Desordem contábil

Manipular orçamento e simular equilíbrio justifica impeachment, diz professor

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5 de abril de 2016, 7h33

A manipulação do orçamento para simular um equilíbrio financeiro que não existia viola a lei orçamentária — o que é uma das hipóteses de crime de responsabilidade. Assim, se for comprovado que as pedaladas fiscais assumidas pelo governo tiveram esse fim, elas podem servir para justificar um impeachment da presidente Dilma Rousseff. A opinião é do advogado e professor Eduardo Mendonça, autor do livro A constitucionalização das finanças públicas no Brasil – Devido processo orçamentário e democracia.

O atraso no pagamento das transferências promovidas entre o Tesouro Nacional e bancos públicos para pagamento de benefícios sociais podem ser consideradas como uma espécie de fraude contábil. Para o advogado, caracterizariam “uma conduta muito grave”, pois impedem que a sociedade saiba o que está sendo feito com o dinheiro público.

Marcos de Vasconcellos
Eduardo Mendonça entende que pedaladas, se provadas, são fraude, pois impedem que a população saiba do estado das contas públicas.

O advogado também reclama que o orçamento público não é acompanhado de perto pela sociedade. Como exemplo dessa importância, Mendonça cita que a atual lei orçamentária destina R$ 885 bilhões para pagar juros da dívida pública. “É mais do que todo o orçamento da seguridade social e mais da metade de todo o orçamento fiscal.”

“Não por acaso, a violação à lei orçamentária é uma das hipóteses de crime de responsabilidade. Não faz sentido, portanto, a alegação de que o impeachment seria necessariamente ilegítimo por não ter havido proveito pessoal decorrente de corrupção”, argumenta Eduardo Mendonça, sócio do Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça e Associados (BFBM).

O advogado, que é professor de Direito Constitucional do Centro Universitário de Brasília (Uniceub), diz que o fato de a prática ter sido feita pelos antecessores de Dilma é o argumento mais sólido para barrar o pedido de impedimento, mas, mesmo assim, com ressalvas, pois além do fato, devem ser comparados os valores de cada operação.

“Não porque a recorrência da violação pudesse ter o efeito de afastar a ilicitude, mas por uma questão de segurança jurídica: sendo verdade que a mesma conduta teria sido detectada e tolerada em governos anteriores”, afirma Mendonça.

Em entrevista à ConJur, Mendonça faz um apelo ao debate sobre o tema, sem a desqualificação imediata daqueles que discordam. A defesa do governo Dilma na Comissão Especial do Impeachment na Câmara dos Deputados, inclusive, foi feita por um advogado do seu escritório, Ricardo Lodi, que já havia elaborado parecer contrário ao impeachment de Dilma.

Confira a entrevista:

ConJur — As chamadas pedaladas fiscais são descritas como operações de crédito que maquiam o orçamento. O governo alega que seriam meras irregularidades, insuficientes para justificar um impeachment. Qual é a gravidade de tal atitude?
Eduardo Mendonça —
A principal acusação é de que o governo teria adotado uma política sistemática de retardar pagamentos aos bancos públicos, em valores bilionários e por longos períodos. Essa seria uma maneira de dissimilar a existência de déficit, funcionando como empréstimos informais, não contabilizados. Caso se confirme, a hipótese seria de falseamento das contas públicas. Isso seria uma conduta muito grave, por negar o direito da sociedade de saber o que está acontecendo com o dinheiro público. A antítese da ideia de responsabilidade fiscal, portanto. A adoção desse tipo de expediente, se confirmada, não pode ser justificada como se fosse inerente a determinado projeto político ou econômico, liberal ou estatizante. De um jeito ou de outro, os cidadãos precisam estar cientes das opções que estão sendo feitas pelos governantes, inclusive para que possam exercer controle social sobre elas.

ConJur — Podemos chamar as pedaladas de fraude?
Eduardo Mendonça —
Caso se constate a manipulação, sim. A violação à lei orçamentária não decorre do simples fato de haver déficit em determinado período. Isso poderia ser contabilizado de forma expressa e transparente, sem prejuízo da eventual crítica política à forma de condução da economia. A acusação é outra, de que teria havido uma maquiagem deliberada para omitir da sociedade o real estado das finanças públicas. Não por acaso, a violação à lei orçamentária é uma das hipóteses de crime de responsabilidade. Não faz sentido, portanto, a alegação de que o impeachment seria necessariamente ilegítimo por não ter havido proveito pessoal decorrente de corrupção.   

ConJur — Qual é a função da Lei do Orçamento? Ser um guia para o governo ou uma forma de controle do governo pela população?
Eduardo Mendonça —
Ambas as coisas, mas sobretudo um mecanismo de controle para a sociedade. O orçamento é ou deveria ser uma das leis mais importantes de uma democracia. Em primeiro lugar, é pelo orçamento que são alocados os recursos, que são escassos, por entre as diferentes opções de gasto e investimento: educação, saúde, segurança pública, inovação, defesa nacional, propaganda institucional, gasto com manutenção do Poder Público. São as chamadas escolhas trágicas, porque não há verbas suficientes para atender a todas as necessidades. Em segundo lugar, de forma complementar, o orçamento deveria fornecer um diagnóstico fiel das finanças públicas. Nisso se inclui o registro transparente da dívida pública, que tem um impacto dramático na capacidade de investimento estatal. Na atual lei orçamentária, R$ 885 bilhões foram destinados ao pagamento de juros dessa dívida. É mais do que todo o orçamento da seguridade social e mais da metade de todo o orçamento fiscal. Sem exagero, portanto, é no orçamento que a sociedade define as suas prioridades reais no presente e o tipo de legado que se vai deixar para as gerações futuras. Um legado que pode ser de liberdade para viver o próprio projeto político ou de sobrecarga por um superendividamento herdado das gerações passadas. É chocante que o nosso debate público não acompanhe essas opções mais de perto, a despeito da indignação geral com a baixa qualidade da atuação estatal e com a incoerência nas suas prioridades.

