Passado a Limpo

O papel dos cônsules na expedição de passaportes a estrangeiros

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

3 de setembro de 2015, 11h58

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Em 1924, a propósito de um questionamento do cônsul-geral do Brasil em Nova York, o ministro da Justiça encaminhou consulta ao consultor-geral da República a propósito de eventual prerrogativa de cônsules brasileiros confeccionarem e entregarem passaportes a estrangeiros. A resposta — concluiu-se pela possibilidade — revelava uma compreensão alargada e inteligente da atividade consular, ainda que de algum modo maculada por uma restrição que assinalava, odiosa, e hoje banida dos ordenamentos humanistas, no sentido de que não se permitia a entrada no Brasil de mutilados, aleijados, cegos, loucos, mendigos, portadores de moléstia incurável, ou de moléstia contagiosa grave. Segue o parecer:

“Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1924.

            Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores – Com o presente parecer, tenho a honra de devolver a Vossa Excelência o incluso processo, relativo ao Aviso do Ministério das Relações Exteriores, solicitando de Vossa Excelência informações sobre o procedimento que devem ter os nossos Cônsules em matéria de passaportes, pedidos por estrangeiros que desejam vir para esta República.

            Motivou esse Aviso uma representação dirigida àquele Ministério pelo Cônsul-Geral do Brasil em Nova York. Expõe esse Cônsul que tem sido procurado por grande número de estrangeiras, casadas com cidadãos americanos, as quais, diante da nova lei dos Estados Unidos que não confere à mulher a nacionalidade do marido, se veem impossibilitadas de vir ao Brasil, por se lhes negar o passaporte no Departamento de Estado daquele país e bem assim no Consulado do país de origem.

            O caso mais recente é o da senhora Lolita C. Olinger, de origem inglesa, casada com o senhor Robert C. Olinger, cidadão americano. O Sr. Olinger obteve passaporte no Departamento de Estado, o qual foi negado à esposa, visto ser esta de nacionalidade inglesa, e o casamento ter sido efetuado já na vigência da nova lei, que é de 22 de setembro de 1922. Procurou, então, a Senhora Olinger, o Consulado-Geral Britânico, e ali também lhe foi negado o passaporte, visto ser a mesma casada com americano, e ter perdido a nacionalidade britânica, sendo-lhe então indicado o caminho do Departamento de Estado. Por fim, dirigiu-se a senhora Olinger ao nosso Cônsul-Geral em Nova York que, diante da angustiosa situação que se apresentava, concedeu-lhe uma “declaração” em que resumidamente consignou o ocorrido, para que lhe fossem facultadas as facilidades de desembarque no Brasil.

            Pondera, no citado Aviso, o Sr. Ministro das Relações Exteriores que, não podendo os cônsules conceder passaportes a estrangeiros, e não podendo a referida “declaração” suprir, em rigor, o passaporte, torna-se embaraçosa a situação dos nossos Cônsules. É por desejar remediar aos embaraços dessa situação, que o Sr. Ministro das Relações Exteriores solicita a douta opinião de Vossa Excelência.

            Não me parece que, em princípio, ou melhor, em face dos princípios do Direito Internacional, estejam os cônsules inibidos de dar passaportes a estrangeiros. O caso é disciplinado, mais pela lei interna de cada país, do que pelas leis internacionais.

            Como bem acentuam todos os internacionalistas, o Direito Internacional não tem a tarefa de determinar particularizadamente todas as atribuições que dizem respeito à função consular, ou seja, a natureza e extensão dos poderes que cada Estado confere aos seus agentes, nas relações do direito privado e do direito administrativo. Estes poderes formam o objeto das leis e dos regulamentos particulares que imperam em cada Estado, e, na pratica, são sancionados pelos tratados e pelos usos tradicionais. O princípio geral que se deve enunciar nesta matéria é o seguinte: os Cônsules, no que concerne ao exercício das funções que lhes são confiadas, dependem exclusivamente do seu governo, e podem invocar a proteção especial do direito das gentes, sempre que se tratar da liberdade necessária para o exercício das suas funções, liberdade, porém, que se deve por de harmonia com a submissão aos ditames da ordem pública, imperantes no Estado onde se acham. Porquanto, a extensão da atividade consular, enquanto, de um lado, encontra um limite na esfera que cada Estado traça a si mesmo no disciplinar a atividade privada, do outro lado encontra um limite externo na vontade do Estado territorial. Na verdade, um Estado, ou por interesses políticos, ou por outros motivos, pode não consentir que o cônsul estrangeiro exerça, em seu território alguma das funções atribuídas pelo direito nacional; por exemplo, a Áustria antiga não admitia aos cônsules italianos a competência para celebrar casamentos em território austríaco, nem mesmo entre esposos italianos. Nestes casos, o direito nacional deve ceder ao direito local.

