Opinião

Secretaria da Receita Federal cria fatos presuntivos de sonegação

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19 de setembro de 2015, 9h00

No último dia 27 de julho, foi disponibilizado, no site da Receita Federal, o Relatório Anual de Atividades de 2014. O documento fornece importantes informações a respeito de como pensa e, principalmente, como age o órgão.

Primeiramente, reproduzo os dados que considerei mais relevantes. São todos referentes ao ano de 2014: (i) a arrecadação foi de R$ 1,87 trilhão, o que significa queda de 1,79% em relação ao ano anterior; (ii) no Brasil, existia 17,9 milhões de empresas com CNPJ ativo, 174,8 milhões de inscrições no CPF regulares e foram entregues 26,9 milhões de declarações de Imposto de Renda de pessoas físicas; (iii) 9.500 das empresas, que representam 0,01% do total, foram responsáveis por 65% da arrecadação; (iv) foram feitos 365.832 procedimentos de fiscalização, sendo 16.989 auditorias externas e 348.843 revisões de declarações; (v) 92,22% das fiscalizações foram encerradas com resultado, ou seja, com o lançamento de crédito tributário; (vi) o corpo de servidores era composto de 10.935 auditores fiscais, 7.625 analistas tributários e 5.771 administrativos. 

Os dados denunciam, ainda que indiretamente, uma situação importante, que consiste na incapacidade de a Receita fiscalizar todos os contribuintes. Nota-se: se somarmos o número de empresas, mais o de declarações de pessoas físicas entregues e dividirmos pelo número de auditores e analistas, chegaremos à conclusão de que cada servidor teria a obrigação, em média, de fiscalizar aproximadamente 2.413 contribuintes. A situação, na verdade, é muito pior, por duas razões: primeiro, porque nem todos os auditores e analistas têm função de fiscalizar; segundo, porque o cálculo foi feito como se existisse apenas um único tributo, o que, todos sabemos, está muito longe de ser a realidade (II, IE, IR, IPI, IOF e ITR, além do universo das contribuições). 

Embora não esteja dito de forma expressa no relatório, a Receita procura mitigar os efeitos da incapacidade acima descrita por dois caminhos, principalmente. Primeiro, pela tecnologia da informação, que diminui o trabalho humano, pois proporciona o cruzamento de dados, que aumentam em qualidade e em quantidade na mesma proporção que cresce o número de obrigações acessórias que devem ser cumpridas pelos contribuintes. Segundo, pela atuação mais efetiva nos grandes contribuintes. O raciocínio é simples: se é impossível fiscalizar e cobrar de todos, revela-se, do ponto de vista prático, mais eficiente direcionar esforços em proporção maior para aqueles contribuintes que possuem “maior capacidade contributiva”. No relatório, aliás, está dito (página 35): “Maiores contribuintes têm fiscalização diferenciada”. 

Ninguém discute que os contribuintes abastados devem contribuir mais com os cofres públicos. No entanto, a contribuição deve ser maior em razão e na proporção da maior capacidade contributiva, e não por conta da menor capacidade de fiscalização da Receita. Essa afirmação suscita as seguintes perguntas: (i) A não arrecadação da parcela dos contribuintes “não tão bem fiscalizados” não acaba por implicar no aumento da tributação em geral e em mais fiscalização sobre “os mais bem fiscalizados”? (ii) Essa forma de compensação é boa ou ruim para o desenvolvimento do país? (iii) É melhor apertar o cerco do planejamento tributário ou simplificar o sistema e criar outros mecanismos para a melhor fiscalização de todos?

A incapacidade material de fiscalizar de perto todos os contribuintes e o uso da tecnologia da informação provocaram uma mudança na forma de atuação da Receita. Essa constatação pode ser extraída da página 46 do relatório, onde está registrado que “as auditorias são direcionadas apenas para os contribuintes que efetivamente apresentam indícios de irregularidades”. O que se pode constatar a partir da afirmação é que as auditorias externas, em rigor, se tornaram procedimentos para verificar e confirmar as suspeitas suscitadas pelos sistemas de cruzamento de informações. Ser fiscalizado, portanto, não pode mais ser considerado uma questão de sorte ou azar. A tecnologia da informação trabalha com dados objetivos, e esses revelam suspeitas de sonegação, de acordo com índices e critérios fixados pela administração tributária. 

Na composição da hipótese de incidência da norma tributária, o legislador, conforme lição de Alfredo A. Becker, escolhe “fatos-signos presuntivos” de riqueza, que serão o alvo da tributação. São índices de capacidade contributiva que justificam a tributação. É possível fazer uma analogia com essa ideia com o atualmodus operandi da Receita, que cria fatos-signos presuntivos de sonegação, que são revelados pelos índices e inconsistências apontados pelo sistema de cruzamento de dados, que justificam e disparam as fiscalizações. Há, no entanto, uma diferença entre o fato-signo que compõe a norma jurídica tributária e o que faz parte do sistema da Receita. É que o primeiro não admite prova em contrário, e o segundo, pelo menos por enquanto, ainda admite.

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