Opinião

Definições de crimes de responsabilidade do presidente da República

Autor

  • Carlos Ayres Britto

    é ex-presidente do Supremo Tribunal Federal do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral. É doutor em Direito Público pela PUC de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

1 de setembro de 2015, 18h01

Sumário
1. A matriz constitucional do tema.
2. O vínculo operacional lógico entre a Constituição e as matérias veiculadas pelos incisos de I a VII do artigo 85 dela própria.
3. A unidade incindível do artigo constitucional 85 e respectivos incisos.
4. A democracia como substrato ideológico da unidade incindível do artigo constitucional 85 e respectivos incisos.
5. A ordem constitucional como o próprio bem jurídico a proteger pela norma incriminadora do artigo 85.
6. A natureza própria do crime de responsabilidade do presidente da República, inconfundível com a de qualquer outro ato infracional.
7. O inteiro significado técnico dos atos constitutivos dos crimes de responsabilidade do presidente da República.
8. O necessário pressuposto do mandato fluente, cuidando-se de crimes de responsabilidade do presidente da República.
9. A referência constitucional a uma lei de natureza especial, na matéria.
10. Fecho.   

1. A matriz constitucional do tema
Vou direto ao ponto: a Constituição brasileira fala de “crimes de responsabilidade” do presidente da República. É como está na cabeça do seu artigo 85, assim vernacularmente posto: “São crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra (…)”. O que vem de imediato, dos incisos I a VII, é uma relação de matérias que ela mesma tem como dos seus mais relevantes conteúdos. E que ela mesma tem como dos seus mais relevantes conteúdos, aclaro, porque elementarmente republicanos e federativos. Ou republicano-federativos, assim geminadamente. São eles: “a existência da União", “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos poderes constitucionais das unidades da Federação”, “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”, “a segurança interna do país”, “a probidade na administração”, “a lei orçamentária” e “o cumprimento das leis e das decisões judiciais”.

2. O vínculo operacional lógico entre a Constituição e as matérias veiculadas pelos incisos I a VII do artigo 85 dela própria
Esse vínculo operacional entre a cabeça do artigo 85 e respectivos incisos de pronto se vê: a cabeça do artigo fala da Constituição como um continente normativo, os incisos falam de sete dos mais relevantes conteúdos desse continente. Por que assim? Porque tais conteúdos são elementarmente republicano-federativos, torno a ajuizar; ou seja, tais conteúdos são dos mais relevantes do corpo normativo da Constituição porque, neles, a República e a Federação se desdobram. Vão buscar fôlego e sentido. República e Federação que a mesmíssima Constituição brasileira erigiu a forma de governo e a forma de Estado, respectivamente. Pelo que tais conteúdos estão para a República Federativa do Brasil assim como a República Federativa do Brasil está, obviamente, para a Constituição brasileira. Dando-se que entre as duas instituições e a própria Constituição se coloca a democracia, como sequenciadamente demonstro.

3. A unidade incindível do artigo constitucional 85 e respectivos incisos
    3.1. Novo desdobramento de ideia: os conteúdos veiculados pelos sete incisos do artigo 85 compõem com o próprio continente em que a Constituição consiste uma unidade do tipo monolítico ou incindível. Uma só “ordem constitucional”, para me valer da expressão que se lê no inciso XLIV do artigo 5º da mesma Carta Magna, verbis: “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Tal ordem constitucional a se pôr, em bloco (ao lado do Estado Democrático brasileiro), como o próprio bem jurídico a que visa proteger a norma incriminadora da ação deletéria de grupos armados. Assim como se coloca na eminente posição de bem jurídico a proteger pelo comando do artigo 85, compreensivo do caput e incisos I a VII.

4. A democracia como substrato ideológico da unidade incindível do artigo constitucional 85 e respectivos incisos
Ideologicamente, porém, o que responde por essa unidade insuscetível de fratura é o mais denso teor democrático da República Federativa do Brasil. Uma República e uma Federação que se põem, justamente, como “anéis de Saturno” da democracia brasileira, institucionalmente falando (a democracia como continente, a República e a Federação como seus imediatos conteúdos institucionais). Como conquista ou signo de civilização avançada. Retrato normativamente falado da epopeia constituinte de 1987/1988. Por isso que atentar contra qualquer das matérias veiculadas pelos incisos I a VII dele, artigo 85, é atentar contra a Constituição por uma forma que o verbo atentar bem exprime: uma contrariedade acintosa. Uma declaração de inadaptabilidade do presidente da República aos valores democráticos da Constituição em seu conjunto. Uma contrariedade à própria inteireza da Lei Maior, tão objetivamente grave e subjetivamente censurável que chega às raias da afronta. Da conspurcação ou defraudação da ética da responsabilidade que é de se exigir de um presidente da República.   

