Observatório Constitucional

CNJ está esvaziado e capturado após 10 anos de existência?

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17 de outubro de 2015, 10h51

Criado em 2004 pela Emenda Constitucional 45, o Conselho Nacional de Justiça foi instalado em 2005, sob a presidência do ministro Nelson Jobim. Surgiu em um contexto de compromisso político entre os defensores de um controle estritamente externo e aqueles que lhe eram contrários e defendiam a manutenção do controle interno feito exclusivamente pelos próprios tribunais.

Embora tenha sido alocado topograficamente entre os dispositivos constitucionais referentes ao Poder Judiciário, abaixo, somente, do Supremo Tribunal Federal, entendeu-se que ele constituiria um controle misto, tendo em vista que dele participariam, além de nove magistrados, seis membros externos ao Judiciário, sendo dois representantes do Ministério Público, dois representantes da Ordem dos Advogados do Brasil e dois cidadãos escolhidos, respectivamente, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Trata-se, a rigor, de um controle misto desequilibrado, com prevalência da magistratura.

Apesar desse desequilíbrio, grande parte da esfera pública e da sociedade civil demonstrou grande esperança na sua atividade de controle financeiro, administrativo e disciplinar dos órgãos judiciais, assim como nos seus programas para incrementar a eficiência da administração judiciária e a melhoria da prestação jurisdicional, especialmente em face da enorme acumulação de processos sem solução por longos anos. Em suas três primeiras composições, em um crescendo, o CNJ parecia corresponder  a essa expectativa alimentada em amplos setores da sociedade.

O órgão ainda claudicava em deficiências estruturais quando adotou medidas de defesa da moralidade administrativa que anunciavam sua vocação para a vanguarda da Administração Judiciária brasileira, como a edição das Resoluções 7 e 13 que, respectivamente, proibiram a prática do nepotismo nos órgãos do Poder Judiciário e estabeleceram as regras para observância do regime remuneratório do subsídio e teto constitucional por parte dos magistrados de todo o país.

Em meio às disputas que se travaram no Supremo Tribunal Federal a respeito da sua própria constitucionalidade e dos atos normativos por ele editados, que rumavam na contracorrente de séculos de ineficiência e corporativismo, o Conselho Nacional de Justiça descobriu aquela que talvez seja a mais fascinante de suas competências constitucionais: a de órgão central de planejamento e gestão do Poder Judiciário, responsável pela produção e execução de macropolíticas judiciárias representadas por projetos e programas de ação voltados às mais variadas questões do sistema de Justiça, da situação do sistema carcerário à modernização tecnológica dos tribunais.

Neste particular, talvez eu seja testemunha do momento de maior efervescência institucional do órgão. Como membro do conselho de 2009 a 2011, pude presenciar o surgimento de diversos projetos e programas de grande repercussão e impacto no processo de aproximação da Justiça de seus destinatários.

Vi surgir, por exemplo, o Programa Integrar, que tinha por objetivo o aprimoramento da gestão cartorária de processos pelas unidades judiciárias, e as Casas de Justiça e Cidadania, criadas a partir da necessidade de envolver o Poder Judiciário com a vida da comunidade na qual está inserido.

Acompanhei a realização de diversas inspeções pela Corregedoria Nacional de Justiça, sob a gestão do ministro Gilson Dipp, em diversos tribunais de todo o Brasil. Aprovei, com os meus pares, diversos relatórios de Mutirões Carcerários. Apreciei o programa Começar de Novo, voltado à reinserção social dos egressos do sistema penal. Presenciei a definição do Planejamento e Gestão Estratégica do Poder Judiciário, com a aprovação da Resolução 70 e a verdadeira revolução gerada em cada vara, comarca e tribunal do Brasil com a aprovação da Meta de Nivelamento 2, de 2009.

Pouco antes do término de meu mandato, vi a criação do projeto Justiça Plena, que estabelecia uma política de acompanhamento de ações de grande repercussão social, como a ação penal decorrente do assassinato da missionária Dorothy Stang, no Pará. Presenciei, igualmente, a instituição do Portal Justiça Aberta, no qual qualquer cidadão podia consultar os dados de produtividade de magistrados e tribunais, bem como de serventias extrajudiciais de qualquer lugar do País, uma ferramenta singular em termos de controle social do Poder Judiciário e accountability de seus agentes e membros.

O intenso desenvolvimento nessa área esbarrou muitas vezes em incompreensão. Algumas atividades eram criticadas a partir do viés corporativo de certos magistrados, Um programa que sofreu reação corporativa desmedida foi o chamado Mutirão Carcerário, que, no âmbito da fiscalização carcerária, afirmou-se com a atividade de determinar diretamente, no espaço de cerca de um ano, a soltura de mais de 20 mil presos que se encontravam vegetando ilegalmente em penitenciárias do país.

