claro, assim, que o escopo do instituto da delação é alcançar, na escala delituosa, aqueles com maior protagonismo dentro da organização. Não teria mesmo cabimento que quem mais se beneficiou com os proventos do delito delate alguém de hierarquia ínfima na quadrilha e que tenha tido menor vantagem no resultado da ação.

Na sinergia da delação parece que a trajetória deva ser, em regra, ascendente. Não faz sentido o presidente da empresa delatar sua secretária para se eximir de pena ou mesmo minorá-la. Sob a perspectiva dos "crimes de colarinho branco", o proveito econômico resultante da prática delituosa seria dado determinante para se aferir a quem mais interessaria o cometimento do ilícito: cui prodest? (quem se beneficia?).

Apesar de meridianas tais premissas, deparamos empresários e executivos (mais empregados que controladores) das principais empreiteiras do país celebrarem acordos no Judiciário, nos quais delatam, fundamentalmente, crimes eleitorais, em tese perpetrados por agentes políticos, e outras infrações penais das quais eles próprios teriam participado, em troca de prisão domiciliar, regime aberto etc.

As multas infligidas nos acordos de leniência (celebrados com as empresas) seriam irrisórias considerando-se o seu patrimônio — e de seus acionistas —, constituído ao longo de anos de contratações com o poder público.

Isso nos leva pensar sobre como a delação premiada vem sendo operacionalizada no Brasil. Justamente aqueles que mais se beneficiaram economicamente do que seria o maior escândalo de corrupção no país são os maiores contemplados.

Quanto mais notório politicamente o delatado, mais substanciais os prêmios recebidos pelo delator. Isso sem falar em possíveis delações inventadas, implicando celebridades políticas para servir de moeda de troca, e que podem arrastar à desgraça pessoas inocentes.

Não bastassem os questionamentos morais e jurídicos suscitados no plano ontológico, as consequências práticas produzidas são, por igual, altamente questionáveis.

A despeito de não ser a delação premiada (que traz o inseparável estigma da traição) um valor a ser cultivado socialmente e tampouco a ser transmitido às futuras gerações, resta indagar se a espécie de justiça que ela engendra é aquela que queremos e necessitamos. Será?

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