5. A ordem constitucional como o próprio bem jurídico a proteger pela norma incriminadora do artigo 85
Retomo a proposição do tópico 3. Os crimes de responsabilidade do presidente da República se tipificam por atos atentatórios da Constituição como ordem jurídica em si. Em especial, por aqueles seus aspectos (dela, Constituição) que os sobreditos incisos enunciam. Na base do “mexeu com eles, mexeu comigo”. Mas atos atentatórios por um modo frontal ou direto à ideia-força em que ela como um todo se traduz. Que ideia-força? A de que a Constituição é a lei nacional de hierarquia máxima. A lei suprema do Estado e de toda a sociedade civil brasileira. A lei que nunca pode deixar de governar quem governa. A lei que, se respeitada em seu primaz e definitivo significado de lei que governa até quem governa, conduz a uma situação de máxima segurança jurídica para todos. Segurança de que, por exemplo, “os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” (artigo 3º) serão alcançados, e os direitos e garantias dos indivíduos e dos cidadãos, respeitados. Fins constitucionalmente lícitos e meios também constitucionalmente lícitos a andar de braços dados. Que já significa o Estado Constitucional-democrático de Direito em plenitude operacional.

6. A natureza própria do crime de responsabilidade do presidente da República, inconfundível com a de qualquer outro ato infracional
O que se tem pelo artigo 85, destarte, é a Constituição a se autorreferir. A se autorreferir para se proteger por um modo mais repressivamente drástico. Para ordenar ao presidente do Brasil que não incorra em atos funcionais atentatórias dela. Que não ouse fazer do Brasil “um barco juridicamente à deriva”, que é um barco sem o timão dela própria. Sob pena de incidir em crime de responsabilidade, punível, centralmente, com a perda do cargo e a inabilitação para a função pública, por oito anos (parágrafo único do artigo 52). É o que prosaicamente se chama de impeachment ou impedimento de prossecução no exercício do mandato presidencial. Mas impeachment pela perpetração de atos infracionais que têm natureza própria ou inconfundível com a de qualquer outra ilicitude: penal, civil, eleitoral, de contas. Por isso que explicitamente chamados de “crimes de responsabilidade”, a ter por lógico pressuposto um atentado à Constituição como o específico bem jurídico a que visa proteger a norma incriminadora em que o artigo 85 se traduz. Não apenas por si mesmo, porém por efeito do seu parágrafo único (mais abaixo transcrito), que remete sua plena operatividade para lei especial do Congresso Nacional.     

7. O inteiro significado técnico dos atos constitutivos dos crimes de responsabilidade do presidente da República
Antes, porém, da transcrição de tal parágrafo único, o que me cabe é avançar na direção do inteiro significado técnico dos atos constitutivos dos crimes de responsabilidade do presidente da República. Atos atentatórios da Constituição e “especialmente” daqueles que venho apontando como dos mais relevantes conteúdos dela mesma. Faço-o por modo esquemático, para dizer que:

