Segunda leitura

Administração dos processos exige novas práticas do Judiciário

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

20 de setembro de 2015, 8h02

Spacca
O Poder Judiciário tem na base as varas, cada uma com um juiz, e nas instâncias superiores tribunais, que julgam de forma colegiada. Essa estrutura vem do Brasil colonial e continua sendo mantida, muito embora a mudança da sociedade seja radical e o avanço da tecnologia uma realidade que não seria sequer imaginada há 40 anos passados.

As varas têm um juiz (excepcionalmente, dois), um diretor (ou escrivão), servidores e oficiais de Justiça. Essa é a regra geral, muito embora em algumas unidades os oficiais de Justiça trabalhem fora do cartório ou secretaria, em uma unidade denominada “Central de Mandados”.

Na realidade forense, cada vara tem regras próprias. Em um prédio com 20 Varas Cíveis, se encontrarão 20 procedimentos diferentes. Por exemplo, em uma, o estagiário pode retirar processos (físicos) para extrair cópias; na outra, só mediante autorização do advogado; em uma terceira, só deixando um documento. As varas amoldam-se à figura do juiz ou do diretor e não há corregedoria que consiga alterar as práticas individuais. Mesmo sedo pequenas, complicam a vida dos envolvidos e prejudicam a eficiência dos serviços.

Para combater essas divergências e também para otimizar os serviços, a Justiça Estadual do Ceará, seguindo iniciativa do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul,  implantou secretaria única para as Varas da Fazenda Pública. A iniciativa nem sempre agrada os envolvidos, pois, de certa forma, é uma perda de controle, de poder. Todavia, é caminho sem volta. Não tem cabimento existirem práticas divergentes e, menos ainda, que haja servidores ociosos em uma e assoberbados em outra.

De alguns anos para cá as ações deixaram de ser apenas individuais, tornando-se também coletivas. Ou então são individuais, porém a tese em discussão leva à Justiça 10.000 ou 20.000 autores. Não há lugar no mundo que suporte essa demanda excessiva. Muitas dessas teses, que na sua grande maioria envolvem direitos do consumidor, poderiam ser resolvidas por agências reguladoras, inclusive com um grau de conhecimento técnico altamente especializado (a Anatel, por exemplo). Mas isto de nada adiantará se a parte, depois, ingressar no Judiciário.

Assim, só resta uma solução: das decisões das agências caber recurso de apelação diretamente para o tribunal judicial de segunda instância competente. É verdade que a Constituição proíbe qualquer vedação de acesso ao Judiciário (CF, art. 5º, XXXV), mas, no caso, o acesso não está sendo negado, apenas realinhado.

Outro aspecto a merecer reexame é o princípio do juiz natural. Ele tem o louvável objetivo de evitar que se possa escolher ou retirar um juiz de determinada ação. Perfeito. No entanto, não pode ser colocado em um sacrossanto altar, de onde prevalecerá incondicionalmente, sem admitir sequer discussão, com a eficiência da Justiça, que é mandamento constitucional (CF, art. 5º, LXXVIII e 37). Vejamos um exemplo.

No sul dos Estados Unidos, em 24 de abril de 2010, ocorreu um desastre ambiental  em plataforma de perfuração de petróleo no Golfo do México, resultando um vazamento estimado em 4,9 milhões de barris de petróleo durante 87 dias. Seus efeitos estenderam-se por diversos estados e chegaram ao México, com prejuízos ambientais e econômicos gigantescos.

Como não podia deixar de ser, milhares de ações judiciais foram propostas na Justiça Federal e Estadual, sob os mais diversos fundamentos. Pois bem, para que pudessem ter efetividade, foram reunidas pelo Judicial Panelon Multidistrict Litigation – JPML em dois processos, um na Justiça Federal de Houston, Texas, e o outro na Justiça Federal de Nova Orleans. Em comentários ao segundo caso, observamos que ao juiz a quem se deu competência foi dada exclusividade de tempo, recursos ilimitados, servidores, um juiz auxiliar e possibilidade de contratar peritos para dar solução aos múltiplos conflitos (Freitas, V.P. e Machado, A., “Tratamento Jurídico dado ao vazamento de petróleo no Golfo do México. Estudo de caso e análise comparativa com o Direito brasileiro”, Rev. Direito Ambiental, RT, v. 78, 2015, p. 393).

Dá para imaginar solução diferente? Milhares de ações individuais em varas despreparadas para recebê-las? Conflitos de competência? Agravos? Perícias conflitantes? Decisões contraditórias? Não, por certo.

