Diário de Classe

O taller com Taruffo e o problema da verdade nas narrativas processuais

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3 de outubro de 2015, 8h01

Spacca
Escrevo do fim do mundo, da cidade de Ushuaia, localizada no extremo sul da Argentina, onde participo das XXIX Jornadas de la Asociación Argentina de Filosofía del Derecho, sobre o tema “Verdade, Justiça e Direito”. Todavia, o que me importa nessa coluna — para além de registrar a realização desse tradicional e importante evento — é compartilhar outra experiência acadêmica.

Na última terça-feira (29/9), antes de vir a Tierra del Fuego, estive em Buenos Aires, na companhia dos professores Carlos Cárcova e Alicia Ruiz, ocasião em que pude participar de uma atividade realizada na prestigiada Facultad de Derecho da Universidad de Buenos Aires: um taller.

Trata-se de uma espécie de oficina com a presença de diversos professores que recebem a visita de um importante jurista para discutir sua obra. No caso, o convidado especial era Michelle Taruffo, eminente processualista italiano, professor ordinário da Faculdade de Direito da Universidade de Pavia. A seis professores – Fernando Díaz Cantón (Buenos Aires), Mario Chaumet (Rosario), Jorge Douglas Price (Comahue), Jordi Ferrer Beltrán (Girona), Osvaldo Gozaíni (Buenos Aires) e Rodolfo Vigo (Buenos Aires) – foi conferida a tarefa de escrever trabalhos sobre a obra de Taruffo. Os textos foram compartilhados previamente.

A atividade começou às 16h, no Salão Azul, e estendeu-se até a noite. As regras do debate acadêmico foram estabelecidas pelo coordenador da mesa. No primeiro bloco, três professores dispuseram de 20 minutos, cada um, para expor sumariamente seus trabalhos. Na sequência, o consagrado jurista italiano comentou as questões levantadas e as críticas que lhe foram dirigidas. Em seguida, abriu-se espaço para intervenções da plateia e mais uma rodada de breves respostas do convidado. Após um brevepausa para o café, a mesma estrutura repetiu-se no segundo bloco. Ao final, depois de cinco horas de discussão, “todos estavam destruídos”, para usar as palavras do próprio Taruffo.

Dois foram os pontos sobre os quais girou a maior parte da discussão: a importância atual da teoria dos precedentes e o problema da verdade no âmbito das narrativas processuais. Me limitarei, aqui, ao segundo, em razão de meu interesse e dedicação aos estudos em Direito e Literatura. Foi o professor Jorge Douglas Price quem dirigiu uma das críticas mais severas em trabalho intitulado: La complejidad de la verdade.

Conforme Price, os discursos por meio dos quais se constroem as decisões judiciais são análogos aos discursos literários e científicos. E, por isso, a noção de coerência narrativa é fundamental. Merece destaque especial a seguinte passagem de seu trabalho:

“Taruffo sustenta que as histórias são suspeitosas e perigosas porque abrem a porta à imprecisão, à variabilidade e à manipulação na reconstrução dos fatos, dependendo do ponto de vista, dos interesses e dos propósitos dos sujeitos que as contam em um determinado momento e em certo contexto […] Minha resposta a esta advertência são duas: (a) efetivamente, todas as histórias são suspeitosas e perigosas, incluindo as de Taruffo e as minhas; (b) nada permite pensar que os juízes (ou os cientistas) sejam narradores diferentes às partes do processo, psicológica, cultural e epistemologicamente falando”.

Em sua breve réplica, Taruffo advertiu que, de fato, vê a questão de fundo de um modo bastante diferente de Price. Insistiu ser um realista em filosofia. Para ele, a realidade material externa existe (independentemente do que diz Vattimo): “Não sou um realista ingênuo, mas sim crítico. Creio que há métodos para conhecer de maneira racional objetiva e controlada alguns indícios da realidade externa. Há dezenas de teoria da verdade. Quando não se gosta das disponíveis, se inventa uma nova”.

Nesse contexto, esclareceu que compartilha a tese dos narrativistas até o momento em que entendem que, ao final do processo, o juiz deve eleger a melhor das narrativas, isto é, a mais coerente e persuasiva. “Minha crítica é obvia e banal. Há uma pequena diferença entre o processo e uma competição literária. Processo não é a narração mais elegante. No processo, há um fim: optar pela narração verdadeira. É verdade que cada fato pode ter diversas narrações. Sendo realista, comparto uma definição de verdade mais ou menos aristotélica: a verdade como correspondência. Mas não sou ingênuo e nem estúpido. Devem existir métodos objetivos de conhecimento. E aqui falamos dos modelos da ciência”.

Em sua obra Simplesmente a verdade (ed. Marcial Pons), o maestro italiano afirma que somente os fatos são objetos de prova. Ou melhor, é a prova que irá determinar a verdade dos fatos. Desse modo, partindo da ideia de que a apuração da verdade dos fatos é possível e necessária, sustenta que o estabelecimento da verdade é uma das condições para um processo justo.

E, para tanto, Taruffo reabilita uma concepção correspondencial de verdade – no melhor estilo veritas est adaequatio intellectus ad rem –, segundo a qual a realidade externa existe e constitui o critério de referência que determina a veracidade ou falsidade dos enunciados que dela se ocupam.

Tal qual Jorge Douglas Price (e certamente Lenio Streck, que também já escreveu muito sobre “o processo como espelho da realidade”), não compartilho dos mesmos pressupostos filosóficos do renomado processualista italiano. A meu ver, o linguistic turn não promove uma ruptura entre a linguagem e o mundo, ou entre as palavras e as coisas. Tampouco concordo que a filosofia da linguagem possa ser sumariamente taxada de niilista ou relativista. E uma prova disso é, precisamente, a obra Verdade e Método, de Gadamer, citada por Taruffo em seus livros.

Uma questão curiosa – e, de certo modo, paradoxal – que exsurge desse debate diz respeito, precisamente à decisão. De um lado, embora adote o realismo crítico e uma teoria correspondencial da verdade, Taruffo admite a discricionariedade judicial. De outro, os adeptos das teorias hermenêuticas, inscritos no paradigma da intersubjetividade, rejeitam o poder discricionário dos juízes. Mas este é um tema que precisaria mais espaço para desenvolvê-lo melhor.

De todo modo, me parece relevante deixar claro que, se é óbvio que existe uma diferença entre Direito e Literatura – ou, como diz Taruffo, entre um processo e uma competição literária –, tal diferença não reside na estrutura narrativa e tampouco na capacidade dos juízes. 

Por que estou contando tudo isso? Não sei o quanto é útil insistirmos em uma teoria jurídica fundada em uma concepção semântica de verdade, como a subscrita por Taruffo. Ele referiu que deverá estar no Brasil, no mês de novembro, ocasião em que os juristas poderão discutir melhor essas todas essas questões. No entanto, uma coisa é certa: ainda temos muito a aprender com nossos hermanos argentinos. E não só no futebol. Isso porque debates desse tipo – que também são frequentemente realizados na Europa e nos Estados Unidos – são atividades promissoras. A academia é o locus privilegiado para o confronto de ideias. Espero podermos seguir esse exemplo, especialmente no âmbito dos programas de pós-graduação, e, assim, contribuir para o avanço da ciência do direito.

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