Direito em debate

Veja melhores trechos de palestra de Moro e Lenio Streck em evento do IBCCrim

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25 de setembro de 2015, 17h00

Famosos em seus campos de atuação, eles concordam em ao menos um ponto: o Direito tem passado por transformações. “[Acabou] O nosso método clássico de Processo Penal em que nós tínhamos os processos que nunca terminavam, nunca tinham consequência, como de casos criminais que chegavam à prescrição”, afirma o juiz federal Sergio Fernando Moro, responsável pelos processos da operação “lava jato” no Paraná.

“[Existe] Uma nova magistratura, um novo Ministério Público e uma nova Polícia Federal. Nessa mudança de imaginário, a maior derrotada é a dogmática jurídica”, declara o jurista Lenio Luiz Streck, procurador de Justiça aposentado, professor de Direito Constitucional e colunista da revista eletrônica Consultor Jurídico.

Ambos dividiram mesa, em agosto, durante o 21º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido em São Paulo pelo IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Falaram sobre os impactos que a “lava jato” tem gerado no país, com o maior uso de delações premiadas e os critérios para prisões preventivas, e os rumos do Direito. O tema sério não impediu piadas, referências literárias e provocações.

Abaixo, leia trechos e veja vídeos do debate. O IBCCrim planeja disponibilizar ainda neste ano, para seus associados, a íntegra de todas as palestras do seminário.

PRISÃO PREVENTIVA
Sergio Moro

Penso que o juiz, para decretar uma prisão preventiva ou outra medida restritiva de Direito, deve fazer isso com base numa carga probatória significativa, de materialidade, de autoria. Entendo particularmente que o mero depoimento do colaborador não pode servir como justificativa suficiente para decretar a prisão preventiva, é necessária alguma prova de corroboração.

Claro que vai ser necessária ainda a presença conjunta de um fundamento, de um risco. Para deixar claro, até foi feita aqui a ressalva, está longe do meu convencimento ou qualquer perspectiva a utilização de prisão cautelar para obter confissões.

Lenio Streck
Por mais que nós tenhamos violência ou corrupção no Brasil, nada disso quer dizer ou significar que nós possamos agir de uma forma consequencialista. Isto é, para combater a corrupção — que é endêmica no Brasil —, nós não podemos obviamente atropelar direitos. Então agir com princípios é ser não consequencialista, agir de forma finalística é consequencialista. Minha tese: eu sou um não consequencialista moderado, e a Justiça tem sido muito mais consequencialista.

Vamos dar um caso: decisão do TRF-4, agora de 30 de julho de 2015, indeferiu Habeas Corpus de acusado da operação “lava jato” que está preso há mais de 500 dias, quando o caso obviamente já extrapolou [o prazo razoável], já que o prazo estabelecido em 2009 pelo Conselho Nacional de Justiça foi de 168 dias na Justiça Federal.

Mas o relator do TRF entendeu que o excesso do prazo está justificado porque o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que um pequeno atraso na instrução, justificado pelas circunstâncias, não conduz ao reconhecimento do excesso do prazo. Nesse ponto usamos o princípio da razoabilidade, exemplo típico de decisão consequencialista, de como não deve ser. Qual é o valor que nós damos às palavras? Não tem um "tamanhômetro" para emitir prazos, mas com certeza 500 [dias] não é pequeno. Se você diz que 500 é pequeno, é porque nós perdemos a noção do que é uma palavra, do que é uma coisa, e o que significam as palavras.

Qual é o problema? O problema é teleológico. O tribunal não queria soltar e deu um argumento finalístico. Me impressiona que uma decisão que diz que 500 é pequeno não gere constrangimento por parte da comunidade jurídica.

Sergio Moro
Sobre o caso mencionado do indivíduo há 500 dias com prisão preventiva, vamos colocar um esclarecimento: esse cidadão [Carlos Habib Chater] foi acusado em três processos criminais. Foi julgado e condenado em dois, um por lavagem de tráfico de drogas e outro por lavagem de crime contra a administração pública. Havia um terceiro processo que, lamentavelmente, não foi possível ser julgado num tempo mais expedito. Por isso, entendi que era o caso de revogar a preventiva, porque realmente não tinha tido tempo hábil para julgá-lo naquele processo, mas ele continuou preso porque já estava condenado nos outros dois. Essa era a situação quando o Habeas Corpus chegou ao tribunal.

