Diário de Classe

Querendo ou não, para argumentar, necessito antes de hermenêutica

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10 de outubro de 2015, 8h00

Spacca
Na última quinta-feira (8/10), esta ConJur publicou um artigo do professor Manuel Atienza intitulado Teorias da argumentação jurídica e hermenêutica não são incompatíveis. Nesse texto, honrou-nos o professor Manuel Atienza com um comentário direcionado a uma coluna que assinamos juntos neste Diário de Classe (leia aqui). De forma geral, Atienza realiza uma ligeira — talvez ligeira demais — avaliação dos argumentos que apresentamos em nosso texto e efetua anotações pontuais a respeito de três afirmações que fizemos e que, segundo ele, poderiam ser esclarecedoras.

Na coluna de hoje, pretendemos traçar alguns contornos mais precisos para aquilo que assentamos na oportunidade anterior e, ao mesmo tempo, apreciar as considerações formuladas pelo professor Atienza para saber se elas são, de fato, corretas.

A hermenêutica funda-se em algo que podemos mencionar como empatia: uma disposição ou abertura ao outro que alimenta um certo amor pelo diálogo. É com esse intuito que daremos continuidade à discussão que foi, de certa forma, iniciada com a publicação da entrevista do professor Atienza e que, a partir de seu último texto, passa a projetar novos horizontes temáticos.

Registramos de novo o notável impacto que sua obra produz no pensamento jurídico brasileiro. Agregamos, ademais, que nutrimos um profundo respeito por sua trajetória. As considerações que se seguem são de cunho estritamente acadêmico.

Qual era o propósito básico de nossa coluna anterior?
O propósito básico da coluna anterior girava em torno da “questão Heidegger”. Tratou-se de elucidar o papel desempenhado pelo paradigma filosófico da fenomenologia hermenêutica no contexto da reflexão jurídica, uma vez que algumas assertivas lançadas — com certa ironia — por Atienza em sua entrevista pode(ria)m gerar uma série de mal-entendidos. O principal deles reside no preconceito equivocado de que haveria em nossas reflexões uma espécie de passagem direta da filosofia heideggeriana para as questões jurídicas. Ora, achamos que isso já estava claro. Nossa análise é paradigmática. Criticamos os fundamentos do conhecimento.

Nunca pensamos — até porque fazemos já de há muito uma antropofagia de Heidegger, Gadamer, Dworkin etc. — em colocar a hermenêutica a salvo de críticas. O ponto de nosso argumento era outro: a crítica específica feita por Atienza estava errada, levando o leitor ao falso entendimento de que, tanto a aproximação que se faz entre Heidegger e o Direito quanto à própria hermenêutica seriam inócuas (afinal, o que Heidegger tem a ver com o Direito, não é mesmo?). Novamente destacamos: essa critica não se apresenta como válida porque não atinge o ponto mais decisivo do nosso argumento.

Entendemos que há uma questão anterior ao jurídico e que possui espessura filosófica: o problema do conhecimento e o modo como é retratado e enfrentado ao longo da história da Filosofia. Em algumas épocas, há elementos condensadores que nos permitem descrever de que forma essa questão foi tratada pelos autores que dela se ocuparam. Podemos nomear esses acontecimentos como paradigmas filosóficos. Cada vez que observamos um modo específico de se organizar as questões relativas ao conhecimento (questões de método, critérios de verdade etc.), temos aí um paradigma filosófico. Assim, alterando-se o paradigma filosófico, altera-se também a relação que desenvolvemos com os objetos, no nível do empírico. Disso Atienza não se dá conta. O trabalho que desenvolvemos — e que há tempos vem sendo nomeado como Crítica Hermenêutica do Direito — procura escavar a superfície dos conceitos jurídicos para mostrar de que modo eles se relacionam com esses pressupostos gnosiológicos — ou paradigmas filosóficos — que, no fundo, continuam “contando um mito”.