(…)

            Não há, pois, em causa, no tocante às atribuições dos Cônsules, nenhum princípio de direito internacional, salvo no que é atinente ao respeito devido à soberania do Estado, em cujo território o cônsul exerce as suas funções.

            Por conseguinte, não se pode dizer que pelo Direito Internacional seja vedado aos cônsules dar passaportes a estrangeiros.

(…)

            Cumpre averiguar o que a respeito dispõe a lei brasileira. A “Nova Consolidação das Leis, Decretos e Decisões referentes ao Corpo Consular”, promulgada pelo Decreto nº 10.384, de 6 de agosto de 1913, dispõe, relativamente à matéria, o seguinte: Art. 496. Os Cônsules não deverão conceder passaportes aos menores e às mulheres casadas, sem autorização expressa do pai, tutor ou marido. Esta restrição não compreende os estrangeiros cujos passaportes “não tem de ser passados”, mas tão-somente visados pelos Cônsules.

            Esse artigo limita-se a reproduzir o art. 410 da “Consolidação”, promulgada pelo Decreto nº 3.259, de 11 de abril de 1899, e, por demais, fez expressa remissão ao artigo 148 do “Regulamento Consular”, expedido com o Decreto nº 4.968, de 24 de maio de 1872, art. 148, cujo texto é o seguinte: “A expedição dos passaportes fica pertencendo aos Cônsules, nos termos  do Decreto número 4.176, de 6 de maio de 1868, sem prejuízo das atribuições que, em virtude do mesmo decreto, cabem às legações.” (A segunda parte corresponde literalmente ao texto do art. 496, supratranscrito).

            Deve-se daí concluir que os Cônsules brasileiros “não podem” conceder passaportes a estrangeiros que se destinem ao Brasil, competindo-lhes, apenas, visar os que tiverem sido concedidos pelas autoridades territoriais?

            A nossa legislação sempre permitiu a concessão de passaportes a estrangeiros, pelas autoridades brasileiras (Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, art. 12; Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, arts. 72, 73 e seguintes, até 90). Essas disposições foram modificadas pelo já citado Decreto nº 4.176, de 6 de maio de 1868, cujo art. 5º reza o seguinte: “as autoridades brasileiras deverão, todavia, conceder os passaportes, requeridos por nacionais ou estrangeiros, que os quiserem por motivo de proteção e para facilidade do viajante.”

            Não há razão para se negar aos Cônsules a faculdade de concederem passaportes a estrangeiros que pretendam viajar para o Brasil. Porque é que se exige o seu visto nos passaportes concedidos por outras autoridades, senão porque sem esse visto aquele passaporte é incompleto e inoperante?

            Ninguém, ao contrário, mais interessado do que os nossos Cônsules em averiguar a qualidade e condição das pessoas que demandam o nosso país. Às autoridades territoriais de um determinado país, como aos Cônsules de outras nações, pode ser perfeitamente indiferente que emigrem para o Brasil pessoas indesejáveis. O visto, que se exige dos Cônsules dos países do destino, tem por fim impedir, exatamente, que tenham livre curso passaportes concedidos a pessoas indignas, às quais as nossas leis vedam a entrada na República. Se o visto não é, pois, mais do que um passaporte abreviado, e sem ele pode-se dizer que o passaporte não existe; se o Cônsul pode negar o visto, e portanto, inutilizar o passaporte concedido por autoridades estrangeiras, nenhuma razão há para que se lhes negue a faculdade de concederem passaportes diretos, “por motivo de proteção e para facilidade do viajante”, como se exprime o art. 5º do Decreto de 1868.