Alguns deles continuavam presos por vários anos, até por mais de oito anos, após o cumprimento da pena. Enquadravam-se perfeitamente na categoria do homo sacer, para usar uma figura do Direito romano retomada por Hannah Arendt, Giorgio Agamben, Zygmunt Bauman e Slavoj Zizek: seres humanos sem qualquer lugar na sociedade, plenamente excluídos de todos os benefícios sociais e direitos.

O mutirão teve avaliação positiva de amplos setores das ciências socais que estudavam os graves problemas carcerários brasileiros. Apesar disso, essa atividade foi praticamente extinta com o quarto Presidente (a partir de 2010), em nome do princípio do juiz natural, que, porém, existe para garantia dos cidadãos e não para encobrir a prática relapsa de certos magistrados, contrária à liberdade dos cidadãos.                  

Também a atividade de controle e fiscalização, administrativa, financeira e disciplinar ganhava, cada vez mais, em significado nos primeiros cinco anos. O ponto forte era que, naquela fase, não prevaleceu a seletividade em relação com os mais fortes e os mais fracos. Uma prova disso foi a aposentadoria compulsória de um ministro do Superior Tribunal de Justiça, apesar de todas as pressões que se pretenderam fazer sobre os membros do CNJ naquela ocasião. Caberia apontar para muitos casos, mas mencionarei apenas três em que participei diretamente e que tiveram um impacto no sentido de apontar para um início de mudança de postura das entidades públicas em relação aos mais fortes na estrutura de poder.

Um caso interessante foi a aplicação da pena administrativa máxima, aposentadoria compulsória, a dez magistrados de um Estado da federação, alguns deles desembargadores estaduais. Dirigido por um presidente do tribunal, o esquema referia-se à liberação de pagamento de atrasados, independentemente da ordem de preferência, em troca de doação financeira ou empréstimo para a reconstrução de uma loja maçônica. O CNJ decidiu unanimemente pela condenação. Apesar disso, em uma liminar monocrática, um ministro do STF suspendeu a decisão. Posteriormente, essa liminar foi revogada pelo pleno do Supremo.

Outro caso marcante diz respeito a um concurso para cartório na capital de um Estado do Sudeste. O pedido de anulação do concurso vinha do fato de que uma das primeiras vagas, dando direito à preferência para ocupar um dos cartórios com rendimento anual milionário, ficara com uma namorada do presidente do tribunal, notoriamente reconhecida como alguém sem a formação suficiente para obter aquele resultado.

O relator do processo no CNJ, um representante do Ministério Público Federal, teve a inteligente inciativa de solicitar as provas escritas da senhora aprovada em um dos primeiros lugares. Em um voto brilhante, ele convenceu seus pares de que não se tratava de intervenção em critérios subjetivos de uma comissão de concurso em exercício de sua autonomia, mas de verdadeira fraude. A prova lida no plenário do CNJ apontava notoriamente que a aprovada em um dos primeiros lugares do concurso, preterindo candidatos do mais alto nível de conhecimento jurídico na área, não poderia sequer ser aprovada, mas deveria ser reprovada com nota próxima a zero.

Mesmo a ortografia elementar era desrespeitada: por exemplo, ‘sanção’ era grafado como ‘sansão’. Em face da anulação do concurso, o corregedor nacional de Justiça abriu sindicância contra o referido desembargador.  No entanto, dizia-se que o “padrinho” da senhora era “muito forte”. Assim, logo depois, um ministro do STF concedeu liminar suspendendo a decisão unânime do CNJ e trancando a sindicância. Se não me engano, até hoje, não houve uma decisão final do Supremo. Tudo isso é, ao menos, estranho.

Um caso esdrúxulo diz respeito ao chamado “auxílio-voto”. Em pedido de procedimento de controle administrativo, observou-se que juízes de um Estado do Sudeste recebiam valores, por fora, conforme votos que “preparassem” para desembargadores do tribunal. Os valores eram pagos sem nenhum fundamento legal, em conta distinta da oficial, não constando do contracheque. Além disso, em muitos casos, o pagamento desses valores levava a uma remuneração além do teto remuneratório constitucional.

Por unanimidade, o CNJ decidiu pela suspensão dos benefícios e, em princípio (desde que avaliado cada caso, com amplo direito de defesa), pela devolução das quantias recebidas indevidamente. Foram mais de 300 magistrados que se beneficiaram dessa anomalia corrupta. Tratava-se da última sessão do terceiro presidente do CNJ.