Sobre Heidegger e a crítica das súmulas
Atienza insiste na admoestação, feita em sua entrevista, no sentido de que lhe parece infrutífero procurar encontrar em Heidegger a “chave para compreensão ou crítica das súmulas vinculantes”. Em seu novo texto, Atienza traz à colação um artigo de Lenio Streck que, na interpretação oferecida por ele, poderia corroborar o acerto de sua afirmação. Todavia, entendemos que, mais uma vez, o professor espanhol está equivocado.

Parece-nos claro que, no texto citado, o que se afirma é que as súmulas professam uma crença baseada em um paradigma filosófico que, a pretexto de solver um problema por meio da razão, acaba “contando um mito”. Como já havíamos ressaltado no texto anterior, não se “usa” a filosofia heideggeriana para compreender as súmulas ou, diretamente, criticá-las. A empreitada hermenêutica aqui desenvolvida é mais complexa: com o paradigma filosófico que se ergue a partir da fenomenologia hermenêutica, é possível desconstruir (destruir seria a palavra mais especificamente heideggeriana) os pressupostos filosóficos que sustentam a ideia básica que está na raiz das súmulas vinculantes. No caso, o “mito” contado pelo paradigma filosófico objeto de desconstrução foi nomeado, de forma muito oportuna, por Merold Westphal, como “mito do dado”. Ou seja, a crença de que das coisas emanam essências que são captadas pelo intelecto humano, sendo a verdade a adequação perfeita deste mesmo intelecto com “a coisa” objeto do conhecimento. No caso da súmula, isso não parece evidente? Não se pretende encalacrar dentro de um enunciado todo o sentido emanado daquela específica realidade jurídica?

Ora, há um contexto no qual o texto deve ser lido. O professor Atienza, com essa citação, pretende comprovar que sua primeira “admoestação” estava correta. Só que leu pela metade. A crítica às súmulas — que se estende ao pandectismo, por exemplo — não tem modo mais efetivo de ser feita senão a partir da ruptura filosófica feita pelo giro proporcionado por Heidegger e Gadamer. Trata-se de fazer filosofia no direito, e não filosofia do direito como se esta fosse uma capa de sentido.

Na especificidade sobre o que dissemos
a) “É ontologicamente impossível querer mais analítica e menos hermenêutica”: para Atienza, essa frase, que acabou dando o título de nossa coluna anterior, apresenta-se como um enunciado ininteligível. Aqui Atienza novamente incorre em um problema hermenêutico ao procurar o sentido da parte conferindo pouca importância ao todo. Faltou o círculo hermenêutico. Note-se: todo o argumento de nossa coluna anterior foi construído em torno da “questão Heidegger” e da fenomenologia hermenêutica. Quando estamos a afirmar ser ontologicamente impossível querer mais analítica que hermenêutica, obviamente — mas obviamente mesmo — estamos nos referindo à ontologia fundamental, ou analítica existencial. Supomos aqui que há, digamos, uma pré-compreensão já sedimentada sobre esse assunto. Ora, mesmo na tradição analítica há um autor chamado Ernest Tugendhat que reconhece um acerto decisivo na descrição realizada por Heidegger em Ser e Tempo a respeito da relação entre autoconsciência e autodeterminação. Ontologia fundamental significa: a descrição fenomenológica do ente que possui o privilégio, entre todos os outros, de compreender o ser.

Ou seja, estamos falando de compreender. Estamos falando em círculo da compreensão, logo, círculo hermenêutico. Se estamos falando em ser, estamos falando de ontologia. Mas, por favor, não da ontologia clássica, objetivista.