ConJur — As pedaladas, pragmaticamente, podem levar pessoas e instituições a decidirem seus investimentos com base em uma fraude?
Eduardo Mendonça —
As pessoas e empresas planejam a sua vida com base em diversas variáveis, no que se inclui a situação econômica do país, atual e projetada. Basta olhar o cenário atual, caracterizado por uma crise de confiança que reduz os investimentos internos e externos. A postura de falsear o diagnóstico das finanças públicas, se comprovada, caracterizaria uma quebra na lealdade que se pode exigir do Poder Público. O impacto é imediato e se projeta no tempo, já que a recuperação da confiança leva tempo.

ConJur — O governo, em sua defesa, aponta que governos anteriores também recorreram às pedaladas. Por que agora isso é apontado como um problema?
Eduardo Mendonça —
Na minha opinião, esse é o argumento de defesa que teria maior consistência jurídica, desde que seja comprovado com dados objetivos que promovam uma comparação efetiva entre as práticas adotadas nos sucessivos governos. Não porque a recorrência da violação pudesse ter o efeito de afastar a ilicitude, mas por uma questão de segurança jurídica: sendo verdade que a mesma conduta teria sido detectada e tolerada em governos anteriores, seria arbitrário que a mudança no critério de julgamento tivesse o efeito de determinar o afastamento de uma presidente eleita. Seria uma hipótese acadêmica de modulação dos efeitos do novo entendimento. Mas, para isso, é necessário demonstrar efetivamente a similitude de situações e refutar de forma específica os dados apresentados pelo TCU [Tribunal de Contas da União], que sinalizam uma mudança substancial na dinâmica dessas operações. Ainda não vi essa demonstração objetiva em lugar algum, mas a defesa escrita do governo pode ter trazido os dados e precisa ser considerada com seriedade.

De qualquer forma, aqui não se trata de comparar apenas a magnitude dos valores envolvidos, e sim todo o conjunto de indícios quanto à ocorrência ou não de dissimulação. Mas é fato que os valores e a duração dos atrasos são um indicativo relevante para que se possa diferenciar entre desequilíbrios de caixa eventuais e uma possível manipulação sistêmica.  

ConJur — Para o prezado, as pedaladas são motivo de impeachment?
Eduardo Mendonça —
Como eu disse, depende da comprovação de ter havido manipulação do orçamento para o fim de simular um equilíbrio financeiro que não existia. Parece uma obviedade, e é, mas o debate anda tão contaminado por retórica que é preciso identificar o critério de julgamento com clareza. Não se trata de escolher qual o melhor projeto de governo, mas de fazer valer as regras de lealdade orçamentária impostas a todos os governos. Porque eles passam, mas a sociedade fica e terá de arcar com as consequências. Por isso mesmo, caso se confirme a referida acusação, não teria dúvida em dizer que a conduta poderia ser enquadrada no artigo 85, VI, da Constituição, que prevê a violação da lei orçamentária como uma das hipóteses de crime de responsabilidade.

Mas essa decisão não é minha e não pode ser resolvida por argumentos de autoridade. O processo de impeachment, na Câmara e eventualmente no Senado, serve justamente para que essa discussão seja realizada de forma pública e plural. Cabe ao Congresso valorar as condutas imputadas à Presidente e aferir se elas constituem ou não ofensa à Constituição, dentro da margem de discricionariedade inerente a tal juízo. É isso que decorre da opção constitucional de confiar o julgamento a um corpo político — formado por correntes partidárias de apoio e oposição ao governo — e não a um tribunal. O que se tem, portanto, é um relevante constrangimento jurídico sobre um julgamento político, e não o inverso. E sob a supervisão procedimental do STF, que já foi chamado a esclarecer o regime jurídico aplicável e deu uma resposta muito equilibrada, preservando o rito que havia sido adotado em 1992.

É preciso aceitar as regras do jogo, quer ele termine com a rejeição ou com a admissão inicial da denúncia. Não se pode pretender que a resposta somente seja legítima se corresponder à preferência política do observador ou ao entendimento de determinados juristas, por mais ilustrados que sejam. Aliás, há nomes respeitáveis em ambos os lados e isso, por si só, já enfraquece a afirmação de que haveria mera perseguição política. A discussão está sendo colocada como se fosse binária, quando não é. É possível defender o entendimento de que não haveria crime de responsabilidade e, mesmo assim, reconhecer que existem elementos razoáveis para uma conclusão em sentido oposto pelas autoridades que a Constituição intitulou para esse exame. Ou vice-versa. Democracia não é o regime em que as pessoas que discordam de mim são golpistas ou mal informadas.

O olhar da sociedade deve ser atento para avaliar esse julgamento, seja para desestimular uma condenação artificial, seja para criticar uma absolvição condescendente. Não porque esses juízos representem a constatação de um golpe, mas porque a opinião pública tem de fiscalizar as autoridades e exigir respostas consistentes. Esse processo todo é de enorme importância para o país, não só por decidir a manutenção ou não do governo, mas porque temos a chance de, finalmente, colocar o orçamento na pauta democrática. As finanças públicas podem parecer uma tecnicalidade, mas são elas que geram condições para que o Poder Público implemente os seus programas: de propaganda institucional ao bolsa família. Qualquer que seja o desfecho, espero que essa grande turbulência sirva de alerta para que se volte a levar a sério a exigência de responsabilidade fiscal e se passe a olhar o orçamento como ambiente de concretização e controle das promessas políticas.

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