Opinião

Novo CPC regulou normas de cooperação internacional de forma sistemática

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17 de outubro de 2015, 8h30

A necessidade de se produzir prova ou obter informações no exterior com o objetivo de instruir investigações ou processos criminais em curso, tem provocado a discussão quanto ao procedimento de cooperação jurídica internacional mais adequado, se a carta rogatória ou o pedido de auxílio direto.

A carta rogatória é o instrumento de cooperação entre autoridades judiciais. Já o auxílio direto pode ser definido como a cooperação realizada entre Autoridades Centrais dos Estados-parte de convenções internacionais que preveem esse mecanismo de assistência mútua, ou, ainda, de acordos ou tratados bilaterais que tratam especificamente do tema.

Mas o auxílio direto não se particulariza somente pelo fato de que o seu processamento é gerenciado pelas autoridades centrais. O que o singulariza, na realidade, é o fato de que o Estado estrangeiro não se apresenta na condição de juiz, mas de administrador, porquanto não encaminha um pedido judicial de assistência, mas sim uma solicitação para que a autoridade judicial do outro Estado tome as providências e as medidas requeridas no âmbito nacional.

Enquanto a carta rogatória está regulamentada nos Códigos de Processo Civil e de Processo Penal, o auxílio direto estava previsto nos acordos bilaterais e multilaterais firmados pelo Brasil sobre cooperação jurídica internacional, porém, com o reconhecimento dos Tribunais Superiores quanto à sua legalidade e presteza.

No entanto, a Lei 13.105/2015, que instituiu o Novo Código de Processo Civil, e que entrará em vigor em 2016, dedicou, de maneira inovadora, um capítulo específico à cooperação internacional. Verifica-se uma preocupação do legislador em estabelecer diretrizes a orientar a cooperação jurídica, como, por exemplo, o respeito ao devido processo legal no Estado requerente, e a inadmissibilidade de atos que contrariem ou produzam resultados incompatíveis com as normas fundamentais que regem o Estado brasileiro.

Cuidou ainda de especificar o objeto da cooperação, como os atos de comunicação judicial e extrajudicial, a coleta de provas e obtenção de informações, homologação e cumprimento de decisão, medidas judiciais de urgência, e qualquer outra providência judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.

E, por fim, a nova lei regulamentou dois procedimentos, notadamente a carta rogatória e o auxílio direto, e estabeleceu o objeto da assistência como o critério de diferenciação entre ambos. Por assim dizer, quando o objeto da assistência decorrer diretamente de decisão de autoridade judiciária, hipótese em que o procedimento cabível será a carta rogatória.

Ocorre, todavia, que a própria lei prescreve que o auxílio direto poderá ter como objeto qualquer medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira. O que possibilita concluir que o auxílio direto pode ter por objeto sim, uma decisão judicial, contudo, tal decisão será de competência da autoridade judiciária do Estado requerido e não do Estado requerente, porque quando a decisão judicial emanar do Estado requerente o procedimento será a carta rogatória e não o auxílio direto.

Outra distinção importante entre ambos os procedimentos verifica-se na cooperação passiva, cujo objeto verse sobre matéria sujeita ao controle jurisdicional, hipótese em que, quando se tratar de carta rogatória, a competência será do Superior Tribunal de Justiça; ao passo que quando se tratar de auxílio direto, a competência jurisdicional será do juiz federal do 1º grau.

Embora se verifique um claro avanço no plano regulatório, é possível ainda identificar situações de conflito na utilização de ambos os procedimentos de cooperação, o que a nosso ver não pode constituir causa de invalidação do ato a ser praticado na hipótese de substituição de um pelo outro.

Senão vejamos. O dinamismo que caracteriza a cooperação jurídica internacional sempre intro­duz novos desafios a refletir sobre a funcionalidade dos instrumentos de assistência. Não se está a dizer que a fluidez da cooperação jurídica internacional signifique a possibilidade de proceder de qualquer forma, pelo contrário, o seu caráter dinâmico impõe na realidade a busca sempre incessante por mecanismos que assegurem ao mesmo tempo o seu desenvolvimento de forma segura.

Frise-se inicialmente que a segurança pretendida na cooperação jurídica internacional é traduzida pela preocupação em se tutelar adequadamente os direitos e interesses envolvidos, seja na relação entre os Estados seja em relação às pessoas interessadas, seja numa dimensão coletiva ou individual.

Por outro lado, a eficiência almejada revela a preocupação com o resultado perseguido por meio do mecanismo de assistência, e os eventuais reflexos que essa preocupação possa gerar em relação ao seu processamento, como, por exemplo, a simplificação das formas. O equacionamento dessa questão sustenta-se nos fundamentos que explicam e legitimam o recurso à cooperação.

Em primeiro lugar, tem-se que o fundamento da cooperação internacional repousa na confiança mútua entre os Estados cooperantes, cuja necessidade é gerada pela complexidade social, fruto da intensa mutabilidade das relações humanas no tempo e no espaço, e cuja utilidade decorre do significativo aumento das possibilidades para experiências e para as ações[1].

