Observatório Constitucional

Estado de Coisas Inconstitucional
é uma nova forma de ativismo

Autor

24 de outubro de 2015, 7h00

Spacca
Como esta coluna faz parte do Observatório da Jurisdição Constitucional, o intuito é contribuir para o debate dessa nova fenomenologia que se desenha no direito brasileiro. Vai aqui o meu contraponto.

Ativismo judicial camuflado
Indo direto ao ponto, no Brasil, isso pode ser demonstrado da seguinte forma: tenha uma boa ideia, cujo objeto seja agradável, dúctil e que todos possam facilmente se colocar a favor; a ideia logo deve ser transformada em tese e bem defendida, todos que contra ela escreverem serão tachados de conservadores; em um terceiro momento, depois da ideia se transformar em tese, vem a terceira fase: torná-la de uso obrigatório. Ou lei. Pronto. Aquele espaço do imaginário estará tomado. Corações e mentes logo se acostumarão com essa nova “coisa”. Mais: quem criticar a boa nova pode ser acusado de se utilizar do “argumento do espantalho” (straw man fallacy). Sem receio, socraticamente, vamos, então, à discussão.

O próprio nome da tese (Estado de Coisas Inconstitucional — ECI) é tão abrangente que é difícil combatê-la. Em um país continental, presidencialista, em que os poderes Executivo e Legislativo vivem às turras e as tensões tornam o Judiciário cada dia mais forte, nada melhor do que uma tese que ponha “a cereja no bolo”, vitaminando o ativismo, cujo conceito e sua diferença com a judicialização estão desenvolvidos em vários lugares, inclusive aqui nesta ConJur. A origem do ECI é a Corte Constitucional da Colômbia, cujas decisões não serão debatidas aqui.[1] Não me parece que a questão colombiana seja aplicável no Brasil. Aliás, a Colômbia continua tendo muitos estados de coisas inconstitucionais e já há alguns anos não aplica a tese.

Sigo. Se a Constituição não é uma carta de intenções (e todos pensamos que não o é), o Brasil real, comparado com a Constituição, pode ou é um país inconstitucional, na tese de quem defende a possibilidade de se adotar o ECI. Pensemos no artigo 3º (objetivo de construir uma sociedade justa e solidária; a norma do salário mínimo, o direito à moradia, à segurança pública etc).

Portanto, vamos refazer o dito: se a Constituição Federal não é uma carta de intenções e se é, efetivamente, norma, então o Brasil está eivado de inconstitucionalidades. Mas, de novo: levando isso a fundo, é o Judiciário que vai decidir isso? E como escolherá as prioridades dentre tantas inconstitucionalidades?

Na defesa do ECI, o articulista Carlos Alexandre de Azevedo Campos minimiza a radicalidade da tese: “O ECI funciona como a “senha de acesso” da corte à tutela estrutural: reconhecido o ECI, a corte não desenhará as políticas públicas, e sim afirmará a necessidade urgente que Congresso e Executivo estabeleçam essas políticas, inclusive de natureza orçamentária”.[2] 

Consideremos correta a assertiva no sentido de que o ECI é (só) um password para a tutela “estrutural” (mas o que é isto – a tutela estrutural?). Mas essa afirmação possui um efeito colateral. Afinal, se o STF não desenha as políticas publicas e só reconhece através do ECI sua “tutela estrutural”, é aí mesmo que reside o busílis. Digamos que o ECI seja apenas um password para a tutela “estrutural”. Essa caracterização da tese não é livre de problemas. Falta dizer quais as referências conteudísticas e procedimentais nisso tudo. Vejamos: os alemães inventaram a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade (Unvereinbarkeitserklärung) e o apelo ao legislador (Appellentscheidung), com caráter mandamental e preventivo, respectivamente. Pode-se dizer que, ali sim, se tem uma senha de acesso que o Tribunal fornece ao legislador (embora lá isso sirva para outra coisa que não algo parecido com o ECI, ou seja, criaram-se novas técnicas de declarar inconstitucionalidades, em face exatamente das insuficiências dos modelos de declaração de inconstitucionalidade no caso de prestações positivas).

