Segunda Leitura

Em nome da segurança pública, é preciso discutir a polícia única estadual

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

29 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
O artigo 144 da Constituição Federal dispõe sobre o sistema de segurança pública do Estado e a divisão de atribuições entre os órgãos que a compõem. Nessa partilha, a maior parte do ônus fica com a Polícia Civil e a Militar dos Estados, cabendo à Federal, basicamente, os crimes que afetam o interesse da União e à Guarda Municipal zelar pelo patrimônio dos bens, serviços e instalações dos municípios.

A Polícia Civil nasceu com o Regulamento 120/1842, cujo artigo 3º, parágrafo 4º, previa a existência de uma Polícia Judiciária e atribuía-lhe, inclusive, o julgamento de crimes de menor potencial ofensivo. Após a proclamação da República, os estados passaram a exigir o diploma de bacharel em Direito para o exercício das funções de Delegado de Polícia, sendo que em São Paulo essa exigência deu-se através da Lei 9.799/1905.

A Polícia Militar, segundo relata Edilberto Neto, teve seu início em 1831, por iniciativa do Regente Feijó, quando “foi criado o Corpo de Guardas do Rio de Janeiro, através de um decreto regencial, que também permitia que as outras províncias brasileiras criassem suas guardas, ou seja, as suas próprias polícias. E a partir de 1831, vários estados aderiram a ideia e foram montando suas próprias polícias”.[i]

Cada estado criou a sua Polícia fardada, atribuindo-lhe nomes diferentes. Por exemplo, em Santa Catarina “Força Policial” (1835), no Paraná “Companhia de Força Policial” (1854) e em Goiás “Força Policial de Goyas” (1858). Em 1969 o Decreto 667 transformou todas em forças auxiliares, reserva do Exército, atribuindo-lhes o nome de Polícia Militar.

Com a Constituição de 1988, a divisão entre as duas grandes corporações estaduais ficou definida, cabendo à Polícia Civil as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais e, à Polícia Militar, a ação ostensiva e a preservação da ordem pública.

Essa partilha de atribuições só é simples na leitura, pois, na realidade, enseja permanente tensão e conflitos que se repetem com menor ou maior gravidade em diversos pontos do território nacional. O último deles ocorreu em São Paulo, no dia 20 de outubro passado, quando um Delegado de Polícia autuou em flagrante um Sargento da PM, sob suspeita de que teria torturado um suspeito da prática de roubo, fato esse que originou forte movimento no local e risco de conflito entre membros das duas Polícias.[ii]

As dúvidas e desavenças vão além dessas ocorrências extremas. Na rotina policial, discute-se a possibilidade da PM lavrar auto circunstanciado nos crimes de menor potencial ofensivo e de investigar determinados crimes, reportando-se diretamente ao Ministério Público. A discussão se prolonga, pequenas rusgas e desconfianças persistem e o Poder Judiciário, em especial o STF e o STJ, que têm por função interpretar a Constituição e a Lei Federal, não estabelecem, através de súmula, os limites das atividades das duas corporações.

É nesse quadro de incertezas e tensões que seguem as atividades policiais na área estadual, com manifesto prejuízo à eficiência. Enquanto isso, a Segurança Pública, segundo uma pesquisa do Instituto Datafolha, passa a ocupar o segundo lugar nos índices de preocupação dos brasileiros, sendo superada apenas pela saúde.[iii]

Foi tentando dar solução ao problema, através de uma Polícia Estadual única, que o Deputado Celso Russomano (PP/SP) apresentou o Projeto de Emenda Constitucional 430/2009, cujo andamento atual na Câmara dos Deputados é de colheita de parecer da Comissão de Justiça e Cidadania.[iv]

A PEC 430/2009 não se confunde com o chamado “Ciclo de Polícia Única” ou “Ciclo Completo da Polícia Militar” e outros que são objeto das PECs 423/2014, 431/2014 e 127/2015. Nesses, o que se pretende é que a Polícia Militar possa promover a investigação de crimes e lavrar autos de prisão em flagrante.

A PEC 430/2009, que é a que aqui se analisa, pretende dar ao art. 144 da Constituição uma nova redação, prevendo o seguinte:

§ 4º. A Polícia dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, instituída por lei como órgão único em cada ente federativo, permanente, essencial à Justiça, de atividade integrada de prevenção e repressão à 3ª de 12 infração penal, de natureza civil, organizada com base na hierarquia e disciplina e estruturada em carreiras, destina-se, privativamente, ressalvada a competência da União, à:

 I – preservação da ordem pública;

II – exercer a atividade de polícia ostensiva e preventiva;

III – exercer a atividade de investigação criminal e de polícia judiciária, ressalvada a competência da União e as exceções previstas em lei.