Lenio Streck
Não estou falseando os dados sobre a questão dos 500 dias. Se você está preso preventivamente, está preso preventivamente, isso é uma questão técnica, não dá para misturar as prisões. Se já foi condenado no outro processo, que se diga então que ele está cumprindo pena, mas tecnicamente ele estava preso preventivamente. Para mim, o Direito é técnico nesse sentido. Só para deixar bem claro isso, não quero parecer irresponsável.

Divulgação/IBCCrim
Participantes de debate: da esq. para a dir., o professor Renato de Mello Silveira; o juiz Sergio Moro, os advogados Alberto Silva Franco e André do Nascimento e o jurista Lenio Streck.
Divulgação/IBCCrim

DELAÇÃO PREMIADA
Sergio Moro

É bom conversarmos sobre esse tema, especialmente com a advocacia, porque observo que a colaboração premiada por vezes é contaminada por inflexões fundadas em certos preconceitos e às vezes até mesmo com base em dados imprecisos. O instituto já existe há um bom tempo na nossa legislação, mas na prática é muito pouco usado e recentemente vem tendo esse emprego mais intenso. Mesmo nos países que o utilizam com bastante frequência, como os Estados Unidos, é sem dúvida polêmico e apresenta problemas, mas nós não conseguimos discutir ele com seriedade se partimos de estereótipos.

Eu separei aqui trecho de um artigo muito bom, que traduzi do juiz federal norte-americano Stephen Trott: O Uso de um Criminoso como Testemunha faz referência a um caso criminal que remonta a 1883, quando o promotor William Wallace estava processando um acusado, de nome Frank James, irmão do famoso Jesse James, e nesse julgado foi utilizado um colaborador, Dick Liddil, que era membro da gangue do Frank James e foi utilizado como testemunha contra os seus pares.

O promotor então se dirige ao júri para defender a prova de uma série de ataques que haviam sido feitos pelo advogado de defesa: “Dick Liddil era um membro de uma quadrilha de assaltantes conhecida como a Gangue James. Se ele não fosse criminoso, não poderia ter fornecido ao Estado o vasto benefício que forneceu. Quando homens estão para cometer um crime, eles não tocam trompete, eles fazem seu trabalho em segredo e na escuridão. (…) Quando o Estado vai quebrar um bando de criminosos, ele depende da assistência de um de seus pares no crime para fazê-lo, por isso é um costume tão velho quanto a lei selecionar de um bando desesperado um de seus membros e usá-lo como um guia para abater os outros. (…) Dick Liddil (…) subitamente mudou, ele deixou as sombras do crime e veio para a luz da lei e da ordem. De súbito, é estranho dizer que foi transformado em uma víbora, em um vilão, um patife, um demônio ou uma forma execrável, como o advogado de Frank James pôde denominá-lo. (…) O único contrato com Liddil  foi aquele sempre feito com as pessoas que se transformam em prol do Estado, como nós os chamamos nominalmente. Foi feito acordo por meio do qual ele deve dizer toda a verdade e nada além da verdade, e que se ele disser uma mentira o fará a seu risco e o contrato será encerrado”.

Me perdoem aqui pela leitura um pouco longa, mas não raramente nesses casos, quando se utiliza um criminoso colaborador, acaba havendo no processo uma estranha inversão de valores: enquanto ele estava praticando os crimes, enquanto mantinha aquele pacto de silêncio entre os criminosos, ele era alguém merecedor de todas as considerações não fosse culpado por nenhum crime. E, de repente, quando ele decide por razões muito pessoais, dependendo apenas da sua consciência, de mudar de lado e passar a colaborar com a Justiça, numa estranha inversão de valores, por vezes ele é qualificado como vilão, uma pessoa não confiável.

Quando ele decide colaborar, a meu ver deve ser valorado positivamente, ainda que faça isso movido por interesse próprio egoísta, para obter uma pena menor. O criminoso colaborador vai receber ao final, quando condenado, uma pena normalmente desproporcional ao seu crime. Isso é ruim, o ideal seria que a pena correspondesse exatamente à culpa, mas ao criminoso que resolve fazer essa escolha e que, de fato, contribuiu com a Justiça também é razoável que a lei forneça a ele algum benefício decorrente dessa conduta.