I – os atos a que se reporta o artigo 85 são os de natureza funcional. De natureza funcional, na acepção de que normativamente qualificados como integrantes do rol de competências, prerrogativas e secos deveres do cargo de presidente da República (os princípios do artigo 37 da Constituição, por exemplo, são secos deveres, a que correspondem direitos dos administrados). Mesma exigência que faz a Constituição para as demais formas de responsabilização do presidente da República pelo cometimento de atos ilícitos distintos do crime de responsabilidade, conforme se vê deste enunciado: “O presidente da República, na vigência do seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções” (parágrafo 4º do artigo 86);
II – cuida-se de atos funcionais praticados no exercício de um mandato presidencial corrente. Atual. Em curso. Não de mandato vencido, conforme um pouco mais adiante explicitarei;
III – são atos afrontosos da ideia mesma de Constituição. Da Constituição para além e também por qualquer dos sete mencionados aspectos ou conteúdos republicano-federativos. Situação que não toma corpo, por evidente, apenas com o episódico ferimento deste ou daquele dispositivo constitucional (tão ocasional quanto isoladamente, então). Quero dizer: não basta agir em desconformidade com esse ou aquele preceito da Constituição, nem da lei, mesmo que da lei de improbidade administrativa ou então da lei orçamentária, para que se tenha como automaticamente deflagrada a hipótese do crime de responsabilidade do presidente da República. Assim como não basta desatender uma decisão judicial, topicamente considerada, ou negar esse ou aquele direito individual, ou social, ou político, ou ainda que o presidente da República incorra em atos que também impliquem, pontualmente, um abaixar a cabeça da União em face de pressões advindas dos Estados-membros, para que se tenha como rotundamente materializadas as respectivas hipóteses de incidências do crime em foco. Não é bem isso. É preciso, para que se dê como ocorrida qualquer das pressuposições de aplicabilidade dos incisos I a VII do artigo constitucional 85, que os atos imputados ao presidente da República atentem contra a ideia em si ou o núcleo duro conceptual de institutos como, exempli gratia: a) “a probidade na administração” enquanto irrestrito dever moral dos administradores públicos e irrenunciável direito da coletividade administrada, além de forma de legitimação da lei quanto ao respectivo modo de aplicação e ainda necessário ponto de encontro entre a legitimidade como pré-requisito de investidura em cargo público e a legitimidade como requisito de desempenho de tal cargo; b) “a lei orçamentária” como peça-chave da relação político-funcional entre, de uma parte, um Poder Legislativo que parametriza as ações gerais de arrecadação, alocação e dispêndios de dinheiros públicos e, de outra banda, um Poder Executivo que deve se curvar a tais parâmetros, mas sempre na perspectiva do alcance dos “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” (artigo 3º da Constituição) e das competências materiais da União, em caráter privativo ou já no âmbito das competências comuns aos demais entes federativos (artigos 21 e 23 do Magno Texto Federal); c) o respeito à lei em sentido formal e material como expressão da vontade infraconstitucional do povo e, por isso mesmo, primeiro dos princípios do artigo 37 da Constituição e documento jurídico-positivo sem o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa (…)”, nos termos do inciso II do artigo 5º da mesma Carta Magna; d) o cumprimento das decisões judiciais como expressão da vontade jurídica do Poder constitucionalmente concebido (o Judiciário) para dar a última palavra quanto às controvérsias jurídicas, seja nos processos objetivos ou de aferição abstrata de constitucionalidade, seja nos processos subjetivos ou de aferição em concreto de tais controvérsias; e) a existência da União como pessoa central da Federação que tanto se relaciona em pé de igualdade com as outras unidades dessa mesma Federação (artigo 18, caput) quanto protagoniza as relações internacionais do Brasil e ainda assegura a defesa nacional (incisos I, II e III do artigo 21 da CF). Logo, o de que se trata é de ejetar o raciocínio jurídico para o altiplano da ontologia mesma de cada qual dos incisos I a VII do artigo 85. Altiplano da própria razão de ser de cada um deles, em bloco ou na inteireza da respectiva compostura jurídica. Na inteireza do regime normativo de cada qual deles, sim, numa específica e democrática estrutura republicano-federativa. O que implica a necessidade da troca do visual interpretativo no varejo pelo visual interpretativo no atacado, pois o bem jurídico ou o valor coletivo que ali comparece como digno de proteção de cada qual de tais incisos não comporta fragmentação conceitual nem trivialização operacional. Numa frase, o que interessa, para a tipificação do crime de responsabilidade do presidente da República, é saber se os respectivos atos implicam preterição da ideia-força que tanto subjaz à positivação de cada qual desses encarecidos conteúdos quanto compõe o respectivo cerne conceitual-normativo. Numa pergunta, então: os atos presidenciais têm a força de aluir as bases de inspiração e a própria significação objetiva desse ou daquele conteúdo da Constituição, ali figurante dos incisos de I a VII do multicitado artigo 85 e para além deles? Se a resposta for afirmativa, aí, por certo, um determinado ato infracional passa a se revestir da extrema gravidade a que corresponde a hipótese de incidência do crime de responsabilidade do presidente da República;
IV – por último, tais atos foram hipotetizados pela Constituição como crimes de responsabilidade porque reveladores, em última análise, de um como que marginal estilo de governo: o de “dar as costas à Constituição”. Que é a pior forma de desgoverno. Um estilo ou padrão ou standard ou personalizado jeito de colocar em xeque o axioma de que a Constituição é a lei nacional de hierarquia máxima. Isso a partir da reverência mesma que a ela é devida por uma autoridade que acumula as chefias da administração pública da União, do governo federal e do Estado brasileiro como um todo. Não por acaso, o único agente público de quem se exige, quando do ato de posse perante uma renovada composição do Congresso Nacional, a prestação do compromisso de “manter, cumprir e defender a Constituição” (parágrafo único do artigo 78). Por conseguinte, autoridade central que não pode jamais colocar o país no terrífico dilema de ter que optar entre o seu presidente e sua Constituição. Que já é um tipo de ponderação a ser feita pelo Congresso Nacional, valendo-se de sua Câmara dos Deputados como órgão de acusação e pelo Senado como órgão de processo e julgamento (nos precisos termos, respectivamente, do inciso I do artigo 51 e do inciso I do artigo 52 da Constituição).

