Segunda Leitura

Fatiamento da "lava jato" não pode ser visto como tentativa de esvaziá-la

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de outubro de 2015, 11h11

O Supremo Tribunal Federal decidiu recusar a competência do ministro Teori Zavascki para apurar fatos delituosos atribuídos à senadora Gleisi Hoffmann. O fato gerou suspeitas na sociedade brasileira, no sentido de que esta teria sido uma manobra utilizada para afastar o juiz federal Sergio Moro de parte das ações penais. Manifestos, distribuídos nas redes sociais, atribuíam pesadas ofensas contra alguns ministros da corte.

As suspeitas estão ligadas diretamente ao elevado nível de corrupção existente no país, diariamente divulgado pela mídia. E a tentativa de desqualificar tal fato, com a afirmação de que isso existe desde a carta de Pero Vaz Caminha, não convence. Óbvio que corrupção sempre existiu e óbvio, da mesma forma, que ela nunca esteve tão entranhada na administração pública direta e indireta.

No entanto, é preciso mais razão e menos paixão.

A base para o fatiamento — nome dado pela mídia porque assim se chama a divisão de uma pizza — foi a conclusão de que não havia conexão entre as ações penais envolvendo a Petrobras e outras tantas que surgiram nas sua esteira. O STF entendeu que essa prevenção do relator, Teori Zavascki, existe apenas para os casos de corrupção na Petrobras. Como a acusação envolvendo a senadora Gleisi Hoffmann refere-se a ações no Ministério do Planejamento, Zavascki não estaria prevento.

A consequência de tal raciocínio é a de que o juiz Sergio Moro também não seria competente para outros casos além dos que envolvem a Petrobras. Em outras palavras, ficariam de fora a apuração de corrupção no Ministério do Planejamento, da Saúde, na Eletronuclear, BNDES e outros.

Do ponto de vista técnico, é preciso analisar o artigo 76 do Código de Processo Penal, que trata da conexão entre ações penais diversas. No caso, a hipótese de entrelaçamento dos diversos processos se justifica, ou não, pela regra do inciso III do referido dispositivo, que afirma haver conexão quando a prova de um processo influencia a de outro. É a chamada conexão instrumental que ocorre, por exemplo, no crime de furto e de resistência (STJ, Conflito de Competência 104.193/PR, 3ª Seção, j., 12 de agosto de 2009).

Para chegar-se a uma conclusão de haver ou não conexão entre os casos da Petrobras e de outros órgãos da administração pública, é preciso optar entre duas conclusões:

a) os fatos são conexos, pois a articulação de todos os casos partia do Palácio do Planalto, de cima para baixo, sempre seguindo o mesmo esquema de corrupção (tese defendida na revista Veja 30 de setembro de 2015, p. 54);

b) os fatos não são conexos, porque as vítimas e as demais circunstâncias (data e local) são diferentes, tendo ocorrido somente um encontro fortuito de provas.

O STF, no caso MPF x Hoffmann, optou pela segunda tese. Portanto, a partir de agora, Sergio Moro deverá reavaliar, caso por caso, se a situação é ou não   igual ao caso Hoffmann. Se for igual, ou seja, não houver conexão, deve haver desmembramento, enviando-se o processos eletrônico para o juiz federal do local em que ocorreram os fato, ou seja, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife ou outro lugar.

Os advogados dos denunciados em Curitiba já estão formulando requerimentos de remessa dos processos para outras varas federais. No dia 29 de setembro, Moro já havia recebido e indeferido seis pedidos de desmembramento, (Gazeta do Povo, 29 de setembro de 2015, p. 6). Na sequência, Moro fará a análise de outros tantos requerimentos semelhantes, com o exame das peculiaridades de cada caso.

As decisões do juiz federal serão objeto de recurso ao TRF da 4ª Região. O relator ao qual irão todos os recursos é o desembargador federal João Pedro Gebran Neto, que decidirá com seus pares, Victor Laus e Leandro Paulsen. A Turma é especializada em Direito Penal, todos têm anos de experiência na magistratura e idoneidade moral reconhecida à unanimidade.

Mas, supondo-se que parte das ações penais passem a ter andamento em outras localidades, virá a pergunta inevitável: serão os processos julgados com brevidade? Haverá punição? Ocorrerá a impunidade que tantos temem?