Em segundo lugar, a construção da confiança impõe o exercício do valor solida­riedade, o qual constitui fundamento dos direitos, e que significa uma relação entre pessoas, que participam com o mesmo interesse em certa coisa, e que retrata a atitude de uma para com a outra quando se coloca o esforço num determinado tema delas[2].

O exercício do valor solidariedade pressupõe o estabelecimento de uma relação de identidade entre os Estados a fomentar o intercâmbio e o auxílio recíproco. Esta relação de identidade pode ser construída segundo critérios variados, como a língua, a raça, a religião, os interesses comerciais, e, também, os va­lores tutelados.

Em terceiro lugar, a relação de identidade que se estabelece entre os Estados, sobrepondo-se às diferenças, repousa no ideal universalista dos direitos humanos, difundidos por meio de tratados internacionais, reveladores de um padrão de convergência no plano normativo, e que compreendem a dignidade do homem, as liberdades, a ordem do bem-estar, o nível de vida, o nível de benefícios, o acesso aos benefícios, na expressão da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948[3].

Quanto maior a convergência e proximidade em relação ao citado padrão, tanto mais facilitada e intensa a confiança e maior a possibilidade de uma assistência mútua melhor sucedida. O reconhecimento do padrão normativo dos direitos humanos como base para a relação de confiança mútua entre Estados aporta mais segurança na utilização e no processamento da cooperação jurídica internacional, na medida em que se fundamenta na necessidade de promoção e proteção desses valores.

Da mesma forma o reconhecimento desse padrão simplifica a interlocução entre os Estados e estabelece um padrão de linguagem, minimiza os efeitos da diversidade entre os sistemas jurídicos e a variedade de procedimentos, de modo a proporcionar mais eficiência. Segundo Antonio Scarance Fernandes, o “direito a um sistema de regras e princípios que conjuguem eficiência e garantia não representa direito a um procedimento certo, determinado, delineado, com todos os seus atos e fases, em sequência predeterminada, mas o direito a um procedimento assentado em alguns paradigmas extraídos de normas constitucionais do devido processo legal.”[4]

Nem todo ato do procedimento constitui expressão das garantias processuais, da mesma forma que nem toda diferença de procedimento revela uma incompatibilidade insuperável, se atendidos os parâmetros que se extraem das normas constitucio­nais, os quais, no tocante às garantias processuais, são derivados da matriz definida nos tratados internacionais de direitos humanos.

Nesse contexto, a carta rogatória, tradicional procedimento de cooperação jurídica internacional entre autoridades judiciárias, para o fim de comunicar atos processuais, produzir e compartilhar provas, adotar medidas cautelares de natureza real, dentre outros, sofre a “concorrência” de outros procedimentos menos burocráticos, dentre os quais o pedido de auxílio direto.

Trata-se de um inequívoco movimento de deformalização, de busca por fórmulas alternativas aos métodos mais formais e convencionais, principalmente aqueles que apresentam um maior déficit de operacionalidade, sem que isso, todavia, implique o sacrifício de valores essenciais, como a legalidade, o acesso à justiça, por exemplo.

Como visto acima, o pedido de auxílio direto representa um ato de provocação da autoridade estrangeira, que possui plena capacidade cognitiva para deliberar o que for necessário em relação à iniciativa do solicitante, que não é somente a autoridade judiciária, diferentemente da carta rogatória, cujo procedimento no Estado requerido comporta tão somente mero juízo de prelibação sobre o ato juris­dicional emanado do Estado requerente.

De fato a distinção entre os dois procedimentos tem se mostrado de difícil sistematização, principalmente sob o pretenso argumento de que em alguns assuntos haveria reserva material em relação ao uso da carta rogatória, como nos casos em que o Brasil, por exemplo, figura como Estado requerido nos pedidos de quebra de sigilo bancário, em que há reserva da jurisdição.

A opção entre um ou outro procedimento deve estar associada não somente ao objeto do pedido de assistência, mas sim à existência ou não de acordo multilateral ou bilateral entre os Estados cooperantes, bem como ao nível de urgência e celeridade que porventura a medida exija. Da mesma forma não parece razoável qualificar a carta rogatória como um procedimento que revelaria maior preocupação com os valores essenciais do processo justo, uma vez que o auxílio direto igualmente submete-me ao mesmo padrão de exigências, porém, dotado de uma ritualidade mais simplificada, mas não menos garantista.

Impõe-se interpretar tal aparente situação de conflito sob a premissa do que se mostra mais favorável à cooperação significa, porque nesse caso, interpretar a favor da cooperação implica reforçar a preocupação em acentuar a sua utilização como instrumento de promoção e defesa de direitos, seja numa dimensão individual ou mesmo coletiva.