Depois, o novo presidente tentou reverter a solução dentro do CNJ, mas não conseguiu. A imprensa investigativa descobrira que seu filho, magistrado, era um dos beneficiários daquela anomalia corrupta. Entretanto, uma liminar concedida monocraticamente por um dos ministros do STF suspendeu os efeitos ainda relevantes da decisão (o tribunal extinguira um pouco antes essa prática), com o argumento de que houve decisão extra petita, aplicando matéria processual que não se aplica a um procedimento administrativo que poderia ser aberto ex officio. Interessante é que também um dos juízes auxiliares desse ministro fora beneficiário daquela anomalia teratológica. Até hoje não se sabe de uma decisão definitiva.

Os beneficiários, ainda inconformados, entraram com um pedido de processo administrativo disciplinar contra o relator, alegando que ele mudara o voto do plenário ao publicá-lo, quando, na verdade, tratava-se de adequar o voto às ponderações da maioria, que depois ratificou o voto para fins de publicação. Era uma inversão geral de valores, mas isso ainda não enfraquecia o CNJ. 

Daquele momento virtuoso restam, contudo, hoje, as memórias e uma sombra esquálida. O Programa Integrar foi sucedido pelo Programa Eficiência, que se restringia às Varas de Execução Penal, e, em seguida, foi completamente desativado.

As Casas de Justiça e Cidadania, inspiradas nas “Casas de la Cultura Jurídica”, do México, e nas “Volkshochschule” existentes na Alemanha, que chegaram a ser implantadas em várias localidades, logo deixaram de contar com a assistência do Conselho Nacional de Justiça.

As audiências públicas realizadas pela Corregedoria Nacional de Justiça simplesmente não voltaram a ser realizadas, o Programa Começar de Novo foi extinto e os Mutirões Carcerários praticamente não foram mais realizados, embora entre os anos de 2010 e 2011 tenha apreciado mais de 150 mil processos, com a concessão de mais de 25 mil benefícios a integrantes da população carcerária de 19 Estados brasileiros.

As metas de nivelamento nunca mais tiveram a repercussão e o potencial de modificação de cultura organizacional. O programa Justiça Plena foi abandonado e a obrigatoriedade de alimentação dos dados de produtividade dos juízes de primeiro e segundo graus no Sistema Justiça aberta foi suspensa por ofício da atual ministra corregedora nacional de Justiça, sob a alegação de “falta de condições para o juiz trabalhar”.

O Conselho Nacional de Justiça deixou de pontear as providências de melhoria da gestão judiciária e maior eficiência do Poder Judiciário brasileiro para se dedicar a uma agenda de menor relevância para a sociedade, como, por exemplo, a recente edição da Resolução 199, que trata da ajuda de custo para moradia para os membros da magistratura, a qual representa, em termos de política remuneratória, um retrocesso ao período anterior à edição da Resolução nº 13, abordada logo no início deste texto.

Na área do controle administrativo, financeiro e especialmente disciplinar, reduziu-se o impacto de uma atuação sem seletividade, que atingia frequentemente magistrados mais poderosos, especialmente de tribunais do Sudeste e do Sul. A questão não é simplesmente quantitativa, mas qualitativa. Condenar magistrados de primeira instância do interior do Norte e Nordeste, por exemplo, não é nada tão difícil, e os tribunais estaduais já faziam isso no passado. A mudança que o CNJ começara a fazer era condenar gente graúda dos tribunais, especialmente daqueles mais poderosos. A esse respeito, parece ter havido um arrefecimento e uma mudança para a leniência.

Um exemplo dessa situação diz respeito a um poderoso magistrado de Tribunal de Justiça do Sudeste, que já havia ocupado a presidência do tribunal e era presidente do Tribunal Regional Eleitoral. Com vários pedidos de processo disciplinar no conselho, esse magistrado foi julgado pelo CNJ já em 2010, no início da quarta presidência do conselho, quando já havia ocorrido a modificação de parcela de sua composição. Era acusado de fazer campanha, em palanque eleitoral, com a presença do governador do Estado, para o seu irmão, candidato a cargo eletivo. Carregava o bótão do partido. Havia provas como fotos de jornais e vídeos. O advogado, reconhecido nacionalmente, com grande influência política nos tribunais superiores, argumentou, esdruxulamente, que a Constituição não proibia que magistrados participassem eventualmente de campanhas eleitorais e da vida partidária. A proibição seria apenas para a atividade partidária regular e sistemática.

Com um certo ar de ironia, eu indaguei: então, se um ministro do STF participasse, eventualmente, de um programa eleitoral de José Serra na televisão, pedindo voto para esse candidato, e outro, também eventualmente, no programa eleitoral de Dilma Rousseff, pedindo voto para essa candidata, eles não estariam sequer atuando contra a Constituição. Apesar desse argumento, o presidente acatou o argumento do importante causídico, que fora fundamental para a sua escolha para o STF, e conduziu o voto da maioria. Daí, por diante, percebi que o CNJ tinha mudado do amargo vinagre para o vinho das elites.

