Opinião

Usuário de drogas afeta apenas sua saúde, e não direitos de terceiros

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4 de outubro de 2015, 7h30

Entre outros temas de extrema relevância que ocupam a pauta de nossa Suprema Corte temos, na ordem do dia, a discussão acerca da constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006. A questão chegou ao STF por intermédio do Recurso Extraordinário 635.659/SP interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em favor de um assistido acusado de trazer consigo, para consumo próprio, pequena porção de canabis sativa, popularmente conhecida como maconha.

O debate que aqui se propõe é saber se o acima citado dispositivo legal está, ou não, em sintonia com a nossa Carta Magna. Pois bem, para enfrentarmos a celeuma, nos socorreremos dos princípios constitucionais sensíveis e dos preceitos gerais que orientam a dogmática penal.

Preambularmente, imperioso destacar que, influenciado pelo lema da Revolução Francesa “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, nosso Legislador Constituinte Originário inseriu na nossa Lei Maior um núcleo intangível de direitos e garantias individuais que não são passíveis de supressão sequer pelo Poder Constituinte Derivado (artigo 60, parágrafo 4º, da CF).

A ratio essendi da inserção deste grupo mínimo de direitos e garantias individuais visa a dar sustentáculo a aquilo que se denomina de alicerce de todo ordenamento jurídico constitucional, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição).

Neste caminhar, temos dentre as cláusulas pétreas, o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, da CF), que como ínsitos à personalidade da pessoa humana, vedam a indevida interferência da coletividade na esfera da individualidade que cada pessoa preserva.

Não menos correto é dizer que tais direitos constitucionais permitem que cada um, desde que não viole direitos de terceiros, viva a sua vida da forma como melhor lhe aprouver, sendo que concepções moralistas sob determinados temas refogem ao princípio da legalidade (artigo 5º, II, da Constituição).

Veja-se que tais preceitos são tão caros ao nosso ordenamento pátrio que trazem como corolário outros princípios, também insertos no núcleo duro de direitos e garantias fundamentais, quais sejam, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo das correspondências, das comunicações telegráficas, dos dados e da comunicação telefônica.

Bem se vê, portanto, que somente em situações excepcionais, expressamente previstas pelo legislador constituinte, se permite o afastamento destes direitos consagrados e a consequente intromissão por parte da coletividade, representada pelo Estado, na esfera do íntimo até então intransponível.

Assim, exemplificando, se sou diabético, mas resolvo incluir na minha dieta diária quantidades significativas de açúcar, não é lícito a outrem intervir em minha “decisão” para obstar o meu direito de me alimentar desta maneira. Do mesmo modo é o direito do cidadão de fazer uso de substâncias entorpecentes, desde que, como já dito, o prejuízo advindo do uso destas não atinja terceiros.

De outro vértice, temos que o princípio da legalidade, insculpido no artigo 5º, XXXIX, da Constituição, destinado a evitar o poder arbitrário do Estado sobre o cidadão, tem extrema relevância na seara penal. Assim, a vontade geral da coletividade somente pode restringir um direito individual quando os direitos da sociedade estiverem potencialmente na iminência de serem atingidos.

Dentro desse espeque temos que o princípio da legalidade, no campo penal, tem como pressuposto a observância de dois preceitos de extrema valia para que a norma a ser editada tenha validade, quais sejam, o da intervenção mínima e o da lesividade da conduta.

Quanto ao princípio da intervenção mínima, também denominado de ultima ratio, como bem leciona André Copetti, em sua obra “Direito Penal e Estado Democrático de Direito, p. 87: “Sendo o direito penal o mais violento instrumento normativo de regulação social, particularmente por atingir, pela aplicação das penas privativas de liberdade, o direito de ir e vir dos cidadãos, deve ser ele minimamente utilizado. Numa perspectiva político-jurídica, deve-se dar preferência a todos os modos extrapenais de solução de conflitos. A repressão penal deve ser o último instrumento, quando já não houver mais alternativas disponíveis.” (negritos nossos).

Inspirados nessa lição passemos a analisar se o preceito secundário do tipo penal sancionador, em comento, necessitaria estar inserido no capítulo “Dos Crimes e das Penas” da Lei 11.343/2006. Deste diploma legal (artigo 28) extraímos que as sanções que poderão ser impostas ao cidadão surpreendido na posse de substância entorpecente para consumo próprio são: “advertência sobre os efeitos das drogas”, prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, sendo certo, ainda, que no caso de descumprimento injustificado das medidas acima por parte do agente, o magistrado poderá submete-lo à “admoestação verbal” e “multa”.

Da leitura das possíveis penalidades a serem impostas ao “usuário”, ora infrator, verifica-se claramente que diante da pouca gravidade dos verbos núcleos do tipo, o legislador ordinário, já numa perspectiva de adequação social, entendeu por bem adotar medidas descarcerizadoras.

Agora, o que devemos ter em mente é que a grande mácula de uma pena não está só no efeito primário, mas, sobretudo, nos secundários, tais como, a possibilidade de gerar reincidência, maus antecedentes, de ser inadmitido em concursos públicos e a pecha de “criminoso”, que no mais das vezes, para além de dificultar o acesso ao mercado de trabalho,  alijará o adicto do seio social.