8. O necessário pressuposto do mandato fluente, cuidando-se de crimes de responsabilidade do presidente da República   
Já me aproximando do fecho deste breve estudo, ajuízo que o mandato para cujo desempenho se presta o citado compromisso é o conquistado em determinada eleição. Eleição específica, seguida de diplomação, posse e exercício também específicos. Ainda que mandato obtido por uma segunda vez, mas a significar apenas o seguinte: o cargo de presidente é o mesmo; não o mandato. Vale dizer: para o primeiro mandato do presidente da República, já houve uma anterior eleição, uma anterior diplomação, uma anterior posse, um anterior exercício. Um precedente exercício que não se intercala com o novo (pelo contrário, se intervala), porque mandato novo é exercício que se abre para uma autônoma prova de fidelidade governamental à Constituição. Autônoma prova, a partir de um compromisso virginalmente novo que se presta perante uma determinada composição do Congresso Nacional. Não perante outra composição numérica ou subjetiva. Não um compromisso formal, reitere-se, a se somar ao anterior para fazer dos dois mandatos uma coisa só. Pelo que mandato presidencial vencido sem abertura e julgamento de crime de responsabilidade é, sozinho ou por si mesmo, página virada. Não assim, por evidente, quanto a eventual cometimento de infrações de outra natureza jurídica ainda não prescritas, em especial as infrações penais comuns, as de caráter eleitoral, as situadas no âmbito do dever constitucional da prestação de contas e da lei de improbidade administrativa. Cada qual dessas diferenciadas infrações a demandar processo e julgamento sob formato jurídico inconfundível com aquele concebido pela Constituição para os crimes de responsabilidade do presidente da República.

9. A referência constitucional a uma lei de natureza especial, na matéria  
Certo que o parágrafo único do mesmo artigo 85 dispõe que os crimes de responsabilidade “serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”. Lei de caráter nacional, que é a 1.079, de 10 de abril de 1950, mas somente passível de boas-vindas pela Constituição na medida em que interpretada conforme à Constituição mesma. Lógico! O que nos parece ter que se ajustar às coordenadas mentais acima lançadas[1]. Coordenadas que tenho como de necessária e fidedigna observância, para evitar que um equivocado trato interpretativo da matéria termine por desaguar num maldisfarçado mecanismo de recall que o sistema constitucional brasileiro não abriga. Assim como não abriga o sistema parlamentar de governo, com seu voto de desconfiança apto a cassar o mandato de quem se encontre à testa do gabinete ministerial-executivo. Cassação tanto individual quanto coletiva, como amplamente sabido.    

10. Fecho
Bem, este é o meu visual do tema. Projetei-o como uma tentativa de contribuir para o aprofundamento de um debate que já se vem travando na esfera política e nos meios jurídicos. Debate que muito promete avançar, numa quadra nacional de intensas perplexidades e visão candentemente partidária das coisas. Por isso que muito me esforcei para manter a serena objetividade que o pensamento científico exige como condição de sua própria identidade. Um pensamento que, para se recobrir assim de pura cientificidade, só pode ter nos escaninhos normativos da Constituição da República Federativa do Brasil o seu necessário ponto de partida e de chegada.


[1]Falo de coordenadas mentais como o conjunto das reflexões que penso autorizadas pela direta interpretação dos dispositivos constitucionais que pude citar no curso deste breve artigo, de per si e também imersos no todo sistêmico da Constituição. Reflexões que tive a prudência de expor, em primeira mão, para constitucionalistas da minha justificada admiração intelectual, como Eduardo Mendonça e Ademar Borges de Souza Filho, deles obtendo todo estímulo para dar à luz estes escritos. O que não podia fazer sem o presente registro, que é de sincera gratidão. Uma gratidão que estendo a Júlio de Melo Ribeiro e Orlando Maia, profissionais e teóricos do Direito que também admiro em grau superlativo e que muito me ajudaram na discussão dos temas central e paralelos desta incursão doutrinária pelo sistema de comandos da Constituição brasileira.     

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  • Brave

    é ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral. É doutor em Direito Público pela PUC de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas

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