Opinião

Uso de depósitos judiciais pelos estados não é inconstitucional

Autor

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

29 de setembro de 2015, 6h56

No dia 21 de setembro deste ano, o ministro Gilmar Mendes, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.072 (que ataca a Lei Complementar 147/13 do Rio de Janeiro, alterada pelas LCs nos 148/13 e 163/15), conduziu, com a presença do ministro Edson Fachin, audiência pública para colher o depoimento de autoridades e integrantes dos mais diversos setores da sociedade sobre a possibilidade de utilização de depósitos judiciais — às vezes, também extrajudiciais — em dinheiro pelos Poderes Executivos da União Federal e de alguns Estados-membros (como RJ, MG, PB, BA, PR, SP) para pagamento de despesas diversas (por exemplo, precatórios, requisições de pequeno valor, capitalização de fundos de previdência, etc.). Na ocasião, foram prestados esclarecimentos de ordem técnica, administrativa, científica, econômica, política e, é claro, jurídica — muito embora, como se verá, não há nada de jurídico nas alegações trazidas pelos propositores das ações.

Para começar, cabe destacar que a questão que se coloca em debate configura, em certo sentido, uma inovação no ordenamento jurídico. Por isso mesmo, incomoda, pois o que é novo tende a incomodar. No entanto, como deveria ser óbvio a todos, não é porque uma inovação legislativa gera incômodo que deva ser declarada inconstitucional.

A bem da verdade, o que transparece da leitura das iniciais das ações é que os requerentes (a Procuradoria Geral da República e, no caso da ADI 5.361, a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB) não se conformam com o julgamento levado a cabo pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.933 (Lei federal 9.703/98) e ADI 2.214 (Lei 1.952/99 do Mato Grosso).

O inconformismo é manifesto, porque os argumentos agora derramados são os mesmos de antes. As ações fundam-se em alegações genéricas e meramente especulativas e alarmistas sobre a capacidade econômica dos entes políticos da federação de honrar seus compromissos financeiros com a população, redundando na conhecida falácia lógica do argumentum ad metum. No fim, o que fazem é tão-só abalar, sem justificativa razoável, a confiança nas instituições dos Poderes Públicos. E apesar de toda a elucubração, fazendo referência a uma série de dispositivos constitucionais, as pretensões sustentam-se, basicamente, em dois pilares, ambos carentes de base jurídica, a saber:

  • a suposta possibilidade de insolvência dos entes políticos, apesar de ser certo que estes, não podendo ser equiparados aos agentes econômicos que atuam no mercado sob a sistemática de assunção de riscos, consequentemente não podem ser tidos como insolventes; e
  • a suposta indisponibilização dos valores aos depositantes, como se depósitos, sobretudo judiciais, pudessem ser requisitados a qualquer tempo e por todos os depositantes concomitantemente (reductio ad impossibile).

O STF já firmou e confirmou que o depósito judicial, por ser uma faculdade do depositante, estando à mercê de sua livre manifestação de vontade, não tem a característica de empréstimo compulsório. Da mesma forma, as leis em debate não trazem qualquer imposição tributária (até mesmo porque, inexiste hipótese de incidência que possa dar ensejo a fato gerador do suposto tributo), mas simples regras que disciplinam depósitos de valores e seu repasse interno do Judiciário ao Executivo. Isso nada tem a ver com a figura do empréstimo compulsório, ausente que está a compulsoriedade (o depositante pode efetuar o depósito ou não).

É ainda mais risível falar-se em possível confisco, uma vez que o valor depositado deve ser restituído ao vencedor da ação, corrigido monetariamente. O próprio uso da palavra “possível” denota o caráter falacioso do argumento (slippery slope). De qualquer modo, a Suprema Corte assentou, no julgamento das ADIs 1.933 e 2.214, que o direito de propriedade permanece incólume, pois o bem do depositante não lhe é retirado.

Não se trata sequer de empréstimo (público), como equivocadamente entendeu Fernando Facury Scaff, em texto veiculado aqui na ConJur. Está-se diante de mero direito de uso de uma disponibilidade. Posto de outra forma, as leis autorizam que os entes políticos façam uso de bens fungíveis que já estão sob a guarda do Estado. Os valores não são apropriados pelos Poderes Executivos, senão contabilmente, como simples ingressos. Cumpre dizer: por meio dessas leis, os Poderes Executivos valer-se-ão do vultoso fluxo de caixa e de suas capacidades de alavancagem financeira (leverage), sem que haja transferência de titularidade jurídica dos recursos, os quais permanecerão à disposição das partes, enquanto possibilidade garantida de fruição futura.

