Academia de Polícia

Ato do indiciamento deve ser devidamente fundamentado

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

13 de outubro de 2015, 12h00

Spacca
Caricatura Márcio Anselmo Delegado da Polícia Federal [Spacca]O tema do indiciamento foi notícia na última semana com a aplicação do dispositivo da lei de lavagem de dinheiro que prevê o afastamento cautelar de servidor público em casos de indiciamento por crime de lavagem de dinheiro.

Relegado a um simples parágrafo em grande parte dos manuais de direito processual penal, a figura do indiciamento consiste em um dos atos principais da investigação criminal consubstanciada no inquérito policial. Moraes Pitombo[1] se utiliza da etimologia do termo, que congrega a palavra "indício" mais o sufixo "aumento", concluindo que indiciar, sob esse enfoque, trata-se de demonstrar por vários indícios, permitindo acusação. No presente artigo trataremos de seu conceito e elementos e, num próximo momento, de seus efeitos.

O ato de indiciamento é o ato do Delegado de Polícia, enquanto presidente da investigação, via de regra praticado ao término da mesma, ao considerar concluída a fase de coleta de elementos probatórios do delito investigado, quando é possível concluir-se pela autoria de determinado crime, individualizando-se o autor.

Funciona, portanto, como uma das etapas da formação da culpa na investigação criminal, quando os elementos constantes no inquérito policial permitem ao Delegado de Polícia formar sua convicção de autoria e materialidade na investigação criminal, no processo de filtragem apontado por Aury Lopes Jr[2], “purificar, aperfeiçoar, conhecer o certo”.

Edílson Mougenot Bonfim[3] destaca a mudança no status do investigado, de simples suspeito de ter praticado a infração penal passando a ser considerado o provável autor da infração. Trata-se de ato formal, conforme Alexandre Morais da Rosa[4], que consubstancia uma “declaração pelo Estado de que há indicativos convergentes sobre sua responsabilidade penal, com os ônus dai decorrentes” ou, ainda, uma “declaração de autoria provável”, segundo Capez[5].

O ato do indiciamento, portanto, é dotado de fundamental importância, notadamente sob a ótica das garantias ao indivíduo, ao tornar clara a posição do sujeito passivo da investigação, quando o mesmo é apontado pela autoridade policial, a partir de sua convicção, como provável autor da infração penal investigada. Não se trata de um juízo de certeza, mas de um juízo indiciário — alcançado a partir dos indícios obtidos com a investigação criminal — que apontam o sujeito como autor do fato criminoso.

A investigação criminal busca verificar empiricamente se um sujeito cometeu determinado delito, que, conforme aponta Luigi Ferrajoli[6], deve ser anteriormente estabelecido por lei com exatidão, de forma a identificar quais seriam esses fatos empíricos a serem considerados como delitos.

Nesse caminho, resta a passagem pela compreensão normativa do tipo como caminho indispensável que deve percorrer a autoridade policial no percurso da investigação criminal, uma vez que esta deve ter por objetivo, a partir de elementos primeiros que a subsidiaram, que apontam a prática de um crime, por meio da investigação criminal, buscar tornar claros os limites da infração cometida e os elementos de autoria.

Eliomar da Silva Pereira[7] constrói sua definição de investigação criminal como uma

pesquisa, ou conjunto de pesquisas, administrada estrategicamente, que, tendo por base critérios de verdade e métodos limitados juridicamente por direitos e garantias fundamentais, está dirigida a obter provas acerca da existência de um crime, bem como indícios de sua autoria, tendo por fim justificar um processo penal, ou sua não instauração, se for o caso, tudo instrumentalizado sob uma forma jurídica estabelecida por lei.

Deve o Delegado de Polícia, no curso da investigação criminal, pautar-se pelos conhecimentos angariados pela teoria do crime, que, ainda segundo o autor[8], “cumpre uma função operativa, em virtude de seu caráter metodológico, ao fazer a mediação entre o fato punível (como objeto da realidade) e o tipo penal (como hipótese legal normativa)”. Conforme argumenta Andre Nicollit[9], “o Delegado de Polícia é o primeiro a fazer um juízo de tipicidade da conduta.” Nesse papel, entendemos que o ato de indiciamento consiste num juízo de tipicidade qualificado, uma vez que já houve um primeiro juízo de tipicidade por parte da autoridade policial quando da instauração do inquérito policial. Este juízo no ato do indiciamento consiste, conforme desta Bruno Titz de Rezende[10], “verificação se determinada conduta se "amolda" a algum dos tipos penais dos crimes previstos em nosso ordenamento jurídico”.

Para além do juízo de tipicidade, entendemos ainda que, no ato de indiciamento o Delegado de Polícia deve também apontar os elementos colhidos que interfiram na antijuridicidade e culpabilidade, pois, como deve ocorrer no Estado de Democrático de Direito, a investigação não deve ter caráter se atingir um “culpado” a qualquer custo, mas sim funcionar como um filtro a evitar um processo penal desnecessário. Veja-se, na mesma coluna, o artigo de Henrique Hoffmann, ao tratar da aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia.