Por certo que essa compreensão precisa ser explicitada. E a explicitação envolve processos e estruturas que são de natureza analítica: há questões lógicas, epistemológicas e argumentativas que, obviamente, são relevantes. Pedimos desculpas, mas talvez tivéssemos que ter dito o seguinte: não existe uma importância maior da dimensão compreensiva profunda (logos hermenêutico) com relação à dimensão mostrativa ou explicitativa, analítica, argumentativa etc. (logos apofântico). Não se trata de dizer o que importa mais; ou o que é mais necessário. Há um privilégio ontológico da dimensão hermenêutica por causa da relação circular da compreensão. Não é possível, aqui, estender esse assunto, mas há uma vasta literatura que já produzimos sobre isso.

Por todas essas razões é que afirmamos — e continuamos a fazê-lo — ser ontologicamente impossível querer mais analítica que hermenêutica. O máximo que se pode dizer é que as duas possuem relevância para o problema do Direito. Mas, ainda assim, o privilégio ontológico da hermenêutica continuará existindo. Não porque queremos; simplesmente porque acontece! Parafraseando aqui uma assertiva que está no pórtico da 2ª edição de Verdade e Método, de Gadamer.

Por outro lado, há certa inconsistência no argumento de Atienza na medida em que, ao mesmo tempo em que afirma ser ininteligível o enunciado, “é ontologicamente impossível querer mais analítica e menos hermenêutica”, reconhece, linhas adiante, a inevitabilidade da pré-compreensão e de todos os elementos que constituem o privilégio ontológico do logos hermenêutico. Textualmente, Atienza reconhece isso.

Sem entrarmos no mérito da questão teoria da argumentação versus hermenêutica, o que podemos depreender do artigo de Atienza é que ele reconhece — parecendo inclusive asseverá-los — todos os motivos pelos quais afirmamos a dita impossibilidade ontológica de se querer mais analítica que hermenêutica. Assim, seria de se perguntar: a inteligibilidade está mesmo no enunciado?

b) “A analítica, sem hermenêutica, não consegue contribuir com muita coisa”: Atienza afirma ser um exemplo de falsidade textual (sic) essa nossa afirmação, pois a crítica feita por ele não tinha a intenção de suprimir a hermenêutica, apenas diminuir a sua importância que, no seu sentir, lhe era dada por setores da Teoria do Direito no Brasil. Veja que deixamos claro que “não estamos dizendo que a analítica é desimportante. O que estamos afirmando é que a analítica, sem hermenêutica, não consegue contribuir com muita coisa. Isso porque nenhuma argumentação se dá num vácuo de sentido”.  O restante apenas complementa o nosso raciocínio.

De se notar: nessa passagem não estamos diretamente referindo-nos a Atienza. Estamos simplesmente fazendo uma analogia com a construção feita por Ernildo Stein em seu Aproximações sobre Hermenêutica, no qual pode ser lida a seguinte passagem: “A analítica sem a hermenêutica é vazia e a hermenêutica sem a analítica é cega”. Simples assim.

Sobre a questão do(s) positivismo(s)
Um último enunciado de nosso texto que foi objeto direto das críticas de Atienza diz respeito ao problema do positivismo. Nesse caso, há uma interconexão entre a questão envolvendo o positivismo e aquilo que acabou se tornando o elemento central do comentário de Atienza, que é a (in)compatibilidade entre hermenêutica e teoria da argumentação.

Quanto ao “positivismo ingênuo” a que nos referimos no texto, basta dizer que apontávamos para concepções específicas de algumas filosofias da linguagem que desconsideram o caráter histórico — ou de historicidade — da formação dos conceitos. Os conceitos têm história, e isso torna o seu enquadramento muito mais complexo do que uma simples terapia semântica, desconectada da dimensão temporal, possa pretender fazer.