Mas, na minha leitura, na tese alemã há parametricidade legal-constitucional, mantendo-se o respeito às competências (por exemplo, como resolver, no âmbito da proibição de tratamento discriminatório, o problema da "exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade"?). Neste caso, não há discricionariedade judicial nem embaralhamento de funções entre os poderes. A necessária judicialização (para aquele caso) da política ocorre sem politização da justiça.

O que quero dizer é que, em sendo factível/correta a tese do ECI, a palavra “estruturante” poderá ser um guarda chuva debaixo do qual será colocado tudo o que o ativismo querer, desde os presídios ao salário mínimo. Mas, qual será a estrutura a ser inconstitucionalizada? Sabemos que, em uma democracia, quem faz escolhas é o Executivo, eleito para fazer políticas públicas. Judiciário não escolhe. Veja-se, por exemplo, o problema que se apresenta em face do remédio para câncer, em que uma decisão do STF, para resolver um caso específico (um caso terminal), está criando uma situação absolutamente complexa (para dizer o mínimo) no Estado de São Paulo. Não necessitamos de uma análise consequencialista para entender o problema dos efeitos colaterais de uma decisão da Suprema Corte.

Ainda que possa haver teses intermediárias, como a de José Ribas Vieira e Rafael Bezerra,[3] o ponto central nessa discussão é o de que as políticas públicas não estão à disposição do Poder Judiciário. Cada vez temos de dar razão à advertência de Hirschl sobre a juristocracy.[4] Diria eu: não dá para fazer um estado social com base em decisões judiciais.

Qual é o limite de uma inconstitucionalidade?
Temo que, com o tempo, a simples evocação do ECI seja motivo para que se reconheça qualquer tipo de demanda por inconstitucionalidade ao Judiciário. O que não é inconstitucional? Imaginemos os Estados da federação demandados por uma enxurrada de ações. Sim, o STF poderá dizer que só a ele compete julgar o ECI. Mas, até lá, como segurar os demais atores jurídicos? Como segurar as demandas sociais? De novo, pense-se no caso do remédio para câncer não aprovado pela Anvisa e motivo de inúmeras decisões judiciais.

Despiciendo dizer — e sou insuspeito pela defesa que faço da jurisdição constitucional — que, ressalvados os excessos, é, sim, dever do Poder Judiciário garantir o cumprimento da lei, independentemente do nome, bonito ou feio, adequado ou inadequado, que a uma situação de descumprimento da lei se tenha dado. Pois a Constituição e a lei são para serem cumpridas. Só que existe uma coisa chamada política, eleições, parlamento, orçamento, enfim, coisas que fazem parte de uma democracia, sem falar do lugar em que vivemos: um país periférico e com um presidencialismo de coalizão, capenga, que dia a dia agoniza. Ou seja, com a crítica ao ECI não estou negando a importância do Judiciário para o cumprimento da Constituição (ele é seu guardião!). Se fosse assim, estaríamos acabando com a ideia de controle de constitucionalidade, com a autonomia funcional do Judiciário e outras tantas prerrogativas que dão os contornos à nossa jovem construção de Estado Constitucional de Direito. Sou um defensor do cumprimento da Constituição; e, quando o Judiciário assim o faz, também sou seu defensor. Por um motivo óbvio: defender a Constituição significa defender a democracia.

Mas, atenção. É por isso mesmo que, com a vênia da decisão do STF (ADPF 347) e dos que defendem a tese do ECI, permito-me dizer: o objeto do controle de constitucionalidade são normas jurídicas, e não a realidade empírica — vista de forma cindida — sob a qual elas incidem. Portanto, minha discordância é com o modo como a noção de ECI foi construída. Receio pela banalização que ela pode provocar. Tenho receio de um retorno a uma espécie de jusnaturalismo ou uma ontologia (clássica) que permita ao judiciário aceder a uma espécie de “essência” daquilo que é inconstitucional pela sua própria natureza-em-um-país-periférico. Uma espécie de realismo moral. E também discordo em face de outros argumentos. Marcelo Cattoni[5] e eu vimos discutindo esse assunto. E chegamos a conclusão que o ECI pressupõe uma leitura dualista da tensão entre fatos e normas, desconsiderando que o problema da eficácia do direito, sobretudo após o giro linguístico (que o direito parece querer ignorar), não pode ser mais tratado como um problema de dicotomia entre norma e realidade, um, como referi acima, verdadeiro ranço jusnaturalista, sob pena de se agravar ainda mais o problema que por meio da crítica se pretende denunciar.