As excludentes de ilicitude devem ser consideradas pela autoridade policial no momento do juízo de indiciamento. Conforme abordam Luis Flávio Gomes e Ivan Luis Marques da Silva[11], em que pese tratando da lavratura da prisão em flagrante, entendemos que tal raciocínio aplica-se igualmente ao ato de indiciamento:

A verdade é que o Delegado de Polícia — autoridade com poder discricionário de decisões processuais — analisa se houve crime ou não quando decide pela lavratura do Auto de Prisão. Ele não analisa apenas a tipicidade, mas também a ilicitude do fato. Se o fato não viola a lei, , mas ao contrário é permitido por ela (artigo 23 do CP) não há crime e, portanto, não há situação de flagrante. Não pode haver situação de flagrante de um crime que não existe (considerando-se os elementos de informação existentes no momento da decisão da autoridade policial). O Delegado de Polícia analisa o fato por inteiro. A divisão analítica do crime em fato típico, ilicitude e culpabilidade existe apenas por questões didáticas. Ao Delegado de Polícia cabe decidir se houve crime ou não. E o artigo 23, incisos I a III, em letras garrafais, diz que não há crime em situações excludentes de ilicitude.

No mesmo sentido, Fabrício de Santis Conceição[12] argumenta que:

Caso o delegado entenda, juridicamente, analisando o fato sob o prisma de quaisquer teorias da tipicidade que adote (clássica, finalista, conglobante, imputação objetiva, constitucionalista do delito, etc), que o ‘autor’ não praticou “crime”, então a única solução será decidir pelo seu não–indiciamento, posto que não lhe compete indiciar “autor de fato ATÍPICO”, nem “autor de conduta típica e LÍCITA”, mas sim “autor de infração penal”, em outras palavras, autor de crime.

A Lei 12.830 /2013 trouxe, em seu artigo 2°, parágrafo §6º “o indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.” Assim, o dispositivo legal só vem a corroborar com esse entendimento no que tange à análise técnico-jurídica do fato, uma vez que, ainda segundo o mesmo autor, “deverá o delegado de polícia cumprir seu mister de forma completa, ou seja, apurar a “autoria de crime”, e não apenas apurar autoria de “metade do conceito analítico de crime” (autoria de fato típico).” (grifo no original).

Nos parece, portanto, indiscutível que o Delegado realize juízo de valoração da conduta no inquérito policial. Como bem pondera Paulo Braga Castello Branco[13], “o papel do delegado de polícia é de juiz do fato. Não é o juiz das linhas do processo, mas do fato bruto”. Essa deve ser a interpretação coerente com o Estado Democrático de Direito.

Quanto à sua natureza, pode ser entendido como um ato administrativo com efeitos processuais, cujas consequências são bastante claras. Sylvia Steiner[14] ressalta que

“o indiciamento formal tem consequências que vão muito além do eventual abalo moral que pudessem vir a sofrer os investigados, eis que estes terão o registro do indiciamento nos Institutos de Identificação, tornando assim público o ato de investigação. Sempre com a devida vênia, não nos parece que a inserção de ocorrências nas folhas de antecedentes comumente solicitadas para a prática dos mais diversos atos da vida civil seja fato irrelevante. E o chamado abalo moral diz, à evidência, com o ferimento à dignidade daquele que, a partir do indiciamento, está sujeito à publicidade do ato”.

Marta Saadi aponta ainda o indiciamento como condição para o exercício do direito de defesa na fase investigatória “a partir do qual se deve, necessariamente, garantir a oportunidade ou ensejo ao exercício do direito de defesa”.[15]

Trata-se de ato fundamentado, no qual a autoridade policial deve expor os elementos existentes na investigação que lhe permitiram concluir pela formação de culpa, no seu cargo, em relação a determinado sujeito.

O Superior Tribunal de Justiça, a título de exemplo, quando do julgamento do HC 8.466/PR, tendo como relator o ministro Félix Fischer, concluiu que o indiciamento só pode ser realizado quando demonstrada fundada e objetiva suspeita de participação ou autoria:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. FALSUM. INDICIAMENTO PRECIPITADO. INQUÉRITO. I – Se há indícios da prática de crimes, incabível o trancamento do inquérito. II – Todavia, o indiciamento só pode ser realizado se há, para tanto, fundada e objetiva suspeita de participação ou autoria nos eventuais delitos. (STJ, 5ª turma, HC 8466/PR, relator: Ministro Félix Fischer).