O que se passa com a questão do “objetivismo moral” é exemplo disso. De plano, entendemos que é possível fazer uma distinção entre objetividade do argumento moral e objetivismo moral. Este último é carregado por um sentido histórico que não pode simplesmente ser interrompido por desejo de seu intérprete ou articulador. A linguagem carrega consigo a tradição. É possível, nalguns casos, desligar os elos da tradição a partir de interpretações que operem, hermeneuticamente, na forma da destruição e da (re)construção. Mas há aqui uma série de questões metodológicas envolvidas e que precisam ser explicitadas. Assim, de que modo seria possível falar em objetivismo sem associar o conceito ao realismo filosófico, à metafísica clássica, à ontoteologia etc.? Essa é a pergunta que não quer calar. Ora, parece-nos plenamente possível defender a objetividade de um argumento moral (do tipo “a tortura é um ato atroz”) sem afirmar que se trata de um objetivismo moral. Afinal, a objetividade também é uma questão hermenêutica. Em Hermenêutica Jurídica e(m) crise isso vem bem explicitado como o “mínimo é”.

A questão teoria da argumentação versus hermenêutica e os aspectos positivistas que podem ser anotados em alguns autores argumentativistas (a discricionariedade do ponderador ou do preenchimento da dogmática dos espaços-quadro em Alexy, por exemplo) são questões que necessitam de um espaço maior para serem desenvolvidas. Pretendemos, a partir das interessantes considerações lançadas pelo professor Atienza em seu texto, preparar um artigo, de feições mais fortemente acadêmicas, para publicação.

Por ora, destacamos apenas que outros autores, como é o caso de Paul Ricouer, procuram apontar para as diferenças entre uma teoria interpretativa (mais hermenêutica, portanto) e uma teoria argumentativa. Kaufmann deixa isso bem claro também. Ricouer afirma que a teoria de Dworkin, embora use recorrentemente o termo argumento, é uma teoria interpretativa, e não argumentativa. Isso porque, diferentemente da teoria de Robert Alexy, por exemplo, que possui a característica de reivindicar para a prática argumentativa geral a qualidade de Begründung, ou seja, de fundamentação, Dworkin está muito mais interessado no horizonte político-ético no qual se desdobra a prática interpretativa do Direito. Para ele, afirma Ricoeur, “o Direito é inseparável de uma teoria política substantiva. É esse interesse último que, afinal, o afasta de uma teoria formal da argumentação jurídica”. Assim, voltando-nos para o texto de Atienza, não é que Dworkin “preste muita atenção” ao aspecto “técnico” da interpretação jurídica (sic); é que, para tratar de questões substantivas, como o são as questões de moralidade, de política e jurídicas, o que importa é assumir a responsabilidade de identificar e promover o valor de cada um desses domínios — e isso é uma questão primariamente hermenêutica.

Por fim, cabe ressaltar que esse artigo do professor Atienza acabou por levar a discussão para outros caminhos que não estavam, ao menos explicitamente, em nosso texto anterior. Nesse último caso, como já afirmamos, interessava-nos elucidar alguns elementos da “questão Heidegger”, para evitar mal-entendidos, tão comuns no mundo jurídico. Todavia, esse comentário realizado por Atienza às nossas colocações pareceu mais preocupado em efetuar uma pretensa terapia semântico-conceitual em nossos enunciados do que, propriamente, enfrentar a questão paradigmática que havia sido posta: quais as razões que levam à afirmação de que o paradigma filosófico que se constrói a partir da filosofia hermenêutica não modifica os horizontes interpretativos que possibilitam os trabalhos da Teoria do Direito? Esse era nosso intento inicial que ainda não foi respondido pelo estimado professor.

De todo modo, encontramo-nos sempre abertos para o diálogo franco. Não há, de nossa parte, qualquer enclausuramento para com o discurso do outro. Muito ao contrário: temos uma disposição constante para o debate e discussão de temas acadêmicos. Mas, ao final, não se pode confundir o esforço de defender os posicionamentos forjados por anos de pesquisa com arrogância ou “fechamento para o outro”. Como já disse Gadamer em outra ocasião, mas que cabe perfeitamente para aquilo que aqui queremos mencionar: “A conversação que está em curso subtrai-se a qualquer fixação. Seria um mau hermeneuta aquele que imaginasse poder ou dever ter a última palavra”.     

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