Revolução e normalidade

Influência para o Brasil, Constituição portuguesa chega aos 40 menos ideológica

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7 de abril de 2016, 6h58

A busca pelo socialismo, uma sociedade sem classes e uma visão estatista da economia como princípios do Estado. Não se trata de um projeto da União Soviética ou de Cuba, mas sim de Portugal, no ano de 1976. A Revolução dos Cravos acabou com uma ditadura de 41 anos e o intenso momento de paixões políticas culminou no dia 2 de abril daquele ano em uma Constituição que exigia o fim do latifúndio e implementação da reforma agrária.

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Dez meses depois do início dos seus trabalhos, a Assembleia Constituinte aprovou a Constituição de 1976.  Reprodução

Quarenta anos  e sete revisões constitucionais depois, os fazendeiros e capitalistas portugueses estão mais calmos. Naquele momento, os socialistas lideraram o fim do governo de Marcello Caetano, herdeiro de António de Oliveira Salazar, e assim obtiveram o capital político para aprovar o texto revolucionário. Agora, o texto já não fala mais em busca pelo socialismo e acolheu a ideia de uma economia de mercado, mas ainda é notório como um marco de direitos.

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Um dos responsáveis pela Constituição, Jorge Miranda vê texto como ferramenta pronta para lidar com novas questões.Reprodução

“Eram aspectos conjunturais do momento em que a Constituição foi feita, no meio de uma revolução. Mas a medida que o tempo foi passando e a situação foi se normalizando, a democracia foi se institucionalizando, essa práticas foram suprimidas para garantir plenamente o pluralismo político e a alternância dos partidos no poder. Sem o pluralismo não há democracia”, ressalta o professor português Jorge Miranda, um dos juristas que elaborou a Constituição de 1974.

Para o professor português Fausto Quadros, o texto constitucional ainda tem alguns pontos para evoluir. "A Constituição deve incluir uma mais clara consagração da economia social de mercado como modelo econômico e social, tal como os Tratados da União Europeia (de que Portugal faz parte) fazem desde 2009. Deve também incluir um limite para o défice estrutural, tal como o impõe  o Tratado Orçamental Europeu", disse o jurista, também em entrevista à Conjur

Do socialismo ao liberalismo
O enorme peso ideológico do texto constitucional foi consideravelmente amenizado na revisão de 1982. Manteve o controle do Estado na economia e as metas de nacionalização e reforma agrária, porém já dando mais espaço para a iniciativa privada e reconhecendo a economia mista.  

Outro ponto importante de 1982 foi a extinção do Conselho da Revolução e a criação do Conselho de Estado (que aconselha o presidente) e do Tribunal Constitucional, que avalia se as leis criadas respeitam a Constituição.

Em 1989 vieram as últimas grandes mudanças. A Constituição acolhe uma visão liberal na área da economia e passa a permitir a reprivatização de empresas. Elimina a busca pela reforma agrária e passa a falar em eliminação do latifúndio. Por outro lado, determina que todo cidadão deve ter acesso a um serviço nacional de saúde gratuito.

As outras revisões foram no sentido de adaptar o texto constitucional para uma nova realidade: a integração de Portugal à União Europeia. Dentro disso está a possibilidade de outra entidade que não o Banco de Portugal passe a emitir a moeda do país, permitir que os emigrantes votem e a ratifica a jurisdição de tribunais internacionais.  

Calor do processo
O jurista brasileiro Otavio Luiz Rodrigues Junior, colunista da ConJur, lembra que as últimas revisões constitucionais em Portugal eliminaram diversos pontos que, após o calor do processo revolucionário de 1974, tornaram-se obsoletos.

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Otavio Luiz Rodrigues Junior lembra que muitos trechos originais do texto ficaram obsoletos.Jornal Arcadas

“Essas aparentes desatualizações, no entanto, terminaram por se inserir na clivagem atual entre redução das garantias do Estado social e o aumento da competitividade europeia, o que contaminou a discussão com elementos que ultrapassam a mera leitura sobre a conveniência de se manter ou se retirar determinados institutos jurídicos do texto constitucional português”, conclui.

Mesmo reconhecendo que foram muito bem-vindas as mudanças que tornaram a Constituição mais plural, Jorge Miranda deixa claro que sua posição política não mudou e defende o texto quanto aos desafios contemporâneos.

“A Constituição defende as garantias dos cidadãos em todas as esferas da vida e também em novas realidades, como a questão do meio-ambiente. O grande problema do mundo é o capitalismo financeiro transnacional, mas a Constituição tem resistido. Portanto, minha visão, apesar de tudo, é bastante otimista. Estou convencido que essa crise que a Europa atravessa não vai ter outra solução que não seja mais democracia”, disse o jurista à ConJur.

Carlos Humberto/SCO/STF
O ministro Gilmar Mendes destaca a influência da doutrina portuguesa no processo do Direito brasileiro.

Influência em 1988
Quase 15 anos mais velha, a Constituição portuguesa é apontada como uma das influências para o texto brasileiro de 1988. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, vê essa relação “notada e manifesta” quanto aos direitos fundamentais. “E também no que diz respeito ao modelo de controle de constitucionalidade, especialmente no que concerne às ações diretas. A ação direta por omissão veio do modelo português”, aponta o ministro.

O professor Fausto Quadros aponta duas grandes geranças do texto português para o Brasil: "O primado da dignidade da Pessoa Humana, que foi importada da Lei Fundamental alemã, e o sistema de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão". 

Para Otavio Luiz Rodrigues Junior, até o processo de “abrandar” os trechos que determinavam um controle estatal na economia se deu de forma parecida nos dois países. Ele cita o controle de constitucionalidade por omissão como herança prática e até a idade de um Estado democrático de Direito.

“De um modo geral, as similitudes também se mostram importantes no modo como a Constituição brasileira é entendida e interpretada por nossa doutrina, que se influenciou pelas ideias dos pais-fundadores da Constituição de 1976, como Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Souza, e de J. J. Gomes Canotilho, um dos grandes teóricos do constitucionalismo democrático português”, afirma Rodrigues.

*texto alterado no dia 12/4 para acréscimo de informações. 

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