Opinião

Prerrogativa de foro não impede indiciamento pela polícia judiciária

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5 de abril de 2016, 15h10

Alguns argumentos acerca do indiciamento já foram trazidos na Coluna Academia de Polícia, nos artigos que tratam da fundamentação do ato e sobre seus efeitos. Recentemente, o tema voltou à discussão no que tange ao indiciamento de autoridades com prerrogativa de foro, tendo sido objeto de recente reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal, conforme noticiado por esta revista eletrônica Consultor Jurídico.

O indiciamento de autoridades com prerrogativa de foro deve ser compatibilizado com o modelo acusatório de persecução penal adotado pela Constituição Federal, com a tendência jurisprudencial da Suprema Corte de trazer para a fase investigatória garantias e direitos decorrentes do princípio do contraditório e da ampla defesa e com a Lei 12.830/2013.

Cabe destacar, preliminarmente, que a figura do indiciamento passou a ter tratamento legislativo somente com a entrada em vigor da Lei 12.830/2013 . Em momento pretérito, inexistia descrição normativa sobre este modelo jurídico, apesar de figurarem, por décadas, em diversos corpos legais, a expressão “indiciado”. Não obstante a omissão legislativa, a doutrina e jurisprudência já haviam traçado os contornos do instituto, tendo a lei apenas consolidado um posicionamento já adotado pela maioria dos intérpretes do Direito. Nesse passo, a inovação legislativa estabeleceu que “o indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.”

A privatividade do Delegado de Polícia demonstra que o instituto é intrínseco e exclusivo da fase de investigação criminal, sendo a formalização do juízo de convencimento da autoridade policial. Nesse sentido, foi a manifestação em artigo jurídico já publicado:

“O ato de indiciamento é o ato do Delegado de Polícia, enquanto presidente da investigação, via de regra praticado ao término da mesma, ao considerar concluída a fase de coleta de elementos probatórios do delito investigado, quando é possível concluir-se pela autoria de determinado crime, individualizando-se o autor.”

Enquanto o juízo de convicção do delegado de Polícia sobre a prática delitiva se externaliza por meio do indiciamento, o convencimento do Ministério Público é retratado pela apresentação de denúncia e o posicionamento do magistrado é evidenciado quando da prolação de sentença. Trata-se de uma das etapas da formação da culpa na investigação criminal, no processo de filtragem apontado por Aury Lopes Jr.[1]

O indiciamento, a peça acusatória e a sentença judicial são reflexos do juízo técnico-jurídico de cada uma das autoridades envolvidas na persecução penal, sendo vedada a interferência nesse processo de formação de convencimento, sob pena de desconstrução do modelo acusatório, o qual sustenta divisões precisas entre as funções de investigar, de acusar e de julgar, a fim de que o Estado atue de forma isenta e imparcial durante toda a persecução penal.

Em consonância com a posição consolidada na Suprema Corte, o Poder Judiciário, em razão do nosso modelo acusatório, deve atuar na fase investigatória somente para inibir violações à ordem legal e constitucional que possam trazer prejuízos às garantias do investigado como sujeito de direito. O reflexo da estrutura acusatória para a condução do inquérito policial é a impossibilidade do magistrado se imiscuir no campo de discricionariedade do Delegado de Polícia quanto à necessidade, oportunidade e conveniência da realização de diligências investigatórias.

Da mesma forma, os efeitos desse modelo impedem o Poder Judiciário de interferir no convencimento técnico-jurídico externalizado pela autoridade policial no momento em que se indicia um investigado, concluindo-se, após o emprego de variados meios de investigação, pela ocorrência de prática delitiva, diante de fato típico, com materialidade e de indícios de autoria.

Nada impede que vícios de legalidade presentes no despacho de indiciamento, como a ausência de fundamentação ou mesmo inexistência de materialidade ou de indícios de autoria, possam ser analisados a posteriori pelo magistrado, desde que este controle seja exercido com o propósito de garantir a legalidade e constitucionalidade dos atos da autoridade policial. A função jurisdicional, contudo, não pode influir no mérito do indiciamento, no sentido de impor à autoridade policial que se posicione no mesmo sentido de eventual requisição ou autorização do magistrado, já que ambas são posturas judiciais incompatíveis com o modelo acusatório adotado em texto constitucional.

O Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, firmou entendimento segundo o qual o indiciamento constitui atribuição exclusiva da autoridade policial, de modo que não pode ser requisitada pelo magistrado sob pena de afronta ao princípio acusatório. Eis a ementa da decisão:

Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA ORDEM TRIBUTÁRIA. REQUISIÇÃO DE INDICIAMENTO PELO MAGISTRADO APÓS O RECEBIMENTO DENÚNCIA. MEDIDA INCOMPATÍVEL COM O SISTEMA ACUSATÓRIO IMPOSTO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. INTELIGÊNCIA DA LEI 12.830⁄2013. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. SUPERAÇÃO DO ÓBICE CONSTANTE NA SÚMULA 691. ORDEM CONCEDIDA. 1. Sendo o ato de indiciamento de atribuição exclusiva da autoridade policial, não existe fundamento jurídico que autorize o magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento de determinada pessoa. A rigor, requisição dessa natureza é incompatível com o sistema acusatório, que impõe a separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a impedir que o juiz adote qualquer postura inerente à função investigatória. Doutrina. Lei 12.830⁄2013. 2. Ordem concedida. (HC 115015, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 27⁄08⁄2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-179 DIVULG 11-09-2013 PUBLIC 12-09-2013)

Da mesma forma, o indiciamento também não pode ser condicionado à prévia autorização do Poder Judiciário, uma vez que os efeitos dessa conduta também significariam ingerência indevida do Poder Judiciário em questões de natureza manifestamente inquisitorial. Sem delongas, caso autorizado o Delegado de Polícia a proceder ao indiciamento, o magistrado estaria antecipando juízo de valor, afirmando que houve prática delitiva, bem como estariam presentes a materialidade e indícios de autoria. Por outro lado, caso denegada a autorização, seu posicionamento já estaria firmado em sentido contrário.

Nota-se que, em ambas as situações, o magistrado estaria se antecipando e formando seu convencimento antecipadamente, substituindo a autoridade policial no ato de indiciamento, já que nas investigações que contemplam investigados com prerrogativa de foro, o tratamento dado ao indiciamento, independente de regramento específico de regimentos internos ou leis esparsas, deve ser idêntico àquele observado nos inquéritos policiais em que se verifica a incidência exclusiva do Código de Processo Penal, já que a vedação de interferência do magistrado quando a autoridade policial realiza um indiciamento não decorre de atos normativos primários, mas sim de mandamentos constitucionais, os quais estruturam nosso modelo acusatório penal.

Não bastasse a questão constitucional, o indiciamento, nos moldes defendidos, também tem como sustentação a incidência do Código de Processo Penal aos inquéritos originários. O Código de Processo Penal, no artigo 1º, caput, define, como regra, sua incidência ao processo penal em todo o território brasileiro, trazendo algumas exceções. Vejamos:

Art. 1º O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados:
[…]
IV – os processos da competência do tribunal especial (Constituição, art. 122, no 17);
[…]
Parágrafo único. Aplicar-se-á, entretanto, este Código aos processos referidos nos nos. IV e V, quando as leis especiais que os regulam não dispuserem de modo diverso.

Em regra, as normas do Código de Processo Penal não poderiam ser aplicadas aos inquéritos originários, conforme a excepcionalidade criada no inciso IV. Contudo, sua aplicabilidade é autorizada, por imposição do parágrafo único, no caso de ausência de tratamento diverso das leis especiais.

No caso de inquéritos que tramitam na Suprema Corte, as normas especiais existentes são a Lei 8.038/1990 e o Regimento Interno do STF, ambos tratam de forma mínima a temática.

Deveras, a Lei 8.038/1990, que institui normas procedimentais para os processos de ação originária perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, apesar de ter tratado da ação penal originária, instituindo nuances específicas na tramitação processual, nada discorreu sobre os inquéritos que envolvessem investigados com prerrogativa de foro.

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, vigente durante o advento da Constituição Federal de 1988, por sua vez, também não abordou a temática. Contudo, no ano de 2011, foram editadas emendas regimentais, inserindo algumas regras para a fase pré-processual. Vejamos:

Art. 230-C. Instaurado o inquérito, a autoridade policial deverá em sessenta dias reunir os elementos necessários à conclusão das investigações, efetuando as inquirições e realizando as demais diligências necessárias à elucidação dos fatos, apresentando, ao final, peça informativa.

§ 1º O Relator poderá deferir a prorrogação do prazo sob requerimento fundamentado da autoridade policial ou do Procurador-Geral da República, que deverão indicar as diligências que faltam ser concluídas.

[…]

Art. 231. Apresentada a peça informativa pela autoridade policial, o Relator encaminhará os autos ao Procurador-Geral da República, que terá quinze dias para oferecer a denúncia ou requerer o arquivamento.