Aqui cabe uma reflexão. Em minha obra teórica, afirmei que o funcionamento do Estado constitucional do Brasil fica prejudicado por relações de “subcidadania” e “sobrecidadania”. O professor António Hespanha referiu-se a essa minha distinção com a metáfora cidadãos “nanicos” e cidadãos “gigantes”. Outro colega, também magistrado, interpretou da seguinte maneira: o Estado brasileiro é forte com os fracos e fraco com os fortes. Eu diria que, no contexto do Judiciário brasileiro, é possível distinguir “sobrejuízes” ou “superjuízes”, acima da lei e da Constituição, e “subjuízes”, estritamente controlados pelos superiores administrativos, sem possiblidades de exercer o seu direito de crítica, exatamente por causa de sua independência em relação aos poderosos.

Essas transformações teriam ocorrido por causa de uma certa captura do CNJ, especialmente na escolha dos novos membros? Parece-me que, em parte, sim. Nas primeiras composições, os “superjuízes” e “sobrecidadãos” não atinaram para a relevância do CNJ para enfrentar as mazelas do Judiciário e do Estado brasileiro. Daí porque surgiram membros mais independentes ou, no mínimo, menos obedientes. A partir do momento que se percebeu o impacto que o CNJ poderia ter sobre os poderosos e contra as distorções do Judiciário incompatíveis com a constituição e a legalidade, as escolhas passaram a ser mais “cuidadosas”, para que se garantissem mais obediência e certa submissão.

A esse respeito, um exemplo é interessante. Os representantes do Senado e da Câmara dos Deputados, que devem ser cidadãos brasileiros de reconhecida formação jurídica e ilibada conduta moral nos termos constitucionais, foram, incialmente, dois juristas desvinculados do Congresso Nacional. Destaca-se a escolha do professor Joaquim Falcão, como representante do Senado, nos dois primeiros mandatos, a quem substituí honrosamente no terceiro mandato. Nossa atuação independente levou a irritações de “superjuízes” e “sobrecidadãos”.

A partir de então, o Senado passou a escolher para o CNJ um de seus funcionários a serviço de sua cúpula, formada por notórios “sobrecidadãos”. Interessante é que resolução do próprio Senado estabelece que, para a garantia da independência, não podem ser seus representantes no CNJ membros do Senado (senadores), seus parentes até o terceiro grau e parentes de seus servidores até o terceiro grau. É elementar que aqui prevalece o argumento a maiori ad minus, ou seja, se a norma proíbe o mais, ela proíbe o menos. No caso, a proibição de parentes de servidores para fins de independência do cidadão escolhido é muito mais do que a proibição que recai sobre os próprios servidores. Não se trata sequer de uma analogia. É suficiente, nesse casso, apenas uma elementar interpretação extensiva. Apesar disso,  a partir do quarto mandato, o representante do Senado passou a ser um servidor desse órgão, vinculado a cargos comissionados de sua cúpula.

Interessante a esse respeito é o fato de que a Emenda 61, que veio corretamente para superar um impasse constitucional (a contradição entre o dispositivo decorrente da Emenda 45, que estabelecera o limite de sessenta e seis anos para ser membro do CNJ, e o dispositivo que estabelece que a presidência do CNJ é ocupada pelo presidente do STF, que pode estar acima dessa idade), foi utilizada estranhamente para facilitar a escolha de um membro do CNJ com menos de 35 anos.

Na redação originária, havia esse limite, justificável porque os membros do CNJ podem julgar e controlar membros dos tribunais, inclusive superiores, que devem ter, no mínimo, 35 anos. A mudança sorrateira, porém, facilitava a escolha de um servidor do Senado mais novo, como ocorreu no quarto mandato. Essa manobra levou à situação esdrúxula de que, atualmente, o Senado e os outros órgãos competentes podem escolher até mesmo um cidadão de 21 anos para ser membro do CNJ.                                                        

Tudo isso nos leva a concluir que o Conselho Nacional de Justiça, a partir dos fins de 2010, salvo algumas iniciativas recentes positivas (tal como a Resolução 194, que estabelece a Política de Atenção Prioritária ao Primeiro Grau de Jurisdição e os aprimoramentos que vêm sendo feitos no Processo Judicial Eletrônico e Justiça em Números), passou a perder, em um crescendo, a importância para a concretização e a realização da Constituição, do princípio da legalidade e do Estado de direito no Brasil, importância que assumira inicialmente, tendo sido esvaziado em suas funções mais relevantes e, em parte, capturado pelos “superjuízes” e “sobrecidadãos”.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

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