Não há, portanto, um suposto “abismo” entre norma e realidade, mas uma construção normativa, hermenêutica e argumentativamente inadequada da compreensão da situação de aplicação. Afinal, a compreensão da realidade dos “fatos” faz parte do próprio processo de concretização de sentido da norma, no sentido de Friedrich Müller; não sendo, portanto, uma mera circunstância externa ao processo hermenêutico de interpretação e aplicação do direito, uma simples limitação a uma suposta realização plena da normatividade da norma.

Dito de outro modo, não se pode declarar a inconstitucionalidade de coisas, mesmo que as chamemos de “estado de ou das coisas. E nem se tem como definir o que é um “estado dessas coisas” que sejam inconstitucionais no entremeio de milhares de outras situações ou coisas inconstitucionais. Do contrário, poder-se-ia declarar inconstitucional o estado de coisas da desigualdade social e assim por diante.

Mais: o ECI estabelece um paradoxo, como bem detectado por Di Giorgi, Campilongo e Faria, verbis: “Invocar o ECI pode causar mais dificuldades à eficácia da Constituição do que se imagina. Basta fazer um exercício lógico, empregando o conceito de ECI a ele mesmo. Se assim estão as “coisas” – e, por isso, a ordem jurídica é ineficaz e o acesso à Justiça não se concretiza –, por que não decretar a inconstitucionalidade da Constituição e determinar o fechamento dos tribunais?”[6]

E eu acrescento, indagando: Não seria  voltar ao velho argumento daqueles que, à época da promulgação da CF, diziam que ela mesma feria a “natureza das coisas”? Ou seja, temos de cuidar para que o argumento não seja usado contra ele mesmo. Pois se tudo é – ou pode ser –  inconstitucional, corre-se o risco de a CF ser considerada irreal, por ela ter errado em trazer para o seu texto direitos “fora de lugar”.

Ademais, embora a simpatia intrínseca da e pela tese (afinal, há algo mais contra a CF do que os presídios?), parece evidente que o ECI ameaça o princípio da separação dos poderes, questão central na crítica dos três professores, que colocam alguns pontos de difícil resposta por parte de quem apoia o ECI, como se, por exemplo, 51% dos deputados forem acusados de corrupção, o STF declarará o ECI, ordenando o fechamento do Congresso ou atribuirá a política a outros órgãos?; qual a competência de uma Corte Suprema para “compensar a incompetência” do sistema político? Quem controlaria a correção jurídica do decreto (político) de ECI?; o reconhecimento de um ECI é jurídico ou político? Que sanção prevê? Persistindo a inércia, o que faz a Corte?[7]

E permito-me acrescento: O STF corre o risco de se meter em um terreno pantanoso e arranhar a sua imagem. Isto porque, ao que se pode depreender da tese do ECI e da decisão do STF, fica-se em face de uma espécie de substabelecimento auditado pelo Judiciário. A questão é: por que a Teoria do Direito tem de girar em torno do ativismo? Para além de criar álibis extrajurídicos para que o Judiciário atue de modo extrajurídico, porque não perguntar quais direitos e procedimentos jurídicos e políticos (bem demarcadas uma coisa e outra) a Constituição estabelece? Aparentemente, a solução sempre é buscada pela via judicial, mas fora do direito, apelando em algum momento para a discricionariedade dos juízes e/ou o seu olhar político e moral sobre a sociedade. Só que isso, paradoxalmente, fragiliza o direito em sua autonomia. Mais do que isso, a decisão judicial não é escolha, e de nada adianta motivação, diálogo e procedimentalização se forem feitas de modo ad hoc.