Não se pode negar que o recurso à cooperação por meio do auxílio direto tem se mostrado ao mesmo tempo um imperativo de maior agilidade e eficiência, mas também um instrumento de efetiva promoção e proteção de direitos. A construção de uma cooperação mais direta parte do pressuposto de que os Estados envolvidos possuam uma relação de identidade no tocante a determinados valores comuns, como aqueles expressos nos documentos internacionais de direitos humanos, a legitimar uma assistência mais intensa e de melhor qualidade.

Exemplo dessa discussão verificou-se no julgamento da Reclamação 2.645 apresentada por Boris Abramovich Berezovsky junto ao Superior Tribunal de Justiça, ao fundamento de que o Juiz da 6ª Vara Federal Criminal da Subsecção Judiciária de São Paulo, SP, nos autos do Processo 2006.61.81.008647-8, usurpou a sua competência, definida no art. 105, I, i, da Constituição, para a concessão de exequatur a cartas rogatórias.

A usurpação teria consistido na decisão de autorizar, a pedido do Ministério Público Federal, a remessa de cópia do 'hard disk do computador apreendido em poder de Boris Berezovsky para a Procuradoria Geral da Federação Russa, em atendimento a ofício encaminhado pelo Vice-Procurador Geral daquele país. A Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura apresentou voto divergente, manifestando-se pela procedência da Reclamação, sob o argumento de que o pedido de compartilhamento de prova formulado pela Procuradoria-Geral da Rússia estaria sujeita ao controle jurisdicional, cuja competência constitucional é do Superior Tribunal de Justiça.

Argumentou a ilustre ministra que o pedido de cooperação deu-se no contexto da ação penal que tramita no Brasil, de modo que o seu objeto qualifica-se como ato de prova e não mero ato de investigação como sustentado pelo Relator. Afirmou, ainda, que por tal razão, o compartilhamento das provas constantes do processo judicial pressupõe controle jurisdicional, e que na hipótese do compartilhamento de dados constantes do hard disk, alusivos à intimidade e à vida privada do acusado, impõe a observância da competência do Superior Tribunal de Justiça.

No entanto, o voto vencedor, do então ministro Teori Zavascki, ressaltou que o objeto do pedido da cooperação tinha por base a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, e que não estava sujeito à reserva da jurisdição, porquanto o hard disk já se encontrava apreendido. Além do mais, afirmou que mesmo assim o pedido foi judicializado pelo Ministério Público Federal e submetido ao controle jurisdicional da 6ª Vara Criminal da Justiça Federal da 3ª Região.

É possível concluir, assim, que se a matéria objeto do pedido de cooperação estiver sujeita à reserva da jurisdição segundo a legislação brasileira, como, por exemplo, a quebra de sigilo bancário e fiscal, o sequestro de bens, a interceptação das comunicações, necessária a observância da competência do Superior Tribunal de Justiça no controle de admissibilidade da solicitação de auxílio, seja a carta rogatória ou o pedido de auxílio direto.

Se por outro lado, se a matéria objeto do pedido de cooperação não estiver sujeita à reserva da jurisdição, como o compartilhamento de um documento, de um depoimento de testemunha, de uma prova pericial já produzida, não será necessário observar a competência do STJ, desde que o pedido tenha sido formulado com base em acordo bilateral ou tratado multilateral de que ambos os Estados sejam partes, e sem que necessariamente haja intervenção jurisdicional.

Nesse sentido, andou bem o legislador no Novo Código de Processo Civil ao regular o instituto da cooperação de forma aberta e sistemática, e não de forma restrita e limitada aos procedimentos por si só, como sempre ocorreu, tendo em vista a dinâmica que propicia a possibilidade de ampliação e adoção de novos procedimentos que não se ajusta à ideia de um modelo fechado e impermeável.


[1] LUHMAN, Niklas. Confianza. Anthropos. México: Universidad Iberoamericana, 1996. p. 20.

[2] CORTINA, Adela. Ética sin moral. Madrid: Tecnos, 1990. p. 288.

[3] LARGEAULT, Anne Fagot. Sobre o que basear filosoficamente um universalismo jurídico? In: CAS­SESSE, Antonio; DELMAS-MARTY, Mireille. Existe um conflito insuperável entre soberania dos Estados e Justiça penal internacional? São Paulo: Manole, 2004. p. 100. E na ideia de uma ofensa aos direitos humanos há ao mesmo tempo a ideia de ofensa ao bem estar (a pobreza crônica, a fome, a miséria). No mesmo senti­do Mireille Delmas-Marty (DELMAS-MARTY, Mireille. Os crimes internacionais podem contribuir para o debate entre universalismo e relativismo de valores? In: CASSESSE, Antonio; DELMAS-MARTY, Mireille. Existe um conflito insuperável entre soberania dos Estados e Justiça penal internacional? São Paulo: Manole, 2004. p. 67 71)..

[4] FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e procedimento no processo penal. São Paulo: RT, 2005, p. 43.

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