Em que pese não fosse exigida sua motivação, o artigo 52, inciso I da Lei 11.343/06 já previa que:

Art. 52. Findos os prazos a que se refere o art. 51 desta Lei, a autoridade de polícia judiciária, remetendo os autos do inquérito ao juízo:

I – relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a levaram à classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente; ou (…) [grifo nosso]

Com a redação introduzida pela Lei 12.830, se fez claro em estabelecer a necessidade de fundamentação do ato, mediante análise técnico-jurídica. Isto significa que a autoridade policial, no despacho em que decidir pelo indiciamento, deverá fazê-lo de modo a fundamentá-lo nos elementos de investigação constantes nos autos que apontem para a autoria e materialidade.

Esta também é a posição de Júlio Mirabete[16], para quem não há discricionariedade por parte da autoridade policial quando existem indícios do cometimento do crime.

Trata-se ainda de ato vinculado, que não deve ficar sob a discricionariedade do Delegado de Polícia, como bem aponta Moraes Pitombo[17]:

Indiciar alguém, como parece claro, não deve surgir qual ato arbitrário, ou de tarifa, da autoridade, mas, sempre legítimo. Não se funda, também, no uso do poder discricionário, visto que inexiste, tecnicamente, a possibilidade legal de escolher entre indiciar ou não. A questão situa-se na legalidade estrita do ato. O suspeito, sobre o qual se reuniu prova da infração, tem que ser indiciado. Já aquele que, contra si, possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito.

Deve ser destacado ainda que o ato de indiciamento no inquérito policial é privativo do presidente da investigação, sendo incabível, no caso, requisição por parte do Ministério Público ou do Poder Judiciário para que o faça, tendo em vista ser ato de seu juízo de valor. Dessa forma, requisições para indiciamento formuladas no bojo da investigação são ilegais e não carecem de cumprimento, como confirmam o Supremo Tribunal Federal[18] e a doutrina[19].

Ainda nesse sentido, entendemos que a oportunidade do indiciamento deve ser ao final da investigação, no momento imediatamente anterior ao interrogatório do investigado, então indiciado. O momento deve marcar ainda o acesso à defesa a todos os elementos indiciários constantes nos autos, a fim de propiciar-lhe a devida defesa técnica. Pode não ser o primeiro momento em que o então indiciado é ouvido no inquérito, uma vez que o mesmo pode ter sido chamado anteriormente a prestar declarações, cujo teor não foi passível de elidir o juízo da autoridade policial quanto ao cometimento da infração penal.

Consiste ainda num ato declaratório da autoridade policial, por meio da qual a mesma expressa sua convicção pela culpa lato sensu do investigado.

Nesse contexto, o indiciamento é o ato pelo qual o delegado de polícia formaliza a investigação criminal em relação ao suposto autor ou partícipe de determinado delito, a partir de elementos probatórios mínimos. O indiciamento não é, portanto, ato arbitrário da autoridade policial, devendo ser devidamente fundamentado.

Em suma, compreendemos o ato do indiciamento como um ato administrativo com efeitos processuais, vinculado, declaratório, fundamentado e privativo do Delegado de Polícia enquanto autoridade policial.


1 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. O indiciamento como ato de polícia judiciária. Revista dos Tribunais, n. 577.

2 LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 280.

3 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 124.

4 ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 120.

5 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 92.

6 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT, 2002, p. 38.

7 PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da Investigação Criminal – uma introdução jurídico-científica. Coimbra: Almedina, 2010, p. 86-87.

8 PEREIRA, Eliomar da Silva. Op. Cit., p. 229.

9 NICOLLIT , Andre Luiz. Manual de Processo Penal. 3ª Ed. São Paulo: Elsevier, 2012, p. 86.

10 REZENDE, Bruno Titz de. O livre convencimento do delegado de polícia no indiciamento e na instauração do inquérito policial. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3089, 16 dez. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20665>. Acesso em: 22 jul. 2013.

11 GOMES, Luis Flávio. SILVA, Ivan Luis Marques da. Prisão e Medidas Cautelares – Comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. 3ª edição. São Paulo: RT, 2011, p. 138.

12 CONCEIÇÃO, Fabrício Santis. Delegado é o “ Senhor da Tipicidade Penal”?. Disponível em <http://delegados.com.br/exclusivo/121-colunas/fabricio-de-santis/792-delegado-de-policia-senhor-da-tipicidade-penal>. Acesso em: 22 jul. 2013.

13 BRANCO, Paulo Braga Castello. A análise da antijuridicidade da conduta pelo delegado de polícia sob a perspectiva da teoria dos elementos negativos do tipo penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3609, 19 maio 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/24487>. Acesso em: 22 jul. 2013.

14 STEINER, Sylvia. O indiciamento em inquérito policial como ato de constrangimento – legal ou ilegal. Revista Brasileira de Ciência Criminais, v. 24, 1998, p. 307.

15 SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 262-263.

16 MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

17 Op. Cit.

18 STF, HC 115.015, Rel. Min. Teori Zavaski, DP 27/08/2013.

19 LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de processo penal. Niterói: Impetus, 2013, p 143.

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