O uso retórico do ECI
Além disso, tudo o que já foi referido acima demonstra que o ECI acarreta o risco (também) de ser utilizado para fins retóricos. Explico: não seria necessário lançar mão desse “argumento de teoria colombiana” para tratar do que a legislação processual penal brasileira já prevê. Ora, na especificidade da questão penitenciária, o Poder Legislativo estabeleceu exigências para o uso republicano e destinação dos fundos penitenciários a cargo da administração judicial e do Departamento Penitenciário Nacional. São, portanto, exigências legais, estabelecidas pelo Poder Legislativo. E não pelo Poder Judiciário. Além do mais o Fundo Penitenciário Nacional, gerido pelo Departamento Penitenciário Nacional, foi criado por Lei Complementar (LC 79/94 e regulamentada pelo Decreto 1093/94). Em resumo, com a aceitação da tese da ECI fica cada vez mais difícil fazer a comunidade jurídica entender porque existe uma crise no direito e na sua operacionalidade no Brasil.

Numa palavra final
O próprio nome da tese do ECI é intrigante. John L. Austin escreveu um livro chamado Como fazer coisas com palavras. Ele compreendia o direito como uma prática coletiva da qual depende a integridade da ordem jurídica e a dignidade dos direitos dos cidadãos. Pois diante da tese do Estado de Coisas Inconstitucional, estou procurando um modo como fazer palavras com (essas) coisas. Ou, parafraseando Lacan, invertendo uma frase popular: em vez de dar nome às coisas,  temos de dar coisas aos nomes!

Posso dizer um nome; mas isso não me trás a coisa. Nem a constrói. Nas Aventuras de Gulliver, um cientista inventou uma nova fórmula para dizer as coisas. Eliminou as palavras. Se alguém queria dizer algo, tinha que trazer a própria coisa. Foi festejado. O problema surgiu quando alguém foi tratar de um elefante… Só que não havia esse animal na ilha.

E, numa palavra finalíssima
Quero dizer que, embora crítico do ECI, torço para que dê certo. Afinal, trata-se de uma questão que envolve um atrito no e do diálogo institucional entre os poderes. Ou seja, como estou embarcado nessa nave chamada Brasil, torço pelo sucesso do piloto!

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1]  Carlos Alexandre de Azevedo Campos explicita os casos e suas circunstâncias em boa síntese, para onde remeto o leitor (http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional).
[2] Op.cit. Devemos temer o "estado de coisas inconstitucional"? Consultor Jurídico, São Paulo, 15 out 2015, Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-out-15/carlos-campos-devemos-temer-estado-coisas-inconstitucional. Acesso em 18 out 2015.
[3] Os autores são favoráveis ao instituto do ECI como foi decidido na Colômbia, mas criticam a liminar do STF brasileiro, afirmando que a decisão foi “mandatória e monológica” e fez refletir um “profundo alheamento” em relação à necessária construção de uma jurisdição supervisora e de sentenças estruturantes. Cf. Disponível em: http://jota.info/estado-de-coisas-fora-lugar. Acesso em 18, out, 2015.
[4] Remeto os leitores para meu artigo STF e o Pomo de Ouro. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jul-12/senso-incomum-stf-contramajoritarismo-pomo-ouro. Acesso em 18, out, 2015.
[5] Nesse sentido, ver CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 94 e seguintes.
[6] DE GIORGI, Raffaele; FARIA, José Eduardo; CAMPILONGO, Celso. Opinião: Estado de coisas inconstitucional. Estadão, São Paulo, 19 set 2015. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,estado-de-coisas-inconstitucional,10000000043. Acesso em 18, out, 2015. Contestando o artigo dos três professores, tem-se um aprofundado texto do professor José Rodrigo Rodrigues (http://jota.info/estado-de-coisas-surreal), em que, embora também preocupado com a relação entre os poderes, mostra-se otimista e considera que o ECI pode vir a ser uma espécie de divisor de águas nas políticas públicas brasileiras.
[7] DE GIORGI, Raffaele; FARIA, José Eduardo; CAMPILONGO, Celso, op. cit.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!