A transferência do Estado-juiz ao Estado-administrador é intramuros, de modo que o dinheiro permanece, para todos os efeitos jurídicos, dentro do Estado.

Além disso, depósitos judiciais e extrajudiciais não constituem reservas de agentes privados, pois não detêm liquidez (encontram-se temporariamente indisponível às partes), estando sua liberação condicionada ao deslinde da questão à qual se ligam. Se assim é, considerando que o depósito em juízo leva à imobilização do recurso, com perda provisória de liquidez, não há como falar em qualquer interesse que se projete extramuros, para fora do Estado e em direção ao particular, contanto que o depositante receba ao final, o que é assegurado pelas leis. Ora, dinheiro é coisa fungível e, uma vez realizado o depósito, nasce para o depositante um direito de crédito que só se tornará eficaz quando (e se) sair vencedor na demanda (em regra, após o trânsito em julgado).

Disso decorre que os verdadeiros interessados na causa são os bancos, sendo certo que o que se passa por trás desse véu em nada interessa ao depositante. Este está interessado tão-somente em receber o dinheiro de volta e corrigido, caso saia vencedor na demanda. E isso as novas leis garantem, e com larga margem de segurança.

Deveras, as leis impugnadas são extremamente cautelosas, no que diz respeito à garantia dos depósitos. O cuidado especial dos legisladores federal e estaduais, quando da elaboração dos textos jurídicos em comento, foi, inclusive, muito maior, se comparado à disciplina dos depósitos bancários, haja vista:

  • a previsão legal para a constituição de Fundos de Reserva, com instrumentos eficazes de recomposição, cuja finalidade é justamente prover segurança na realização dos pagamentos, à medida que forem sendo requisitados (tendo em vista que isso não ocorre de uma só vez);
  • adicionalmente, a previsão legal de prazo máximo (muito inferior ao previsto na Lei sul-mato-grossense 1.952/99, analisada na ADI 2.214[1]) para que os Poderes Executivos entreguem as quantias requisitadas, em caso de insuficiência dos fundos, e após expedição de ordem pelos tribunais.

Em se tratando de Minas Gerais, a última garantia é excepcionalmente robusta, pois o parágrafo único do artigo 6º da lei mineira prevê que “[e]m caso de descumprimento do prazo previsto no caput, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais bloqueará a quantia necessária à restituição ou ao pagamento do depósito judicial diretamente nas contas mantidas pelo Poder Executivo em instituições financeiras, inclusive mediante a utilização de sistema informatizado.” Sem falar, ainda, na previsão de suspensão automática das transferências, quando o saldo do fundo for inferior ao legalmente estipulado, ex vi do parágrafo 3º do artigo 4º: “[a] transferência de que trata esta Lei será suspensa sempre que o saldo do fundo de reserva for inferior ao percentual indicado nos incisos I e II do § 1º deste artigo ou no caso de descumprimento do disposto no art. 2º.”

Nenhuma das leis sobre uso de depósitos (a federal, a mineira, as leis complementares fluminenses e outras) interfere nessa primeira relação (atinente ao depósito judicial), porquanto o depositante continua a entregar o numerário ao Estado-juiz. Este, não estando estruturado administrativamente, vinha transferindo os valores ao banco, que é mero auxiliar judiciário. O depositário, portanto, é o Estado-juiz, jamais o banco. Sendo mero depositário dos valores que lhe são confiados pelo Judiciário, o banco integra uma segunda relação (administrativo-financeira e não jurisdicional). Por essa razão, outro grave equívoco é achar que as leis sub judice tratam de normas de direito processual e/ou civil. O depositante, que é parte em um processo judicial ou administrativo, não contrata nem a instituição financeira, muito menos o Estado-juiz.

De duas, uma: ou os (incomodados) requerentes estão desavisadamente a advogar interesses particulares dos bancos, ou bem estão fazendo um verdadeiro dramalhão (catalisado pela novidade da questão) em relação à possibilidade de devolução dos valores aos depositantes. É curioso, por exemplo, que a Procuradoria-Geral da República afirme que inexista garantia de que os Poderes Executivos darão cumprimento às determinações dos Poderes Judiciários locais, entregando os valores necessários à restituição dos depósitos. Ora, em um Estado Democrático de Direito, há que se presumir o cumprimento das leis e ordens judiciais por parte dos agentes públicos, e não o contrário.

O drama que o PGR, a AMB e os representantes dos bancos induzem é exagerado até mesmo para novelas mexicanas. Explico melhor.

