Limite Penal

As decisões estão nas Condições Normais de Temperatura e Pressão Hermenêuticas?

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4 de setembro de 2015, 8h05

Spacca
A produção das informações relevantes, para efeito da decisão, é função dos “jogadores”, descabendo qualquer atribuição ao julgador. O regime da prova, dessa forma, não pode ser lido conforme as disposições lineares do Código de Processo Penal (artigo 155 e segts), mas de maneira constitucionalizada. O processo precisa ser entendido como o mecanismo apto à inserção da informação no campo da decisão judicial. É o regime pelo qual o Estado estipula quais as modalidades e a forma de produção da informação[1].

O resultado da produção válida de significantes será alinhado narrativamente pela decisão judicial, a qual não se assemelha, nem de longe, ao mito ultrapassado da verdade real. A verdade real é empulhação ideológica que serve para acalmar a consciência de acusadores e julgadores (Jacinto Coutinho). A ilusão da informação perfeita no processo penal recebe o nome de “verdade real”[2]. Para que se possa tomar a melhor decisão no processo penal, deveria ser possível obter-se toda a informação da conduta imputada. Entretanto, de regra, os jogadores (Ministério Público, querelante e defensores), além do julgador, que, por definição, é ignorante em relação à conduta — imparcialidade objetiva —, possuem tempo e normas processuais para obtenção da informação.

Daí que a informação no campo do processo penal adentra por meio da prova, cujo regime possui quatro momentos (requerimento, deferimento, produção e valoração). Em todos esses momentos, há possibilidade de perda (gaps). A testemunha pode não comparecer, morrer, a filmagem não funcionar, o laudo não ter sido feito etc., enfim, todas as possibilidades processuais atinentes à prova, por definição, impedem a informação perfeita[3]. Além disso o processo penal trabalha com a prova testemunhal a qual é extremamente falível e sugestionável (falsas memórias, sugestão)[4].

Contudo, para o fim ideológico de manutenção da crença na melhor qualidade na decisão penal, por herança do modelo inquisitório, ao julgador se atribui a função de gestor da prova em nome da “verdade verdadeira”. Para além do grau imaginário de se acreditar que processo penal possa por suas testemunhas, laudos, material probatório, reproduzir o passado (a conduta sempre se deu ontem…), o discurso filosófico e hermenêutico superou as verdades fundantes na metade do século passado. Sublinhe-se, também, que a aposta racional na prova processual desconsidera o que Rui Cunha Martins denomina de “ponto cego”: “Diz-se evidente o que dispensa a prova. Simulacro de autorreferencialidade, pretensão de uma justificação centrada em si mesmo, a evidência corresponde a uma satisfação demasiado rápida perante indicadores de mera plausibilidade. De alguma maneira, a evidência instara um desamor do contraditório”[5].

Há contingência inerente ao jogo processual dinâmico e de informação incompleta, o qual, mesmo ao final, não consegue promover a inserção de todas as informações[6].

Em cada subjogo probatório as coordenadas estratégicas precisam de revisão, até porque as finalidades probatórias estarão mais ou menos próximas da comprovação do julgador[7]. Mas o paradoxo é que o jogador não deveria saber de antemão, até o final do jogo, se o julgador está ou não psiquicamente convencido[8]. Para tanto, como se mostrou noutro lugar[9], há intrincada antecipação de sentido e apuração antecedente dos sentidos já dados pelos julgadores[10]. É preciso saber qual a tradição em que o julgador se insere, quais suas opções teóricas, ideológicas e trajetória individual[11]. Continuar acreditando em decisões universais é se abraçar com seres mitológicos e conceber que todos os julgadores decidiriam igualmente em qualquer situação. A decisão não acontece nas Condições Normais de Temperatura e Pressão Hermenêuticas (CNTPH) como imagina a doutrina. O julgamento em colegiado bem demonstra que diante de cada acervo probatório os resultados são diversos[12]. Os diversos fatores — Safiha, Halo, Glicose etc. — podem se fazer presentes no julgamento e alterar, pelo detalhe, a conclusão. Daí a importância de se entender o jogo do processo e o processo como jogo[13], compreendendo o lugar e a função de cada sujeito humano sentado nas respectivas cadeiras (acusação, defesa e julgador).


[1]RIBEIRO, Francisco Carlos. Hayek e a teoria da informação. São Paulo: Annablume, 2002.
[2]KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013, p. 361: Dizer que a verdade é contingencial significa abrir mão desse fim — a busca da verdade — e assumir outro horizonte, no qual o juiz deverá estar predisposto a absolver, por exigência da presunção de inocência: em outras palavras, o valor inocência deve ser estruturante e fundador do processo penal, inclusive no que se refere à missão e função do juiz, possibilitando dessa forma o rompimento com a epistemologia inquisitória orientada à persecução do inimigo.”
[3]GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 14: “Não existem, portanto, reencontros imediatos com o passado, como se este pudesse votar no seu frescor primeiro, como se a lembrança pudesse agarrar uma substância, mas há um processo meditativo e reflexivo, um cuidado de fidelidade teológica e/ou política a uma promessa de realização sempre ameaçada, pois passada no duplo sentido da vergangen (passado/desaparecido).”
[4]ÁVILA, Gustavo Noronha. Falsas Memórias e Sistema Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013; DIGESU, Cristina. Prova Penal e Falsas Memórias. Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2009; STEIN, Lílian M., et al. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010; PISA, Osnilda. Psicologia do testemunho: os riscos na inquirição de crianças. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, mestrado em Psicologia Social e da Personalidade, PUC-RS, Orientadora Lílian M. Stein. Porto Alegre, julho de 2006.
[5]MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 3.
[6]Pode-se dizer que num caso banal de furto, por exemplo, em que o acusado tenha sido encontrado com a coisa furtada, avistado pela vítima e policiais, além de filmado, não se teria dúvidas sobre a materialidade e autoria. Contudo, tal certeza (paranoica) já foi desfeita teoricamente desde Santo Agostinho. Quando se tem tanta certeza de algo, pode ser justamente nesse momento que o sujeito esteja sendo enganado. A fraude somente acontece no momento em que a vítima é enganada pelo ardil. Daí que cuidado com as aparências, como, aliás, é o discurso do flagrante.
[7]PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da Prova no Jogo Processual Penal. São Paulo: IBCCrim, 2007, p. 34: “Se memória é movimento, e o crime é memória, não se pode pensar em processo sem movimento”.
[8]LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Processo Penal no Limite. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
[9]MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015, p. 130-135.
[10]MELIM, Claudio. Ensaio sobre a cura do Direito: indícios de uma verdade jurídica possível. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
[11]MELCHIOR, Antônio Pedro. O juiz e a prova: o shintoma político do processo penal. Curitiba: Juruá, 2013; AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão. O Ato de Decisão Judicial: uma irracionalidade disfarçada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; KHALED JR, Salh H. Ambição de verdade no processo penal: desconstrução hermenêutica do mito da verdade real. Salvador: Podivm, 2009; DIVAN, Gabriel Antinolfi. Decisão Judicial nos Crimes Sexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
[12]Basta ver o julgamento realizado pelo STF no caso da A.P. 470, conhecida como “mensalão”, uma vez que sobre o mesmo acervo probatório alguns diziam haver crime e outros não. Alguém estava mentindo? De má-fé? Afastadas essas possibilidades, o sentido do subjogo probatório migra conforme a compreensão de cada um dos sujeitos.
[13]BECKER, L.A. Qual é o jogo do processo? Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2012.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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