            O passaporte é um ato de polícia; em rigor, só o deve dar uma autoridade brasileira, porque a esta é que incumbe averiguar a condição das pessoas que demandarem o nosso país, a fim de que para ele não venham pessoas em condições indesejáveis.

            Portanto, quer perante os princípios do Direito Internacional, quer perante os preceitos das nossas leis, quer ainda consultando os nossos reais interesses, não vejo motivo para se negar aos Cônsules brasileiros a faculdade de concederem passaportes a estrangeiros que demandarem o nosso país; e, ao contrário, só vejo, na outorga dessa faculdade, uma utilidade, ou mesmo uma providência indispensável. Os Cônsules são os nossos fiscais naturais, e, visando ou concedendo passaportes, exercem uma utilíssima função tutelar dos nossos mais reais interesses.

            A mudança de um indivíduo de um Estado para outro interessa mais profundamente ao país do destino do que ao país da procedência. É natural, portanto, que as autoridades do país de destino sejam ouvidas, e intervenham no caso, investigando e apurando se aquele determinado indivíduo pode ser recebido sem ofensa dos interesses do país a que se destina.

            Às autoridades de um determinado país e a Cônsules estrangeiros aí residentes pode importar pouco que indivíduos de más qualidades o abandonem em busca de outras terras; podem mesmo facilitar a saída desses indivíduos, para se libertarem da sua presença.

            O país, pois, realmente interessado é, incontestavelmente, o país do destino. E quem, melhor do que o Cônsul, pode exercer a função tutelar de impedir que para o seu país afluam maus elementos humanos?

            É, porém, fora de dúvida que a concessão dos passaportes, ou o visto em passaportes passados por outras autoridades, devem ser cercados de certas cautelas, e obedecer a determinados preceitos.

            É um ponto incontroverso na doutrina, e questão absolutamente pacífica nos domínios do Direito Público, que o Estado tem o direito de vedar a entrada no seu território a qualquer estrangeiro, não residente, que, por qualquer motivo, possa ser nocivo aos interesses do mesmo Estado.

            Usando desta faculdade, promulgou o Brasil a Lei nº 4.247, de 6 de janeiro de 1921, a qual no seu art. 1º, declara ser lícito ao Poder Executivo impedir a entrada no território nacional: 1º, de todo o estrangeiro nas condições do art. 2º desta mesma lei; 2º de todo o estrangeiro mutilado, aleijado, cego, louco, mendigo, portador de moléstia incurável, ou de moléstia contagiosa grave; 3º de toda estrangeira, que procure o país para entregar-se à prostituição; 4º de todo o estrangeiro de mais de 60 anos.

            Os estrangeiros, a que se referem os nºs 2 e 4, terão livre entrada no país, salvo os portadores de moléstia contagiosa grave: a) se provarem que têm renda para custear a própria subsistência; b) se tiverem parentes ou pessoas que por tal se responsabilizem, mediante termo de fiança assinado perante a autoridade policial.

            Os estrangeiros a que se refere o nº 1 são, dentre outros, os seguintes: 1º, o que for expulso de outro país; 2º, o que a polícia de outro país tem como elemento pernicioso à ordem pública; 3º, o que se evadiu de outro país por ter sido condenado por crime de homicídio, furto, roubo, bancarrota, falsidade, contrabando, estelionato, moeda falsa, ou lenocínio.

            À vista do exposto, chego à seguinte conclusão: Penso que se deve recomendar aos Srs. Cônsules o seguinte:

            1º) Que neguem sempre o seu visto a passaportes concedidos às pessoas contempladas na citada Lei número 4.247, de 6 de janeiro de 1921.

            2º) Que podem, excepcionalmente, conceder passaportes a estrangeiros, que os quiserem por motivo de proteção e para facilidade do viajante.

            3º) Que, tanto para a concessão desses passaportes, como para o visto em passaportes concedidos pelas autoridades territoriais ou por cônsules de outras nações, devem proceder às necessárias averiguações, ou exigir da pessoa que pede o passaporte documentos que provem não se achar ela incluída em nenhum dos casos previstos na citada Lei nº 4.247.

            Eis, Sr. Ministro, o que me ocorre aconselhar a Vossa Excelência.

            E, prevalecendo-me da oportunidade, reitero a Vossa Excelência as seguranças do meu elevado apreço.

Astolpho Rezende.”

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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