Direito Civil Atual

Conheça a tomada de decisão apoiada,
novo regime alternativo à curatela

Autor

  • Maurício Requião

    é doutor em Direito pela UFBA professor da UFBA e Faculdade Baiana de Direito e líder do grupo de pesquisa "Autonomia e Direito Civil contemporâneo".

14 de setembro de 2015, 8h01

É com prazer que venho novamente falar aos leitores da coluna Direito Civil Atual, vinculada à Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Conforme prometido, retorno para fazer abordagem sobre outra inovação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015).

Aproveito também a abertura desta coluna para agradecer ao mais do que qualificado diálogo com meu texto prévio, empreendido pelo professor Atalá Correia. Destaco a iniciativa, pois acredito que a troca de ideias é caminho necessário para o crescimento da doutrina e, nessa perspectiva, prossigo.

Como corretamente pontuado pelo colega, diversas são as inovações e dúvidas que surgem com o Estatuto. Desta vez, buscarei lançar algumas considerações sobre uma das inovações, que é a criação da tomada de decisão apoiada, até então inédita no ordenamento jurídico brasileiro.

Conforme abordado na coluna anterior, os deficientes, no que se incluem os portadores de transtorno mental, deixaram de ser considerados incapazes, por força de modificação nos artigos 3º e 4º do Código Civil. Isto não significa, por outro lado, impedimento para que, em casos concretos, verificada a necessidade fática de um portador de transtorno mental de auxílio para o exercício da sua capacidade, sejam adotadas medidas protetivas. Nesse rol, inclui-se a já conhecida curatela (embora guiada por nova ótica), como também a tomada de decisão apoiada, alvo de análise desta coluna.

Por determinação do artigo 116 do estatuto, insere-se no Código Civil, através do recém-criado artigo 1783-A, novo modelo alternativo ao da curatela, que é o da tomada de decisão apoiada. Em verdade, por determinação do artigo 115 do estatuto, o próprio “Título IV”, do Livro de Direito de Família, tem sua redação modificada, passando a se chamar “Da tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada”.

Neste novo sistema da tomada de decisão apoiada, por iniciativa da pessoa com deficiência são nomeadas pelo menos duas pessoas idôneas "com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade." Note-se que a tomada de decisão apoiada não se relaciona, necessariamente, com o portador de transtorno mental, podendo ser requerida por qualquer sujeito classificável como deficiente nos termos do Estatuto[1].

Privilegia-se, assim, o espaço de escolha do portador de transtorno mental, que pode constituir em torno de si uma rede de sujeitos baseada na confiança que neles tem, para lhe auxiliar nos atos da vida. Justamente o oposto do que podia antes acontecer (e, formalmente, ainda pode!), em algumas situações de curatela fixadas à revelia e contra os interesses do portador de transtornos mentais.

A adoção de medidas diferentes da curatela é algo que pode ser encontrado na experiência estrangeira. Apresentam-se ora através da criação de novos modelos que excluem a curatela do sistema, como no caso da austríaca Sachwalterschaft e da alemã Betreuung; ora com a criação de modelos alternativos que não excluem a curatela do sistema mas esperam provocar o seu desuso, como se deu com a criação do “administrador” belga e da figura do amministrazione di sostegno italiana; e por vezes simplesmente como figura que conviverá com a curatela, como na sauvegarde de justice francesa[2]. No caso brasileiro optou-se pela convivência entre a curatela e o novo regime, servindo inclusive as disposições gerais daquela para este, nos termos do artigo 1783-A, §11. Se na realidade brasileira a tomada de decisão apoiada levará ao desuso da curatela, é algo que somente o tempo dirá.

Trata-se de regime que, à semelhança da curatela, se constituirá também pela via judicial. O juiz, antes de decidir, deverá ouvir não apenas o requerente, como também os apoiadores, o Ministério Público e equipe multidisciplinar (artigo 1783-A, §3°). Note-se que a tomada de decisão apoiada é medida cuja legitimidade ativa cabe somente ao sujeito que dela fará uso (artigo 1783-A, §2°), o que reforça o papel da autonomia do portador de transtorno mental. Possuirá apoiadores não porque lhe foram designados, mas porque assim o quis.

Este respeito à autonomia do apoiado prossegue presente no próprio termo em que se faz o pedido do estabelecimento de tomada de decisão apoiada. Em tal termo, firmado pelo apoiado e pelos apoiadores, é necessário que “constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar” (artigo 1783-A, §1°).

Destaque-se, portanto, que a tomada de decisão apoiada poderá ser diferente para cada sujeito, já que o termo que for apresentado é que especificará os limites do apoio. Um questionamento que pode surgir no que toca ao “prazo de vigência do acordo” é se pode ele ser indeterminado. Paula Távora Vítor, analisando na legislação europeia medidas que seguem a mesma lógica da tomada de decisão apoiada, afirma que a determinação mais comum nelas é pelos prazos determinados, embora, na prática, haja tendência em perpetuá-las[3].

Trata-se, sem dúvida, de questão delicada. Assim é que, por exemplo, por um lado, o Código Civil italiano diz que pode a amministrazione di sostegno ser por tempo indeterminado[4], ao passo que o Código Civil francês determina que a medida de sauvegarde de justice não pode ser determinada por período superior a um ano, renovável uma vez[5].