A prova pericial também merece reanálise. No nosso sistema processual civil o juiz nomeia um perito da sua confiança e as partes indicam assistente técnico. Perfeito, para casos individuais. Mas, que fazer quando as ações são assemelhadas e em grande quantidade? Por exemplo, as propostas contra o INSS. Nesses casos, evidentemente, é preciso ação uniformizada, não só porque será mais eficiente, mas também para que situações iguais não sejam tratadas de maneira distinta. Uma central de perícias, coordenada por um magistrado, poderá ser criada para tal fim. Assim se faz nos Juizados Federais Especiais de Curitiba.

Bens apreendidos são um dos maiores problemas do Judiciário brasileiro. No passado, máquinas de emitir moeda falsa, espingardas “pica-pau”, facões e outros ficavam trancados em uma sala do fórum, aguardando o término da ação penal.  Atualmente, os bens são outros. Armas de uso exclusivo das Forças Armadas, automóveis, barcos, explosivos, aviões usados para o tráfico de entorpecentes, tartarugas e outros tantos.

Nessa nova realidade, juízes, envolvidos com processos cada vez mais complexos, não têm tempo de administrar o destino dos bens apreendidos. Só nos processos da operação “lava jato”, o juiz Sergio Moro administra bens bloqueados que valem R$ 1,5 bilhão (Folha de S.Paulo, 14.9.2015, A7).

O CNJ editou um manual, orientando os magistrados a darem destino a tais bens, inclusive antecipando leilões. Mas não é algo simples. Fácil é ver que não é tarefa para um juiz em cada vara, mas sim para uma ação centralizada, especializada, preparada para enfrentar os sucessivos obstáculos. É o que se fez na Justiça Federal em São Paulo, onde foi criada a “Central de hastas públicas unificadas”, onde são realizados leilões de bens penhorados em processos em fase de execução e os confiscados em processos criminais. Mais racionalidade, melhores resultados.

A migração campo-cidade inchou as capitais e seus entornos, com municípios que se expandem e onde os serviços públicos costumam ser deficientes. Pensar em comarcas da forma tradicional, em soluções demarcadas por divisas municipais, não atende mais à realidade. Assim, muito embora o CPC contenha alguns avanços, como a possibilidade de o oficial de Justiça realizar diligência em local limítrofe, o certo é que é preciso ir além. Varas com competência regional ou estadual precisam ser implementadas, dando-se maior efetividade e evitando-se decisões conflitantes. O TJ-PR transformou comarcas, como Curitiba e Maringá, em comarca de região metropolitana.

Algumas matérias exigem conhecimentos altamente especializados. É o caso das ações ambientais, que desafiam os estudiosos do Direito e obrigam os profissionais a trilhar matérias interdisciplinares. Nesse e em outros exemplos, tribunais podem criar departamentos para assessorar os juízes e servidores. Três servidores (por exemplo, um bacharel em Direito, um engenheiro e um químico), sob a coordenação de um juiz, podem dar apoio aos juízes do estado ou região, fornecendo subsídios técnicos, indicando peritos, fornecendo jurisprudência atualizada e outras soluções. Essa proposta foi feita dia 11 passado pelo juiz federal Marcelo Cardoso da Silva, no curso “Direito Ambiental e Sustentabilidade”, promovido pela Escola da Magistratura do TRF-4, em Foz do Iguaçu.

No novelo administrativo e processual que mina as estruturas judiciais, as execuções ficais ocupam lugar de honra. Sem dúvida elas são o ápice do caos, contendo milhares de processos e com resultados pífios na cobrança dos débitos fiscais. Simplesmente é impossível controlar-se uma vara com 20.000 processos e inimaginável administrar outra com 200.000. A solução não é simples, como bem expôs o juiz federal Renato Becho, propondo medidas para agilização das cobranças (“Desjudicialização da execução fiscal só mudará o tipo de processo”, Consultor Jurídico, 9.11.2014). No entanto, no ponto a que se chegou, a solução tem que ser radical: as execuções tramitarem no órgão administrativo de origem e, se embargadas, serem encaminhadas ao Juízo competente.

E, para terminar, registra-se que, apesar da crise econômica que se desenrola às nossas vistas, parece que pouco se faz para combater os gastos. Por exemplo, grandes aeroportos possuem dois Juizados Especiais, um federal e outro estadual. Será tão difícil ocuparem o mesmo espaço a um preço inferior? Dividirem o plantão, utilizando menos funcionários? E o Ministério Público Federal, nas capitais que possuem TRF, precisam de dois prédios, um para a Procuradoria e outro para a Procuradoria Regional, multiplicando as despesas?

Bem, aí estão algumas observações em uma busca de racionalidade e eficiência, pois, segundo dados do CNJ, 71,2 milhões de processos aguardavam julgamento ao final de 2014. Se nos orgulhamos ao dizer que somos um povo criativo, poderíamos duplicar o orgulho, afirmando que também sabemos tornar reais as nossas propostas.

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  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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