Constata-se que a única regra do Regimento Interno que colide frontalmente com as normas do CPP seria o prazo para conclusão das investigações. No Código de Processo são exigidos 30 dias; enquanto, na seara regimental, 60 dias. Na parte restante, não se identifica qualquer outro confronto entre ambos os corpos normativos.

Desse modo, conclui-se que o indiciamento deve ser tratado, mesmo nos inquéritos originários, em conformidade com os ditames do modelo acusatório, do Código de Processo Penal e da Lei 12.830/2013, já que tanto a Lei 8.038/90 quanto o Regimento Interno se mostram silentes a respeito deste e de grande parte dos temas pertinentes à investigação criminal.

O próprio Regimento Interno do STF, no artigo 231, trata da figura do indiciado:

§ 2º As diligências complementares não interrompem o prazo para oferecimento de denúncia, se o indiciado estiver preso.

§ 3º Na hipótese do parágrafo anterior, se as diligências forem indispensáveis ao oferecimento da denúncia, o Relator determinará o relaxamento da prisão do indiciado; se não o forem, mandará, depois de oferecida a denúncia, que se realizem em separado, sem prejuízo da prisão e do processo.

Necessário ainda destacar o posicionamento da lavra do ministro Teori Zavascki, ao apreciar a Petição 5.899-DF, em decisão de 2 de março de 2016, onde o mesmo reconhece a função do Supremo Tribunal Federal, na fase investigatória, de atuar no controle da legitimidade dos atos e procedimentos de coleta de prova, autorizando ou não medidas submetidas à reserva de jurisdição:

3. Cumpre registrar, por outro lado, que, instaurado o inquérito, não cabe ao Supremo Tribunal Federal interferir na formação da opinio delicti. É de sua atribuição, na fase investigatória, controlar a legitimidade dos atos e procedimentos de coleta de provas, autorizando ou não as medidas persecutórias submetidas à reserva de jurisdição, como, por exemplo, as que importam restrição a certos direitos constitucionais fundamentais, como o da inviolabilidade de moradia (CF, art. 5º, XI) e das comunicações telefônicas (CF, art. 5º, XII). Todavia, o modo como se desdobram as demais atividades investigativas e o juízo sobre a conveniência, a oportunidade ou a necessidade de diligências tendentes à convicção acusatória são atribuições do Procurador-Geral da República (Inq 2.913-AgR, Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe de 21/6/2012), que, na condição de titular da ação penal, é o “verdadeiro destinatário das diligências executadas” (Rcl 17.649 MC, Min. CELSO DE MELLO, DJe de 30/5/2014), bem como da autoridade policial, nos termos do art. 230-C do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

4. Definido, assim, o nível de interferência do Poder Judiciário na fase de investigação, registra-se, todavia, ser do mais elevado interesse público e da boa prestação da justiça que a atuação conjunta do Ministério Público e das autoridades policiais se desenvolva de forma harmoniosa, sob métodos, rotinas de trabalho e práticas investigativas adequadas, a serem por eles mesmos definidos, observados os padrões legais, e que visem, acima de qualquer outro objetivo, à busca da verdade a respeito dos fatos investigados, pelo modo mais eficiente e seguro e em tempo mais breve possível. Observadas essas circunstâncias, nada impede a instauração do presente inquérito.

Isto posto, num Estado Democrático de Direito, a prerrogativa de foro apenas acarreta aos ocupantes dos cargos públicos contemplados o Direito de ter como juiz natural, na fase de investigação e durante a instrução processual, a autoridade judiciária competente, não sendo admissível, sob este pretexto, a subversão da lógica acusatória de modo a legitimar a intervenção do Poder Judiciário em questões de natureza manifestamente inquisitorial.

Ademais, nada obsta sequer a aplicação do artigo artigo 17-D da Lei 9.613/1998, que estabelece que “em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno”, nos casos de lavagem de dinheiro, já aplicado, a título de exemplo, para ocupante de cargo de prefeito[2].

Sendo assim, nota-se que o indiciamento nos inquéritos originários independe de prévia autorização ou de requisição judicial, o que não impede nem prejudica a supervisão judicial do ministro-relator na sua função de garantidor de direitos fundamentais e de fiscalizador da legalidade da persecução penal. Ao revés, trata-se de construção necessária para compatibilizar o instituto em voga com os ditames constitucionais e legais regentes da investigação criminal.


[1] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 280.
[2] Prefeito pernambucano é afastado com base na Lei de Lavagem de Dinheiro. Disponível neste link. Acesso em 05/04/2016.

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