Dúvida que pode surgir também é se o sujeito, ao requerer a tomada de decisão apoiada, tem a sua capacidade afetada de alguma forma. Os regimes estrangeiros acima apontados respondem de forma diferente[6], o que indica que a limitação ou não da capacidade em tais circunstâncias não se trata de decorrência lógica, mas sim de escolha legislativa. No caso brasileiro a tomada de decisão apoiada parece não implicar em perda da capacidade do sujeito que a requer, mas sim em caminho que oferece reforço à validade de negócios por ele realizados.

É que, em se tratando de negócio realizado com base e nos limites do acordo da tomada de decisão apoiada, não haverá brecha para invalidação do mesmo por questões relativas à capacidade do sujeito apoiado (artigo 1783-A, §4°). Em busca de maior segurança pode, inclusive, o terceiro com quem se negocia solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando a sua função em relação ao apoiado (artigo 1783-A, §5°).

A lei determina que, em se tratando de negócio jurídico “que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão” (artigo 1783-A, §6°). Note-se que a necessidade da presença do juiz para decidir a controvérsia se dá somente diante de casos em que a realização do negócio possa trazer risco ou prejuízo relevante. E quando se tratar de divergência em negócio de menor monta, o que ocorre?

A resposta a tal questão encontra-se implícita no próprio texto da lei, seja pela leitura do citado parágrafo, seja levando em conta interpretação sistemática do próprio Estatuto. Se há a especificação que o juiz somente atuará, proferindo a decisão final sobre a controvérsia nos casos em que o negócio pode trazer  risco ou prejuízo relevante para o apoiado, é porque, nos demais casos, prevalecerá a escolha do apoiado em detrimento das manifestações dos apoiadores.

No caso supracitado deve-se dar privilégio à autonomia do apoiado, até porque, não se perca de vista, a tomada de decisão apoiada só se constituiu a partir de interesse seu. Entretanto, acredita-se que em caso de divergências entre o apoiado e o apoiador, seja útil a este buscar registrar a sua opinião contrária ao negócio realizado, para que no futuro não possa de alguma maneira vir a ser acusado de negligência na sua atuação.

Também aqui, assim como na curatela, se buscou destacar que o papel do apoiador deve ser positivo ao sujeito que ele apoia, sendo aquele destituído a partir de denúncia fundada feita por qualquer pessoa ao Ministério Público ou ao juiz, caso haja o apoiador com negligência ou exerça pressão indevida sobre o sujeito que apoia (artigo 1783-A, §7°). Essa destituição implicará na necessidade de ser ouvida a pessoa apoiada quanto ao seu interesse em que seja, ou não, nomeado novo apoiador (artigo 1783-A, §8°).

Embora a lei não especifique, acredita-se que, como há determinação legal da existência de dois apoiadores, se um deles for destituído e o apoiado não quiser a nomeação de novo apoiador, se dará a extinção da situação de tomada de decisão apoiada. Extinção esta que, aliás, pode se dar também a qualquer tempo a partir de pedido do apoiado (artigo 1783-A, §9). Trata-se de direito potestativo do apoiado, de modo que não cabe ao juiz denegar tal pedido.

É possível também que algum dos apoiadores não queira mais participar do processo de tomada de decisão apoiada, o que será deferido também a partir de autorização judicial (artigo 1783-A, §10). Esta saída do apoiador, embora também não haja determinação legal expressa, não implicará automaticamente no fim do processo de tomada de decisão apoiada. Deverá ser o apoiado instado a indicar novo apoiador e, somente se não o quiser, haverá a extinção do processo.

As situações abordadas nos dois últimos parágrafos só reforçam os aspectos da voluntariedade e da confiança que envolvem a tomada de decisão apoiada. Dá-se, no que toca à confiança como elemento basilar, configuração similar àquela encontrada, por exemplo, no mandato.

Conclui-se esta coluna com a afirmação de que este novo sistema inserido no ordenamento jurídico brasileiro chega antenado com a necessidade de garantia da autonomia do portador de transtorno mental. O êxito deste propósito, entretanto, dependerá num primeiro momento da adesão à sua prática, no que os advogados possuem papel fundamental em instruir os possíveis sujeitos interessados na existência do novo modelo.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] Segue, portanto, neste quesito, lógica similar à da amministrazione di sostegno italiana, que, nos termos do artigo 404 do Código Civil da citada nação, pode ser requerida por “la persona che, per effeto di una infermità ovvero di una menomazione fisica o psichica, si trova nella impossibilità, anche parziale o temporanea, di provvedere ai propri interessi (…)”.
[2] VÍTOR, Paula Távora. A administração do património das pessoas com capacidade diminuída. Coimbra: Coimbra, 2008, p.175-176.
[3] Ibidem, p.202.
[4] Assim, a redação do seu artigo 405, V, 2: “[V]. Il decreto di nomina dell’amministratore di sostegno deve contenere l’indicazione: (…) 2. della durata dell’incarico, che può essere anche a tempo indeterminato”.
[5] Na letra da primeira parte do artigo 439, do Código Civil francês: “Artigo 439. Sous peine de caducité, la mesure de sauvagarde de justice ne peut excéder un an, renouvelable une fois dan les condition fixées au quatrième alinéa de l’article 442”.
[6] VÍTOR, op. cit. p.182-189.

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