Limite Penal

Processo Penal do esculacho pode até acalmar imaginário, só que não funciona

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9 de outubro de 2015, 8h01

Spacca
Parece uma máxima comum a reposta “dente por dente”. Entretanto, sabemos que a espiral de violência leva à tragédia. Se toda vítima buscar praticar o mesmo mal, chegaremos ao fim. Abdicar, todavia, deste modelo do senso comum não é tarefa fácil. Especialmente porque há pressão macro (comunidade, mídia, grupo etc.) e micro (do sujeito, amigos e familiares etc.). Daí a importância de estudarmos um pouco mais a regra da reciprocidade.

A vingança coletiva endereçada ao “malvado” que me faz sofrer e, portanto, deve “pagar” pelo mal que fez, parece ser a motivação de boa parte dos metidos em processo penal. Não basta apenas processar, nem condenar. É preciso mais. Destruir reputações, mesmo sem devido processo legal, na onda de que precisamos agir imediatamente, sem dó, nem compaixão, especialmente contra os novos “bodes expiatórios” (Rene Girard), cuja punição seria capaz de devolver a ingênua e tranquila “limpeza moral” dos bons, limpinhos e fiéis cumpridores das normas jurídicas.

O fenômeno de eleição de um grupo para o fim de promover a “limpeza ética” sempre foi o mote das campanhas eleitorais, da “vassourinha” ou “os marajás” e manipula o imaginário de uma população excluída da maior parte dos bens de consumo e que, muitas vezes, regozija-se com a desgraça alheia. O espetáculo da punição, desde que deixou de ser público, ou seja, acabaram-se os enforcamentos, as punições em praça pública, parecia sugerir um certo grau civilizatório.

Talvez tenha ocorrido um recalcamento do gozo pela punição alheia, cujas imagens do “simples” encarceramento sejam insuficientes. Quer-se mais. Infligir dor, humilhação, esculacho, tendo no violador da regra social como o foco do ódio, tédio e mal estar de todos os dias. Talvez se houvesse um canal ao vivo dentro dos presídios, um Big Brother Prisional, em que as agruras e violações fossem transmitidas em tempo real, houvesse audiência, comerciais e certo apaziguamento da voracidade por tortura, desgraça, privações, sempre alheias.

O Direito Penal promete a satisfação da pulsão destrutiva ao indicar que a punição resolve alguma coisa, inclusive se pensada na lógica recorrente do aumento das penas, entendidos, para muito, como o custo do crime (Análise Econômica do Crime). Entretanto, basta uma pequena pesquisa para perceber que as vítimas, depois da punição, não se sentem justiçadas. E o motivo é óbvio, como diz Zaffaroni, já que procuramos no lugar errado. Não adianta ir no açougue e querer comprar um celular. O Direito Penal promete o impossível, mas satisfaz, parcialmente, principalmente quem não conhece outra opção. Daí que o sujeito se lança pedindo mais e mais punição, sempre pequena, sempre insuficiente, pois o gozo pleno seria a morte.

De um ato ou conduta visto ou vivenciado, muitas vezes por acumulação (uma pequena frustração diária explode num dia), dispara a sensação de que se é vítima do contexto. Este lugar de vítima precisa ser lido para além das condutas ilícitas, penais ou civis, mas para se perceber, na maioria das vezes, como a falta de um reconhecimento do outro para consigo.

Este fato — objeto da intervenção judicial — promove uma dimensão de algo traumático, de perturbador e que cria uma instabilidade de ordem subjetiva. Daí que precisamos compreender o contexto em que a situação acontece, não somente do ponto de vista objetivo, ou seja, como o ordenamento jurídico dá tratamento, mas principalmente nos efeitos que ocasionam nas pessoas, em especial na que sustenta o lugar de vítima.

A leitura da questão, via psicanálise, poderia demonstrar que a onda criminalizadora, de linchamentos (reais, midiáticos e simbólicos), reiterações de violações, enfim, de punições, no fundo, revela o brutal do humano que posa de salvador da nação, quando, no fundo, mais dia menos dia, será vítima do rebote da punição.

O que nos resta, talvez, seja não participar do espetáculo da punição, sendo, como dizem, impertinente, arrogante e insolente com quem está numa cruzada pela salvação de si mesmo, ainda que querendo aniquilar o outro. A máxima do olho por olho, dente por dente, portanto, voltou à moda.

Anoto que estou rezando para convertidos, porque a imensa maioria, parafraseando Jorge Luis Borges, flana sob a atmosfera de grandes realizações de uma guerra feliz e acorda sob os aplausos da multidão, munidos do sentimento aparentemente de amor, de dias melhores, em que tudo é distinto, até o sabor dos sonhos, eclipsados no imaginário, como todo soldado que vai para uma guerra.

 

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  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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