Quando os ourives descobriram que era melhor emprestar dinheiro a juros do que fazer joia, isso incomodou, e muito, a Igreja. Depois, quando os bancos começaram a receber depósitos e a emprestar dinheiro que não lhes pertencia, a novidade, mais uma vez, gerou incômodo em muita gente.

Diante da possibilidade de instituições financeiras se tornarem insolventes, criou-se uma “reserva” — o banco central norte-americano, apelidado de Fed (Federal Reserve System). Com efeito, o Fed foi pensado para evitar um movimento financeiro de “manada”, a chamada “corrida aos bancos”, decorrente de uma crise econômica mais grave, o que poderia impedir a devolução do dinheiro depositado. Em outras palavras, evitou-se a quebra dos bancos, já que estes, diferentemente do Estado, podem quebrar.

De forma similar, as leis sobre depósitos judiciais marcam a necessidade de se constituir “fundos de reserva” — fundos esses que estão com percentuais elevadíssimos (30%) e valores que chegam a ser cinco vezes superiores às reservas bancárias que são mantidas para atender a necessidade de um mínimo de liquidez. Isso torna absolutamente desarrazoada a ideia de que o depositante possa vir a ficar sem devolução, algo estatisticamente impossível de ocorrer na prática.

Como se não bastasse, importa registrar que as “corridas aos bancos” são até possíveis, mas a possibilidade de uma “corrida aos depósitos judiciais e extrajudiciais” simplesmente não existe. É faticamente impossível que todos os juízes e autoridades administrativas resolvam todo o enorme universo de ações ao mesmo tempo (reductio ad absurdum).

Enfim, é da essência do depósito bancário a autorização para que a instituição financeira use em seu proveito o dinheiro depositado. Afinal de contas, são os depósitos efetuados que darão lastro aos empréstimos feitos pelos bancos, levando à cobrança de juros e obtenção de lucro. Um lucro, aliás, astronômico.

O mesmo se passa com os depósitos judiciais, embora estes sejam bem diferentes dos depósitos bancários, na medida em que são confiados ao Estado-juiz para garantia do resultado útil dos processos. Nada obstante, estão sendo utilizados pelas instituições financeiras com finalidade lucrativa e, por vezes, servindo de lastro até para empréstimos bancários ao próprio Estado, a uma elevada taxa de juros. Ou seja, os efeitos secundários derivados dessas disponibilidades de caixa estão sendo apropriados pelas instituições financeiras, ao invés de reverterem para o bem da coletividade.

Ao se propiciar o lucro privado dos bancos, deixa-se de atender ao bem comum. É precisamente essa situação absurda e irregular, sob o prisma axiológico, que as leis sobre o uso dos depósitos buscam corrigir. A mens legis consiste em permitir que o Estado-administração mantenha a sanidade de suas contas, pela utilização das disponibilidades de caixa decorrentes da utilização dos depósitos.

Há, como se vê, uma tentativa dramática de afastar leis que, gozando de presunção de legalidade e constitucionalidade, buscam atender ao interesse da coletividade (ao invés dos interesses privados dos bancos). Se os argumentos jurídicos são frágeis (além de já terem sido vencidos pelo STF), afirma-se, com segurança, que o que os requerentes tentam emplacar é nada mais do que uma espécie de “inconstitucionalidade por dramalhão”, que apenas cria um clima negativo e de desconfiança em relação às instituições públicas.

Ações como as ADIs nos 5.361, 5.072, 5.353 tendem a favorecer não os titulares dos depósitos, muito menos a população local, mas somente aqueles que se beneficiam da desestabilização das instituições públicas. A pretexto de promover segurança e certeza, acabam gerando mais insegurança e mais incerteza, ao difundirem a desconfiança em relação aos entes estatais. O alegado receio daqueles que se opõem à utilização dos depósitos em prol da sociedade, longe de inovar, tem origem nos jogos políticos de interesse, sendo, talvez, de ordem psicológica, mas nunca jurídica. Devo insistir: novidades incomodam, mas nem por isso devem ser declaradas inconstitucionais.


[1] Enquanto as leis objeto das novas ADI’s estabelecem prazo de três dias úteis, a Lei 1.952/99, do Estado do Mato Grosso do Sul, determina, em seu art. 1º, I, que o depósito será “devolvido ao depositante pela Secretaria de Estado da Fazenda, no prazo máximo de dez dias, quando a sentença lhe for favorável ou na proporção em que o for, acrescido de juros”.

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