Assim sendo, temos que os efeitos deletérios acima citados poderão fazer com que aquela pessoa “flagrada” na posse de substância entorpecente para consumo pessoal tenha sérias dificuldades de se ressocializar simplesmente pelo fato de que o legislador ordinário, ao invés de delegar a outras searas a solução deste problema social, talvez por admitir a ineficiência do Poder Público em estabelecer programas eficazes de prevenção ao uso de substâncias psicoativas ilícitas, optou em manter a conduta como ilícito penal transformando, desta forma, o dependente químico, que mais se aproxima da condição de  vítima, em réu.

A pergunta que nesse momento surge é: Uma pessoa surpreendida na posse de drogas ilícitas não poderia, sem a intervenção da “Justiça Penal”, ser encaminhada a “programas ou cursos educativos” sobre os malefícios que o uso indiscriminado de substâncias entorpecentes ocasiona, ou mesmo ser incluída em programas estatais de reinserção no mercado de trabalho e que estariam ligados a tratamento de pessoas vítimas das drogas?

A resposta inclusive, mutatis mutandis, está no próprio artigo 28, quando em seu §7º preceitua que: “O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente, ambulatorial, para tratamento especializado”.

Desta maneira, temos que uma ação cível ordinária de obrigação de fazer ajuizada por determinados legitimados em face do Poder Público poderia surtir melhores resultados do que submeter aquele enfermo, ora adicto, aos rigores da lei penal.

A nosso juízo, inclusive a “advertência sobre os efeitos das drogas” (art. 28, I, da Lei nº 11.343/06) seria melhor empregada e, quiçá, obteria melhor efeito prático, se realizada por profissionais da saúde (médicos, psiquiatras, psicólogos, entre outros) e até por assistente sociais, que pela natureza de suas funções, possuem melhor preparação, ao menos acadêmica, do que um magistrado para tratar deste assunto.

De outro giro, temos que analisar a constitucionalidade do ilícito penal em testilha sob a ótica do princípio da lesividade, ou da ofensividade, como preferem outros. Para tanto, servimo-nos da lição de Oscar Emilio Sarrule, em sua obra “La crisis de legitimidad Del sistema jurídico penal (Abolicionismo o justification), p. 98, citado por Rogério Greco, em seu “Curso de Direito Penal – Parte Geral, Vol. I, p. 53: “As proibições penais somente se justificam quando se referem a condutas que afetem gravemente a direito de terceiros; como consequência, não podem ser concebidas como respostas puramente éticas aos problemas que se apresentam senão como mecanismos de uso inevitável para que sejam assegurados os pactos que sustentam o ordenamento normativo, quando não existe outro modo de resolver o conflito”. (grifos não originais).

Deste ensinamento basilar de Direito Penal temos que enfrentar, por primeiro, a seguinte indagação: há violação a algum bem jurídico tutelado pela norma em debate? Como é cediço e pacificado entre os operadores da ciência criminal, a lei nº 11.343/2006 tem como objetivo proteger a saúde pública. Desta feita, temos que aquele que atinge a própria incolumidade não estaria, em tese, apto a ser considerado como violador da saúde da coletividade.

Isso posto, não há como se admitir que “direitos de terceiros” estariam sendo afetados pela conduta daquele que traz consigo substância entorpecente para consumo próprio.

Certamente, alguns neste momento questionarão: Acaso esta pessoa sob os efeitos de substância entorpecente resolva conduzir um veículo automotor e acabe por ceifar a vida de um terceiro ou mesmo cometa algum outro ilícito penal (furto, roubo, lesão corporal, entre outros) ficaria impune? Ora, o próprio ordenamento penal vigente já dispõe de tipos penais próprios (art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, art. 155, 157 e 129, todos do CP) para punir tais condutas, sendo desnecessário, portanto, a tipificação penal da posse de drogas para uso pessoal.

Digno de realce, também, no viés da observância do princípio da lesividade, que é da índole do nosso ordenamento pátrio não punir a autolesão, como, por exemplo, o é a atipicidade da tentativa de ceifar a própria vida. Nesse sentido precisa é lição de  Rogério Greco, em seu “Curso de Direito Penal – Parte Geral, Vol. I, p. 53, que citando Nilo Batista, em sua“Introdução crítica ao direito penal brasileiro”, p. 92-94, leciona: “O princípio da lesividade, cuja origem se atribui ao período iluminista, que por intermédio do movimento de secularização procurou desfazer a confusão que havia entre o direito e a moral, possui, no escólio de Nilo Batista, quatro principais funções, a saber: a) proibir a incriminação de uma atitude interna; b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais; d) proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.” (grifos nossos).

Concluindo, temos que diante do caráter fragmentário do direito penal, a questão deve ser melhor enfrentada sob a ótica do artigo 196 da Lei Maior, que impõe ao Estado o dever de adotar políticas públicas para a promoção,  proteção e recuperação da saúde pública, sob pena de entendermos que aquelas centenas de pessoas que perambulam pelas “cracolândias” espalhadas pelas cidades brasileiras, trazendo consigo substância entorpecente para uso pessoal, são integrantes de grandes organizações criminosas e não  vítimas de uma sociedade injusta e excludente como a nossa.  

Referências Bibliográficas:

– BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro, Revan, 1996.

– SARRULE, Oscar Emilio. La crisis de legitimidad del sistema jurídico penal (Abolicionismo o justificatión). Buenos Aires: Editorial Universidad, 1998.

– GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral, Volume I, Niterói, RJ, Editora Impetus, 2009.

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