Então é um instituto controvertido, tem problemas. Afirmar que é um instrumento importante não significa que seja válido em qualquer caso, também não significa que deve ser adotado sem uma série de regras. Por vezes, vejo ainda na advocacia uma resistência um pouco preconceituosa. Já vi advogados afirmando que seu escritório não fazia acordo de colaboração premiada por uma questão de ética. Esse tipo de frase me causava certo espanto: que ética, afinal de contas? Se está falando a ética de jamais colaborar com a Justiça, jamais confessar a prática de crimes?

Talvez, e talvez a operação “lava jato” seja aí um fator que possa contribuir com uma mudança, quem sabe esse instituto logre com o tempo de uma maior aceitação cultural na nossa prática jurídica.

Lenio Streck
Eu indicaria aqui os principais problemas da colaboração premiada, porque nem é preciso dizer muito sobre isso. São seis pontos:

1º) a delação premiada pode servir como mecanismo de pressão sobre o delator, pois esse tipo de ato viola o direito constitucional do cidadão de não ser obrigado a fazer prova contra si mesmo;

2º) a colaboração premiada vem servindo como instrumento para decisões consequencialistas. Isto é, com a finalidade de combater a criminalidade, justifica-se a flexibilização de garantias processuais;

3º) a colaboração premiada pode flexibilizar o caráter de indisponibilidade da ação penal, permitindo-se que o Estado negocie o seu papel de interdição e aplicação da lei penal;

4º) a supressão do processo judicial e suas garantias pela aceleração procedimental dos espaços de consenso são fatores utilitaristas, consequencialistas. Permitir que o órgão acusatório negocie a pena com o cidadão investigado pode violar o pressuposto fundamental da jurisdição, pois a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional;

5º) ainda que o artigo 4º da Lei 12.850/13 [sobre organizações criminosas] permita o perdão judicial ou a redução da pena em até dois terços ou a substituição por restritiva de direitos, não há uma criteriologia para estabelecer precisamente qual o prêmio do delator, conforme bem denuncia [o professor] Aury Lopes Jr;

6º) não se sabe se o imputado tem direito ao acordo com o Poder Público ou se é um mero poder discricionário — de novo, o problema dos limites e dos critérios.

Spacca
Fantasmas do passado, presente e futuro podem estimular delatores, afirma Moro

Sergio Moro
Normalmente é impossível saber a motivação exata do criminoso que resolve colaborar, mas normalmente são três motivos. Eu faço um comparativo com aquele conto de Natal do Charles Dickens: ou é o fantasma dos Natais passados — um arrependimento sincero, embora seja um fenômeno raro —; ou o fantasma do Natal presente — o fato de sofrer restrição de seus direitos, como uma prisão cautelar — ou eventualmente o fantasma dos Natais futuros — a perspectiva de uma condenação e uma prisão futura.

Normalmente essas colaborações vêm porque o acusado, assistido por seus defensores, percebe que isso é mais vantajoso para ele, independentemente de estar submetido naquele momento específico a uma medida restritiva de direitos. Embora por vezes argumente-se que a prisão cautelar [na “lava jato”] estaria sendo utilizada com esse objetivo, a grande maioria dos acordos de colaboração foram firmados com pessoas em liberdade.

A colaboração premiada é um meio de investigação importante, é uma forma através da qual o Estado, a Justiça, a polícia e o Ministério Público conseguem penetrar nessa redoma de segredo que muitas vezes cerca a criminalidade complexa, a criminalidade organizada. Mas, para além disso, a colaboração premiada é um meio de defesa, acima de tudo quem escolhe se tornar um colaborador é o acusado assistido pelo seu defensor. Não vejo como pode ser condenado moralmente o emprego de uma estratégia de defesa dessa espécie.

É claro que os delatados, os antigos companheiros criminosos, têm razão de reclamar quando um dos seus pares resolve entregá-los para receber um benefício, mas não me parece que esse sentimento, que esse juízo de reprovação, deve ser estendido à sociedade ou à Justiça criminal.

O pânico normalmente que cerca a colaboração premiada é de um delator eventualmente incriminar um inocente. Isso pode acontecer, não é pelo fato de o criminoso resolver colaborar que tudo o que ele diz é a pura verdade, mas para isso o remédio cabível já está presente na Lei 12.850 [sobre organizações criminosas] e igualmente dentro da prática judiciária. Tudo o que o criminoso colaborador relatar precisa ser objeto de investigação própria.