A resposta exige uma observação antecedente. É preciso dizer que o fatiamento será um problema mais do Judiciário do que da Polícia Federal ou do Ministério Público Federal. Esses órgãos podem dividir a ação dos seus membros pelo território nacional, compartilhar conhecimentos. O Judiciário, não. Dará mais trabalho, mais despesas (pagamento de diárias), mas o resultado será o mesmo ou quase. A Polícia Federal e o MPF estão preparados para enfrentar os desafios, possuem profissionais altamente especializados e que dominam a criminalidade econômica.

Feito esse registro, dá-se a resposta: sim e não.

Sim, haverá redução da efetividade e os resultados não serão os mesmos. É certo que todos os juízes federais têm ótimos conhecimentos jurídicos, os concursos são muito difíceis nas cinco regiões. Também todos, salvo episódios isolados, como o do uso do luxuoso automóvel de Eike Batista, têm procedimento ético.

Todavia, tais qualidades não bastam para casos como esses. Para presidir tais ações penais é necessário mais. É preciso energia, renúncias, certa dose de risco pessoal, trabalhar muito além das horas de expediente, apoio da família, discrição, tudo sem perder a imparcialidade e o respeito ao direito de defesa.

As pessoas são diferentes e afirmar que todos são iguais é ingenuidade ou hipocrisia. Pessoas em geral, e juízes em particular, são diferentes.

E não é só isso. Há também a expertise. Processos como os da operação “lava jato” não são rotina em todas as varas federais. O conhecimento acumulado por Moro sobre as práticas utilizadas, com certeza não é o de todos os juízes. Não será fácil para quem receber os autos inteirar-se da matéria, pois cada processo tem cerca de mil eventos, o que corresponde a 4 mil folhas.

E mais. Há a segunda instância. Uma grande quantidade de desembargadores, com diferentes posições sobre o Direito Penal, examinarão os recursos. Terão por foco o caso concreto e não o todo.  Ainda, o TRF4 dispensou Moro de receber outros processos além dos resultantes da operação. Isso não ocorrerá em outras varas, até porque cada uma receberá parte deles. Assim, casos relevantes terão que dividir a agenda do juiz com coisas menores, como a apropriação de verba do INSS de empregados.

Essa é a parte do sim. Mas a resposta é também não. A divisão não resultará em total impunidade de todos os acusados. Muitos processos serão distribuídos a juízes estudiosos da matéria e com muita vontade de prestar jurisdição efetiva, de construir um novo Judiciário. Não há dúvidas, portanto, que parte das ações resultará, sim, em condenação e prisão.

Finalmente, registre-se que as provas não são apenas fruto de delações premiadas, mas também de documentos. Por exemplo, e-mails apreendidos pela Polícia Federal, evidenciando o lobby da Odebrecht junto à presidência da República, para vencer licitações em outros países (O Globo de 30 de setembro de 2015, p. 3).

Por derradeiro, é preciso deixar de lado a desconfiança que se tem de tudo e de todos, crendo que há no Brasil apenas uma pessoa que possa decidir esses casos, ou seja, o juiz Moro. Não é assim. Ele é excepcional, tem conhecimento jurídico, equilíbrio físico, psicológico e não se rendeu à vaidade. Mas há outros tantos, em todas as instâncias, merecedores de confiança.

O importante é que as instituições estão funcionando. A Polícia Federal e o MPF estão fazendo um trabalho equilibrado, profissional, de alta eficiência. Nenhum órgão de cúpula do Poder Judiciário faz qualquer tipo de interferência na ação do juiz de primeira instância. Não há tentativas do Poder Executivo nesse sentido. Compare-se a situação com a vizinha Argentina onde, entre outras coisas, o promotor Alberto Nisman, que investigava crimes relacionados com políticos, foi morto e a apuração não avança.

Portanto, a decisão do STF não deve ser vista como uma tentativa de esvaziar as ações penais da “lava jato”. Estamos vivendo um momento em que, pela primeira vez, crimes praticados por pessoas de poder político e econômico estão sendo submetidos a julgamento, com réus presos há longo tempo. Há muito mais a comemorar do que a lamentar.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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