Olhar Econômico

A preocupação com a concorrência surgiu no direito interno

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

17 de setembro de 2015, 8h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]O direito concorrencial é um ramo jurídico relativamente novo e seu aparecimento e desenvolvimento no âmbito do direito interno dos Estados abriga explicações sobre o porquê e o como ele é aplicado nos quatro cantos do globo.

Preocupações de natureza concorrencial existem desde a Antiguidade. Entretanto o aparecimento do direito antitruste ocorreu na segunda metade do século XIX, nos Estados Unidos da América, por força do enorme incremento econômico ocorrido graças à ocupação do Oeste, à imigração europeia e ao fato de alguns terem passado a concentrar enormes capitais e recursos e utilizarem expedientes como dumping, ameaças e sabotagens contra seus concorrentes. Se durante os anos 1870-1890 havia total liberação econômica, os anos seguintes foram de contenção e regulamentação, dando origem à formulação de regras de direito concorrencial.

Embora credite-se ao Canadá o pioneirismo no estabelecimento de legislação concorrencial, graças ao Act for the Prevention and Suppression of Combinations Formed in Restraint of Trade, de 1889, coube aos Estados Unidos da América, com seu Sherman Act, de 1890, tornar ilegais todo contrato, combinações na forma de truste ou similar, ou conspiração, para restrição de comércio e monopolização. Esse mesmo país delinearia o direito antitruste e influenciaria não somente a Europa, quanto todo o mundo, a ponto de hoje, quase 100 países, possuírem seu próprio direito interno concorrencial, com inspiração maior ou menor do antitruste norte-americano.

Além do Sherman Act, devem ser mencionados como grandes marcos legais norte-americanos:

  • O Clayton Act (1914), cujo papel foi relevante na regulação da fixação de preços, negociações casadas e exclusivas, assim como na proibição de aquisição de ações de empresas concorrentes, se tal conduzisse para diminuir a competição ou para criar monopólio;
  • O Robinson-Patman Act (1936), reforçou os dispositivos de fixação de preço do Clayton Act.
  • O Celler-Kefauver Act (1950) que incrementou o controle de fusões, banindo a consolidação de bens e estoques, que possibilitavam dominação e permitiam ao governo atacar integrações horizontais e verticais.
  • O Antitrust Improvements Act de 1976, que obrigou as empresas a notificarem fusões e a apresentarem dados para o exame do respectivo impacto.
  • As Diretrizes para fusões horizontais, de 1992, que foram atualizadas cinco anos após
  •  A partir de 2002, foi implementada a Comissão de Modernização Antitruste, composta por membros nomeados pelo Presidente e pela Câmara dos Deputados, com objetivo de estudar a necessidade de modernização de legislação antitruste; solicitar interpretações relacionadas às operacionalidades dessa legislação, promover a elaboração de artigos, relatórios e pareceres para o Congresso e para o Poder Executivo.

No que tange às instituições, já em 1914, o Congresso editou o Federal Trade Commission Act, criando a agência do mesmo nome, encarregada de colocar em prática o direito concorrencial, com a principal missão de investigar práticas de concorrência desleal, emitir ordens de cessação, além de policiar práticas de concorrência enganosa. O Wheeler-Lea Act aumentou os poderes do FTC Act, possibilitando-lhe agir contra métodos desleais detrimentais aos consumidores ou que prejudicassem empresas rivais.

Não se pode esquecer a importância dos Guidelines. A Edição de 2010, do Horizontal Merger Guidelines, define diretrizes sobre as principais práticas, técnicas e políticas em fusões e aquisições envolvendo potenciais competidores sujeitos à lei anti-truste norte-americana.

A divisão Antitruste do Departamento de Justiça, (DOJ) é primeiramente responsável pela implementação da legislação antitruste norte-americana. Inobstante as competências do FTC e do DOJ não se imbriquem completamente, elas são concorrentes nas principais áreas concorrenciais. A Divisão Antitruste do DOJ é parte do Executivo e funciona da mesma maneira que a maior parte das agências do país, enquanto que o FTC detém funções executivas, legislativas e judiciais.

A busca contínua da eficiência econômica em uma economia de mercado e o fato de a concorrência ter sido eleita como o melhor mecanismo para governar a economia, produziu a convergência do direito e da economia no sistema antitruste norte-americano, sem paralelo para o controle público de empresas.