Como se vê, a redação dá à Polícia dos Estados o status de órgão essencial à Justiça, integra as funções preventivas e repressivas, ressalta o caráter civil, mas prevê como base a hierarquia e a disciplina. Fácil é ver que busca a conciliação de interesses entre as duas Polícias. E essa busca surge em outros dispositivos, como que a tentar apaziguar os ânimos, quase sempre opostos.

O artigo 2º, § 1º, prevê que o cargo de Diretor-Geral será exercido por um Delegado de Polícia e um Oficial da Polícia Militar, alternadamente, até que um Delegado de Polícia formado no novo sistema tenha condições de assumir a chefia.

O artigo 3º assegura a irredutibilidade de vencimentos ou subsídios. Uma lei disporá sobre as transformações dos cargos das polícias civis, militares e dos corpos de bombeiros, prevendo o parágrafo único que quem quiser poderá permanecer no sistema antigo, que será, com o tempo, extinto. É dizer, procura a PEC não prejudicar direitos adquiridos.

A lei que regulamentará a matéria dará os requisitos para que os membros das antigas corporações possam adaptar-se às atividades da que for criada, exigindo-se dos Oficiais da PM curso de graduação em Direito para serem Delegados de Polícia e, dos membros da PC, cursos de capacitação para que possam atuar em atividades de polícia ostensiva e preservação da ordem pública.

O artigo 6º uniformiza as carreiras policiais no âmbito estadual, dividindo-as em cinco grandes grupos. Além das tradicionais atividades de Delegado, Investigador e Escrivão, o texto prevê, em boa hora, a carreira de Perito de Polícia, área de relevância máxima e à qual ainda não se deu o devido reconhecimento.

Ainda, no § 5º do artigo 6º, prevê a carreira de Policial, ramo uniformizado da nova Polícia. Essa é uma medida necessária, pois, no exercício de funções preventivas e nos embates com manifestações de espaços públicos, o uniforme é a forma de identificação dos agentes do Estado e de intimidação da prática delituosa. Portanto, a extinção da PM não significa a abolição de uniformes, prática esta existente em todo o mundo.

Finalmente, uma inovação polêmica e que vai gerar resistência nos órgãos policiais, é a criação no artigo 9º do Conselho Nacional de Segurança Pública, composto de vinte membros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para mandato de dois anos. Secretarias de Segurança resistirão ao órgão de controle, da mesma forma que os Tribunais resistiram ao Conselho Nacional da Magistratura.

Ocorre que esta medida é de absoluta necessidade, pois atualmente não existe uma política nacional de segurança pública e os estados atuam de forma isolada, sem conexão, com prejuízo ao combate à criminalidade. Assim, ainda que se possa discutir a composição do CNSP, o fato é que referido órgão é imprescindível para que o sistema de segurança avance.

Por fim, o artigo 10 dá aos integrantes da proposta Polícia Estadual tratamento idêntico em atividade e na aposentadoria, um benefício que, segundo as previsões, ficará cada vez mais distante da realidade. Em outras palavras, enquanto as carreiras públicas começam a fazer distinções na remuneração de membros em atividade e aposentados, a PEC reconhece paridade aos Policiais Estaduais. Não é pouca coisa.

Em suma, aí está um Projeto de Emenda Constitucional que merece ser conhecido, discutido e, se for o caso, aprimorado. O que não se admite mais é que: a) a comunidade jurídica continue a ignorar a segurança pública, muito embora essa seja a segunda preocupação na vida dos brasileiros; b) continue a tensão, desconfiança e falta de colaboração entre órgãos que tem a mesma finalidade, ou seja, a segurança na vida social.


[i] Edilberto “Neto”, http://my.opera.com/edilbertoneto/blog/2009/03/03/a-historia-da-policia-militar.

[ii] http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2015/10/pm-acusado-de-tortura-e-preso-e-policiais-protestam-contra-delegado.html, acesso 26.11.2015.

[iii] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/08/seguranca-e-2-maior-preocupacao-dos-brasileiros-segundo-pesquisa.html, acesse em 25.11.2015.

[iv] http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=DF150C79C3CE477F93A595BADCAA4EAF.proposicoesWeb1?codteor=710666&filename=PEC+430/2009, acesso 26.11.2015.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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