Limite Penal

Testemunho "hearsay" não é
prova ilícita, mas deve ser evitada

Autor

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

30 de outubro de 2015, 7h00

Considerando que a prova testemunhal é um dos meios probatórios mais utilizados, especialmente na chamada 'criminalidade clássica', novamente nos debruçamos sobre o tema. Anteriormente já havíamos advertido dos riscos da memória em duas colunas (clique aqui e aqui para ler). Agora, vamos analisar o chamado 'hearsay testimony', mas antes recordemos que existem três características básicas da prova testemunhal[1] ou caracteres do testemunho[2]:

a) oralidade: determina o artigo 204 que os depoimentos deverão ser prestados oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo por escrito. Está permitida, entretanto, a breve consulta a apontamentos, principalmente quando a questão é mais complexa, com vários fatos e agentes. Constitui uma exceção a essa regra o disposto no art. 221, § 1º, do CPP, que, contudo, deve ser uma prática desaconselhável, pois ao permitir que essas pessoas deponham por escrito, de forma unilateral e fora do processo, viola-se a garantia da jurisdição e do contraditório (pela impossibilidade de participação das partes na sua produção);

b) objetividade: a objetividade está prevista no art. 213 do CPP e exige uma abordagem (crítica) mais detida, para não incorrer em reducionismo cartesiano. É elementar que uma objetividade do estilo 'neutralidade' ou dicotomização 'sujeito-objeto' é ilusória, pois devemos considerar – como adverte CORDERO[3] – a  interioridade neuropsíquica, na medida em que o aparato sensorial elege os possíveis estímulos, que são codificados segundo os modelos relativos a cada indivíduo, e as impressões integram uma experiência perceptiva, cujos fantasmas variam muito no processo mnemônico (memória). E essa variação é ainda influenciada conforme a recordação seja espontânea ou solicitada, principalmente diante da complexidade fática que envolve o ato de testemunhar em juízo, fortissimamente marcado pelo ritual judiciário e sua simbologia. As palavras que saem desse manipuladíssimo processo mental, não raras vezes, estão em absoluta dissonância com o fato histórico. Portanto, a  “objetividade” do testemunho deve ser conceituada a partir da assunção de sua impossibilidade, reduzindo o conceito à necessidade de que o juiz procure filtrar os excessos de adjetivação e afirmativas de caráter manifestamente (des)valorativo. O que se pretende é um depoimento sem excessos valorativos, sentimentais e muito menos um julgamento por parte da testemunha sobre o fato presenciado. É o máximo que se pode tentar obter[4];

c) retrospectividade: o delito é sempre um fato passado, é história. A testemunha narra hoje um fato presenciado no passado, a partir da memória (com todo peso de contaminação e fantasia que isso acarreta), numa narrativa retrospectiva. A atividade do juiz é recognitiva (conhece através do conhecimento de outro) e o papel da testemunha é o de narrador da historicidade do crime. Não existe função prospectiva legítima no testemunho, pois seu olhar só está autorizado quando voltado ao passado. Daí por que não cabe à testemunha um papel de vidente, nem exercícios de futurologia.

Nesse contexto, o chamado hearsay testimony é a testemunha do 'ouvi dizer', ou seja, aquela pessoa que não viu ou presenciou o fato e tampouco teve contato direto com o que estava ocorrendo, senão que sabe através de alguém, por ter ouvido alguém narrando ou contando o fato.

No nosso sistema, esse tipo de depoimento não é proibido, mas deveria ser considerado imprestável em termos de valoração, na medida em que é frágil e com pouca credibilidade. É ainda bastante manipulável e pode representar uma violação do contraditório, eis que quando submetida ao exame cruzado (cross examination) na audiência, não permite a plena confrontação, afinal, sobre o fato, ela nada sabe, apenas se limita a repetir o que ouviu e, eventualmente, fazer juízos de valor sobre isso (o que é vedado pela objetividade). Há ainda o imenso risco de existir uma verbalização ampliada, até para valorização do papel assumido.

Ademais, a testemunha de 'ouvi dizer' nada presenciou e, portanto, não corresponde aos requisitos de objetividade e retrospectividade, na medida em que não teve a 'experiência probatória', não conheceu diretamente do fato objeto da discussão na dimensão de caso penal. A titulo de curiosidade, no sistema inglês existem três provas passíveis de exclusão (exclusionary rules) e proibição valoratória:

a) hearsay: testemunha de ‘ouvi dizer’;

b) Bad character: prova sobre o mau caráter. Importante para evitar o direito penal do autor (eis outra proibição de prova que poderíamos adotar, especialmente no tribunal do júri);

c) Prova ilegal: concepção tradicional de proibição de valoração probatória da prova ilícita.

Enfim, a testemunha de 'ouvi dizer' (hearsay) não é propriamente uma prova ilícita, mas deveria ser evitada pelos riscos a ela inerentes e, quando produzida, valorada com bastante cautela ou mesmo não valorada. Existe uma insuperável restrição de cognição, pois não se trata de uma testemunha presencial, daí decorrendo o completo desconhecimento do fato e, portanto, um elevadíssimo risco de indução, deturpação e contaminação, pois ela acaba sendo mera 'repetidora' de discurso alheio.


[1] Conforme explicamos na obra Direito Processual Penal, São Paulo, Saraiva, 2015.
[2]Seguindo a excelente obra de  SCARANCE FERNANDES, Antonio. Processo Penal Constitucional, p. 71.
[3] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Vol. II. Bogotá, Temis, p. 55.
[4] LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal, p. 477.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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