À medida que as finalidades de otimizar a eficiência e proteger o processo competitivo evoluíram ao longo dos anos, o pensamento sobre quem seriam os beneficiários finais desses objetivos também mudaram. Inicialmente a preocupação era proteger a pequena empresa. Passou a ser o bem-estar do consumidor e da sociedade. Até que proteger a “concorrência e não os concorrentes” tornou-se o dogma principal da política de concorrência. A evolução dos objetivos-chave da concorrência nos Estados Unidos permaneceram consistentes com a eliminação dos efeitos anticompetitivos da colusão, monopolizações, práticas exclusionárias e fusões. Devido aos objetivos cambiantes de natureza econômica, política e social, a interpretação de como aplicar tais leis tem sofrido variações com o passar do tempo.

No processo de proteger a concorrência, o direito antitruste norte-americano continua a focar particularmente os cartéis e a monopolização ilegal, passível de acarretar grande risco à eficiente alocação de recursos. Preocupação com condutas tais como fusões, recusa de negociar, manutenção e conduta predatória surge quando há risco real de criar cartel ou monopólio.

O direito concorrencial norte-americano inspirou e continua a inspirar, em maior ou menor grau, todos os demais direitos internos antitruste dos países.

Somente no século XX, a concorrência passou a integrar as preocupações dos países europeus, como reação aos monopólios e concentrações. Entretanto, até recentemente, a maior parte dos países da Europa Ocidental não possuíam políticas concorrenciais, exceto a Alemanha e Reino Unido, e em menor grau, a França. A cultura e a legislação da concorrência no continente europeu foi incentivada com a integração europeia, iniciada em meados do séc. passado, com os tratados de 1951 e de 1957. Com o esfacelamento da URSS, na década de oitenta do século XX, e com a necessidade de se criar estruturas de crescimento sustentável para suas economias, houve preocupações de estabilização monetária, liberalização do comércio e de preços, abertura de mercado para investimentos estrangeiros, privatização, bem como com práticas concorrenciais. No Pacto de Estabilidade para o Europa Centro-Oriental, que previu assistência técnica e financeira para reformas políticas e econômicas, foram incluídas, como não poderia deixar de ser, política e legislação de concorrência. Apesar do esforço contínuo da União Europeia ainda há nessa região da Europa setores econômicos-chave sob monopólio legais, como o de transportes e comunicações; setores sob monopólios naturais, mesmo sem suporte legal, como partes do setor financeiro; setores com comportamento controlado, do tipo controle de preço e regulação de produto.

Na atualidade, a União Europeia vem tendo papel propulsor da concorrência na Europa e no Mundo, quer entre os seus membros, quer entre seus Estados ou grupo-econômicos parceiros. E, 2014, a Comunidade implementou um processo de enforcement modernizado da concorrência: foi removido o monopólio da Comissão em decisões sobre isenções, tornando mais práticas a aplicação da lei por meio de instituições e processos nacionais. Todos os Estados membros já dispõe de leis de competição e de agências antitruste, o que vem permitindo maior cooperação e convergência entre a Comissão e os Estados membros. Os problemas que persistem são resolvidos por nova regulação que procurou resolver problemas de coexistência e supremacia.

Por largo tempo, apenas os Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha e França haviam criado, em seu ordenamento jurídico interno, regras de direito concorrencial. Em poucas décadas, muito outros países, entre os quais o Brasil, legislaram internamente sobre esse direito, a ponto de, hoje, cerca de metade dos Estados possuírem não somente leis de direito antitruste, como autoridades específicas para essa matéria.

É importante lembrar que há pressupostos para o funcionamento do direito concorrencial. Tal direito somente funciona em Estados que possuam economia de certo porte e aberta ao comércio internacional, além de ter moeda estável. Como dentre os cerca de duzentos países existentes, boa parte não apresenta essas características, havendo mesmo Estados tidos como inviáveis economicamente, percebe-se que o número de Estados dotados de direito antitruste é apreciável. Recorde-se que as leis concorrenciais internas dos Estados são aplicáveis quando, tanto as partes, quanto a abrangência da questão antitruste que se quer regular cingem-se ao território do respectivo Estado, pois, como sabemos a aplicação extraterritorial da lei concorrencial é exceção[1].

Examinando-se as decisões das autoridades concorrenciais internas dos países, nota-se, recorrentemente, menção à decisões norte-americanas e, em menor grau, a precedentes de países europeus, como parâmetro para decidir. O Cade não é imune a tal tendência. A primeira vista, pode parecer impróprio apoiar-se em jurisprudência estrangeira para resolver questão de direito nacional. As origens e o desenvolvimento do direito antitruste, entretanto, explicam e justificam essa particularidade.


1 Ver: Rodas, João Grandino, Aplicação extraterritorial da lei antitruste pode gerar reações, Revista Conjur, 10 de setembro de 2015. 

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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