Apesar da ainda resistência retórica de parte da advocacia em relação à colaboração premiada, vários escritórios, inclusive renomados, passaram a admitir a prática desse instituto. A meu ver isso não merece nenhum juízo de reprovação: é bom para a Justiça, porque os casos são resolvidos de uma maneira mais expedita, diminuindo o risco de condenação de inocentes; é bom para o Ministério Público; é bom para a polícia, porque facilita o trabalho de investigação e depois execução; é bom para o acusado e sua defesa, que recebem um prêmio por aquela colaboração, e é bom para a sociedade.

RUMOS DO DIREITO
Lenio Streck

O professor Joaquim Falcão escreveu um texto apontando efetivamente um novo Direito no Brasil. Trata-se de uma mudança geracional na magistratura, no Ministério Público, na Polícia Federal: “Juízes, procuradores, delegados são mais jovens. Fizeram concurso mais cedo. Vivem na liberdade de imprensa, na decadência dos partidos e na indignante apropriação privada dos bens públicos. E não têm passado a proteger ou a temer. Dão mais prioridade aos fatos que às doutrinas. Mais pragmatismo e menos bacharelismo. Mais a evidência dos autos —documentos, e-mails, planilhas, testemunhos, registros — do que a lições de manuais estrangeiros ou relacionamento de advogados com tribunais”. 

O problema, para mim cultural, é que essa nova geração, e a velha já fazia assim, continua acreditando no que chamo de PCJ, que é o privilégio cognitivo do juiz. A exemplo de mais de 90% dos juristas, a realidade só existe a partir de seu próprio imaginário.  O lema de Pindorama: primeiro decido, depois arrumo um fundamento. Isso é o quê? Nada mais, nada menos, do que o consequencialismo que venho denunciando.

De todo modo: é uma nova magistratura, um novo Ministério Público e uma nova Polícia Federal. O futuro dirá se tenho razão. E dirá se eles têm razão, uma vez que existe uma queixa na comunidade de jurídica de que a “lava jato” atropela garantias, com excesso de prisões e o uso da delação como instrumento de pressão.

Nessa mudança de imaginário, quero dizer ainda que a maior derrotada no mensalão foi a dogmática jurídica [doutrina]. E também está sendo a maior derrotada na “lava jato”.

Sergio Moro
[Acabou] O nosso método clássico de processo penal em que nós tínhamos os processos que nunca terminavam, nunca tinham consequência, como de casos criminais que chegavam à prescrição.

Se nós eventualmente não formos pensar na colaboração premiada como método válido para a resolução desses casos, eu conclamaria a necessidade de se discutir outras mudanças dentro do nosso sistema da Justiça criminal, porque o nosso sistema atual não está funcionando a contento.

Lenio Streck
O problema é que nós nos acostumamos no Brasil com o lema de que “o Direito é o que os tribunais dizem que é”. Nosso Direito Processual está jurisprudencializado, quer dizer, menos regras e mais jurisprudência. Se a comunidade jurídica brasileira acredita que pode fazer democracia no Processo Penal com a livre apreciação da prova por parte do juiz, sem o constrangimento epistemológico, sem os controles de uma criteriologia, ele não pode se queixar depois quando ocorre qualquer coisa com relação à apreciação de provas.

No Brasil, nós achamos muito bonito e fofinho quando o Judiciário, contra o Código Civil e a Constituição, reconhece metade da herança para a amante. Nós achamos fofíssimo e querido uma criança ter seis avós, três pais e duas mães, só não gostamos quando [a decisão] é contra nós. Queremos uma cidadania de segunda classe porque somos tutelados pelo pai Judiciário, pela mãe Ministério Público e pela tia Defensoria, a Santa Trindade. Em vez de reivindicar, corremos ao pai, a mãe e à tia, depois no queixamos. Nós gostamos do ativismo quando ele é bom, será que não erramos ao não conseguir fazer a distinção entre ativismo e judicialização?

Direito é o conceito interpretativo daquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram necessariamente respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional.

Às vezes os tribunais usam a exegese do século XIX e às vezes eles decidem sem qualquer pressuposto legal.

Em um país com um milhão de advogados e dezenas de carreiras jurídicas, para ganhar um Habeas Corpus do STF nós temos que torcer para que o writ seja não conhecido e seja concedido discricionariamente, como um favor, parece que fracassamos… Mensalão, “lava jato” e delação são apenas sintomas de algo bem maior, como o poeta mexicano Eraclio Zepeda diz: “Quando as águas da enchente descem e cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito começou a chover na serra. Nós é que não nos demos conta”.

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