Opinião

Instituto da supressio pode gerar desconfiança na relação contratual

Autor

2 de setembro de 2015, 9h29

Nas relações contratuais de trato sucessivo, são comuns situações em que o credor opta por não exigir, temporariamente, determinada obrigação do devedor. São casos em que o credor tolera o inadimplemento total ou parcial de uma obrigação do devedor. O motivo, na maioria das vezes, é preservar a relação contratual, evitando o acionamento de cláusula resolutiva (disparada pelo inadimplemento).

Contudo, passado certo tempo, o credor pode mudar de ideia, exigindo o adimplemento exato e integral das obrigações contratuais, bem como o pagamento de eventuais penalidades. Dependendo do tempo decorrido e da postura das partes durante a execução do contrato, essa mudança de comportamento do credor pode gerar distorções. É que o cumprimento imediato de obrigações que nunca foram exigidas pode demandar prestação desproporcional, desequilibrando o contrato. Além disso, se a conduta do credor gerou no devedor uma expectativa de que aquela obrigação não mais seria exigida, pode não parecer justa sua posterior exigência.

Uma das funções da boa-fé objetiva é a de limitar o exercício de direitos. Essa função é explicitada no artigo 187 do Código Civil. Derivada da noção de boa-fé como limite ao exercício de direitos, a chamada supressio corresponde ao desaparecimento de um direito em razão de seu não exercício por um considerável lapso temporal, e na medida em que este comportamento passivo traga para seu agente uma expectativa de inexigibilidade da conduta omitida ou da omissão violada. Antonio Menezes Cordeiro[1] define a supressio como “a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé”.

Por proteger uma justa expectativa da parte, pode-se dizer que a supressio tutela a confiança na relação contratual. Neste sentido, a prolongada omissão (ou comissão violadora de dever de omissão) de uma parte, seguida de uma abrupta mudança de comportamento, seria considerada abuso de direito, por quebrar essa confiança.

Os tribunais brasileiros têm reconhecido e aplicado o instituto em diversos julgados. Como exemplo, vale ser citada a decisão proferida no Recurso Especial 1.202.514/RS. A discussão teve como base um contrato de prestação de serviços jurídicos, no qual ficou ajustada uma prestação mensal que deveria ser reajustada anualmente. Passados quase sete anos sem que a prestação fosse reajustada, a contratante dos serviços resiliu o contrato. Na sequência, os contratados ajuizaram ação cobrando os reajustes das prestações devidas durante toda a relação contratual. Diante da prolongada inércia dos contratados, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de aplicação da supressio e manteve a decisão do tribunal local, que afastou a cobrança do reajuste anual.

Diferentemente da prescrição e da decadência, não existe um prazo determinado para que reste configurada a supressio. É que, como visto, este instituto decorre de cláusulas gerais, ficando sujeito a interpretação com maior grau de liberdade por parte do julgador. Por este motivo, doutrina e jurisprudência sugerem que a inércia prolongada de uma parte efetivamente gere para outra parte a expectativa de que determinado direito não será mais exercido.

Como protege a confiança na relação contratual, a supressio pode ser vista como um estímulo para celebração de negócios, pois desestimula comportamentos contraditórios e oportunistas. Com efeito, o instituto prestigia a posição do devedor, que acreditava que o direito não mais seria exercido. Por outro lado, não se pode perder de vista que a aplicação da supressio causa um prejuízo[2] ao credor, o qual muitas vezes acreditava estar agindo dentro do limite temporal fixado pela lei. De rigor, portanto, que os sujeitos das relações negociais tenham uma nítida compreensão da exata extensão dos deveres decorrentes da cláusula geral da boa-fé objetiva, evitando assim o perecimento de seus direitos.

Esta ausência de um prazo pré-determinado para aplicação da supressio pode implicar em um efeito reverso, tornando as relações negociais instáveis. Para evitar interpretação diversa de sua real intenção, o credor deverá estar sempre atento ao cumprimento das obrigações contratuais. Ou, ao menos, deverá se certificar de que uma momentânea tolerância sua não irá gerar uma expectativa de que determinado direito não será mais exercido. Se imaginarmos uma relação contratual longa, com diversas obrigações, não é exagerado afirmar que o temor de uma aplicação da supressio pode gerar um verdadeiro clima de desconfiança entre as partes.

Diante deste panorama, podem as partes estipular no contrato cláusula afastando uma eventual aplicação da supressio? São muitos os contratos em que se verifica a existência de cláusula estabelecendo que atos de tolerância não irão configurar renúncia de direitos. Porém, pode esta disposição contratual afastar a aplicação de um instituto derivado de uma cláusula geral tão importante como a boa-fé objetiva? Ao julgar o recurso de apelação 0007924-66.2013.8.26.0597, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que sim.

Tratava-se da possibilidade de uma parte cobrar multas por reiterados atrasos nos pagamentos de prestações mensais, sem que tivesse manifestado insurgência nas épocas em que ocorreram estes atrasos. A relação contratual teve uma duração superior a três anos, tendo sido resolvida no ano de 2009. A ação foi ajuizada em abril de 2011, tendo a Ré sido citada apenas em 14/05/2013. Em uma das cláusulas contratuais constou a seguinte disposição: “[…] a critério da CONTRATADA, por não pagamento pela CONTRATANTE de qualquer parcela devida, sendo que a tolerância ou não recebimento nas épocas convencionadas, inclusive após rescisão do contrato, não implica renúncia dos créditos advindos do presente contrato.”.

Muito embora a Ré tenha requerido a aplicação da supressio, o tribunal confirmou o entendimento do juízo de 1º grau, no sentido de que a existência de cláusula citada afastava a aplicação do instituto. Os julgadores entenderam que a existência desta estipulação “retirava da devedora qualquer expectativa de que o recebimento extemporâneo pela credora fosse lhe exonerar de outros consectários contratuais”.

Com efeito, tendo o devedor ciência de que eventuais atos de tolerância do credor não implicariam em renúncia, não pode posteriormente alegar que possuía uma legítima expectativa de que o direito não seria mais exercido. Portanto, faltaria um dos requisitos que possibilitam a aplicação da supressio.

Ora, não há dúvida de que a boa-fé objetiva deve ser observada por ambas as partes. Por esta razão, quando as partes estipulam que a não exigência imediata de seus direitos deverá ser interpretada como mera tolerância, não pode uma parte esperar de forma legítima que o direito não será mais exercido após certo lapso temporal.

O afastamento contratual da supressio traz maior previsibilidade na relação contratual. Com um ajuste prévio que diferencia tolerância e renúncia, as partes possuem maior liberdade para exigir as respectivas obrigações no momento em que considerarem mais oportuno, sem que isto contrarie a boa-fé objetiva.


1 Da boa-fé no direito civil, Coimbra: Almedina, 2007, p. 797

2 Na medida em que o credor se vê impedido de exercer seu direito.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!